sexta-feira, 3 de maio de 2024

Há rumor de tempo e vestígios de lodo

 

Há rumor de tempo e vestígios de lodo
na paisagem velha sob as telhas intactas.
Destaca-se a transparência da memória
no fundo antigo de um frasco de bocal
onde a cadência do vidro continua lenta
imutável como a poeira dos móveis
intacta como as telhas da paisagem
intocável como a planta de vidro
silábica como o riso da crença
nas tábuas do sótão
templo do medo.

Autor : Ana Margarida Falcão
Imagem : Gennadi Blokhin

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Toda a Poesia é Luminosa

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.

O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.

E o nevoeiro nunca deixa ver claro.

Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.

Abençoado seja se lá chegar.

Autor : Eugénio de Andrade
Imagem : Aleah Michele

quarta-feira, 1 de maio de 2024

FESTEJO

Foi num primeiro de maio,
na cidade de Rio Grande.
O céu estava sem nuvens.
O mês das flores nascia.
O vento lembrava as flores
no perfume que trazia.
O povo reuniu-se em festa
pois a festa era do povo.
Crianças, homens, mulheres,
o povo unido cantava.
O povo simples da rua,
comovido se abraçava.
O mês das flores nascia
e o vento lembrava as flores
no perfume que trazia.
Foi num primeiro de maio,
de pensamento profundo.
“Uni-vos, ó proletários,
ó povos de todo o mundo”.
Unido estava em Rio Grande,
o povo simples cantando,
No peito de cada homem
uma esperança se abria.
Em qualquer parte do mundo
uma estrela respondia.
Era primeiro de maio
dia da festa do mundo.
O velho parque esquecido
tinha um ar claro e risonho.
Germinava no seu peito
o calor de um novo sonho.
Misturavam-se cantigas,
frases, risos, alegrias.
No peito de cada homem,
um clarão aparecia.
Surgiam jogos e prendas,
hinos subiam ao ar.
Em cada grupo uma história
alguém queria contar.
A tecelã Angelina,
vivaz e alegre cantava,
Recchia - o líder operário
ria e confraternizava.
Era primeiro de maio,
dia de festa do mundo.
Foi quando a voz calma e séria,
no velho parque vibrou,
e um convite alvissareiro
o povo unido escutou:
“Amigos, a rua é larga.
Unidos vamos partir.
A nossa ‘União Operária’
nós hoje vamos abrir.”
No peito de cada homem
Um clarão aparecia.
Em qualquer parte do mundo,
uma estrela respondia.
“A casa de nossa classe,
fechada por que razão?
Amigos, vamos à rua,
e as portas se abrirão.”
A onda humana agitou-se,
Cresceu em intensidade .
Em coro as vozes subiram
clamando por liberdade.
“Á rua,à rua, sem medo,
unidos, vamos marchar.”
Foi como se uma rajada
De vento encrespasse o mar.

Autor  : Lila Ripoll
(Primeiro de Maio, 1954) 

terça-feira, 30 de abril de 2024

Para quê chorar


para quê chorar
porque esperarmos
que outros venham consolar?

para quê querer uma ilusão
para apagar uma mentira?

o choro cansou o mundo
e a nós mesmos já causa tédio
e quando julgamos que o riso é choro
ele é riso simplesmente
porque já nem sabemos lamentar

mas olha à tua volta
abre bem os olhos
- vês?

aí está o mundo
construamos.

Autor : Agostinho Neto
Imagem : Martin Stranka

domingo, 28 de abril de 2024

Partida sem Retorno

 

Deixaste no teu trajecto,
muito da tua generosidade,
basta saber seguir o rastro,
e sentir o teu amor disperso,
em cada memória apartada.

Autor : BeatriceM 2024-04-22

sábado, 27 de abril de 2024

Cansaço

Estou cansado
sei que estas palavras são como um choro
sobre o mapa da vida
estas palavras têm o mesmo valor
quando suspiro depois
do desejo consumado e digo
estou cansado!

este corpo que corre a afogar-se
na memória absurda do que foi o abandono
confessa em silêncio
estou cansado!

Autor : Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Mikko Lagerstedt

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Ela e a Fortuna

Acaso é a flor
que se desfolha em sua mão,
o pássaro que foge
pela janela aberta,
o vento
que de repente infla suas velas,
porém sendo vento
ele passa e voa.
Ah a Fortuna
é para ela
o resplendor fugitivo
de uma manhã de sol,
de uma hora,
de um arco-íris
trêmulo e evanescente
que se estende
sobre um abismo deslumbrado…
A Fortuna é o que não se tem,
e é tão perfeita
tão rica e esplêndida
a sua imagem,
que empobrece
as pequenas alegrias
de todos os dias:
os frutos de sua horta
onde não crescem
laranjas de ouro,
as rosas
de seu modesto jardim,
que logo murcham,
o timbre claro das vozes
que por vezes estão próximas,
e até mesmo o riso
que se apaga em seus lábios
dissipado
por um invisível sopro.

Autor : Alaíde Foppa
Imagem : Andrea Kiss

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Liberdade


-- Liberdade, que estais no céu…
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

-- Liberdade, que estais na terra…
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
-- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.

Autor : Miguel Torga

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Atar-se aos segredos dos dias gémeos

Atar-se aos segredos dos dias gémeos
não é tarefa fácil para o meu pobre amigo.

Vem às vezes ver-me,
para partir o silêncio de uma lenta agonia
que na memória guarda.

Atar-se tantos nós não servia para nada.

Di-lo com os olhos afundados na chuva
e assim nasce a sua sombra
no céu quebrado que esconde o abandono.

Autor :Ana Merino
trad. joaquim manuel magalhães(relógio d´água2000)
Imagem :Anthony Garcia

terça-feira, 23 de abril de 2024

Só o amor

Só o amor pára o tempo (só
ele detém a voragem)
rasgámos cidades a meio
(cruzámos rios e lagos)
disponíveis para lugares com nomes
impronunciáveis. É preciso conhecer os mapas mais ao acaso
(jamais evitar fronteiras
nunca ficar para trás)
tudo nos deve assombrar como
neve
em Abril. Só o amor pára o tempo só
nele perdura o enigma
lançar pedras sem forma e o lago
devolver círculos).

Autor : João Luís Barreto Guimarães
in Nómada
Imagem : Kristin Edmundson

domingo, 21 de abril de 2024

poalhas vagas

 

somos incompatíveis,
nos dias,
nos gostos,
nos acertos que são sempre desacertos,
somos seres díspares,
onde só somos compatíveis,
na paixão assoberbada pela calada da noite…

Autor : BeatriceM 2024-04-20
Imagem :Masha Raymers 

sábado, 20 de abril de 2024

Dois Poemas

Antonio Curnetta

Em que idioma te direi
este amor sem nome
que é servo e rei?

Como o direi?
Como o calarei?

É como se a noite se molhasse
repentinamente, quando choras.
É como se o dia se demorasse,
quando te espero e tu te demoras.

Autor : Albano Martins

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Ser e não ser

Entre mim e os livros na estante,
no espaço ocupado pela luz,
dão-se transformações
a que assisto quieta e calada.

Depois de olhar o ar,
cada palavra reflecte
o lugar invisível de onde veio o poema
ou o silêncio que passou pela casa.

A alma não escolhe a estação
nem prevê o detalhe do infinito.

Reparo com espanto infante
nos vestígios deste ritual,
os livros que não li
sabem de mim
e não dormem nunca.

Autor Marta Chaves
In Avalanche

quinta-feira, 18 de abril de 2024

O nome das árvores


Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores e
guarda no bolso dois nomes para cada árvore. As
árvores não morrem no interior da sombra.

Quem é que sabe que saber até ao fim do mundo é
pouco mais do que nada. Quem sabe que as palavras
são só uma nesga da paisagem. Quem caminha assim
por dentro dos caminhos. O nome das árvores é o
silêncio.

Há quem olhe as árvores como quem procura pássaros
dentro das árvores e o céu por cima das árvores. As
árvores não morrem no interior da sede.

Quem é que sabe que o destino é tão lento e está tão
perto. Por quem se demora o vento quando o vento se
demora. Quem é que sabe que sonhar é o princípio da
respiração. As árvores são o lume quando os caminhos
se acendem.

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores
ou como quem olha as casas ao cair da noite. As
árvores não morrem no interior do medo.

Quem é que sabe que viver é viver para lá da última
folha. Quem é capaz de morrer e depois de morrer não
morrer ainda. Quem habita os lugares invisíveis. As
árvores caminham no descuidado caminhar do tempo.

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores
com os olhos súbitos e incendiados do amor. As
árvores não morrem no interior da chama.

Tudo nas árvores é o coração das árvores. Por quem os
pássaros esquecem as asas quando os pássaros
esquecem as asas. Quem sabe devagar amadurecer um
fruto. Quem é capaz de amar assim até às raízes.

Rui Miguel Fragas
In O Nome das Árvores
Imagem :Janek Sedlar

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Caixinha de Música

impregno-me em ti como um perfume
como quem veste a pele de odores ou a alma de
cetins
quero que me enlaces ou me enfaixes de muitos
laços
abraços fitas ou fios transparentes

em celofane brilhando uma prenda
uma menina te traz vestida de lumes
incandescendo incandescente
te quer embrulhada em véus de seda e brocado

encantada a serpente a flauta o mago
senhor toca
e quando me toca
o corpo eu abro

caixinha de música
dentro
com bailarina que dança

Autor : Ana Mafalda Leite