domingo, 14 de setembro de 2025

Melancolia

Igor Burba


Há um clamor
na insensatez do mundo,
atestando a tranquilidade
que os olhos pedem,
pois as bocas estão cerradas
com o medo — desesperançado
e à beira de disparar.

 Autor : BeatriceM 2025-09-14

sábado, 13 de setembro de 2025

...

 

Por que pairas?
Por que insistes?
Por que pairas se deixaste
que te prendessem terrenas
falsas tranquilidades?
Por que negaste o que eras -
nuvem íntegra, real,
sobre as mentiras do mundo?
Às vezes cantas em tudo.
Mas é tão triste e tão tarde.
Meu amor, porque vieste?
Nunca tivera sabido
como se nasce e se morre
de repente ao mesmo tempo
para sempre, ó arrastada
humana deusa frustrada
água irmã da minha sede
luz de toda a claridade
que só em ti neste mundo
para mim era verdade.

Autor : Alberto de Lacerda
Autor : Carlos Alberto Portugal Correia de Lacerda
in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco Graça Moura, Quetzal Editores
Imagem : Martin Stranka

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

O Tempo

Johan Messely

O tempo tem aspectos misteriosos:
Um ano passa a toda a velocidade,
E um minuto, se estamos ansiosos
Parece, às vezes, uma eternidade.

Um dia ou é veloz ou pachorrento
-depende do que está a contecer-
O tempo de estudar, pode ser lento.
O tempo de brincar, passa a correr.

E aquela terrível arrelia
Que até te fez chorar, por ser tão má,
deixa passar o tempo. Por magia,
Quando olhamos para trás, já lá não está.

Autor : Rosa Lobato Faria

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Então...

 


Então me vens e me chega e me invades
e me tomas e me pedes e me perdes
e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos
e abres a boca para libertar novas histórias
e outra vez me completo assim, sem urgências,
e me concentro inteiro nas coisas que me contas,
e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim
enquanto me apunhalas com lenta delicadeza
deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida,
que nada devo esperar além dessa máscara colorida,
que me queres assim porque assim que és..."

Autor : Caio Fernando Abreu

domingo, 7 de setembro de 2025

Antes de tudo acabar




Antes de tudo acabar,
deixa-me escrever doutrinas antigas
que nunca escrevi.

Descerrar o cofre,
remexer o que lá subsiste
e que já esqueci.

Lançar fora
lembranças frias,
reacender outras, já esquecidas.

Abrir a janela,
libertar um abraço
enrolado no vento.

Deslaçar o cabelo...
e então, poderei partir
para o outro lado do caminho.

 Autor : BeatriceM 2025-09-07
Imagem : Ilya Kisaradov

sábado, 6 de setembro de 2025

Povoamento


 

No teu amor por mim, há uma rua que começa.
Nem árvores nem casas existiam nela,
apenas Tu.

E antes que tu tivesses palavras e tudo em mim fosse um coração para elas, Invento-te !

O céu azula-se sobre esta triste condição de te ter sem ter.

Recebo unicamente dos choupos onde cantam os impossíveis pássaros que anunciam uma nova primavera;

Tocam sinos e aqueles pássaros levantam voo com todos os seus cuidados

Ó meu amor nem minha mãe tinha assim um regaço como este dia tem …

Autor : Ruy Belo
Imagem : Jonas Hafner

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Lume


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.

Autor:Ana Salomé

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Manhã

 

É cedo, demasiado cedo, escutas
o clamor das horas,
o breve tempo, a longa margem
que assiste ao teu desaparecer.

Bebes café e estranhas o poder
de orvalho e cansaço
que há na manhã.

Autor : Luís Quintais
In : A Noite Imóvel

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Preparar a Solidão

Perceber que já se perdeu tudo o que um dia mais se amou,
fazer ordinariamente horas extraordinárias,
ir a diário ao ginásio, esgotar o corpo,
andar frequentemente de bicicleta,
regressar a casa pelo caminho mais longo,
prestar atenção ao que acontece dentro da copa das árvores,
não ter animais de estimação, nem mesmo plantas,
ter coragem para não recolher um cão abandonado,
nas tardes de sol visitar jardins, dar milho aos pombos,
ser amante de livros, de música e de cinema,
guardar longe da vista todas as fotografias,
dançar pela casa, a vontade não precisa de par,
evitar pensar no sentido da vida,
ter um não sei quê de ave migratória,
manter a casa limpa, mudar os lençóis, fazer a cama,
ter em casa chá, chocolate e livros de poesia,
peças de fruta, álcool e cigarros nenhuns,
ter cola, tesoura, agulha, linha, pregos,
o necessário para pequenas reparações,
ter uma caixa de primeiros socorros,
cozinhar em pequenas quantidades,
investir numa chaleira,
numa botija para água quente,
num congelador,
viajar sempre para países distantes,
não ter medo da chuva nem do choro,
não ligar a televisão só para ter luz no escuro.

Autor  : Raquel Serejo Martins, 
"Exercícios de preparação para a solidão", in Página do Facebook

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Sobre esta página


Há quem não leia para além do que vai escrito.
Tudo tem de ser literal: chão rua noite e casa,
cama mesa e roupa lavada. Nem silêncio nem grito,
consoante as penas que se transporta em cada asa.

Guarda o talento para ti, não mudes de página.
Há gente capaz de se negar à própria evidência
e de te acusar de mundos e reinos criados por álgida
imaginação, de asno com excesso de inteligência.

A nada e ninguém repliques. O segredo
só a ti pertence, tão único como tu. Lês
por dentro o que escreves, sozinho na noite
qual condenado às trevas do seu degredo.

Caminha sobre a página. Mudarás não o sentido
nem o ritmo nem a música nem a voz do poema,
e sim o verbo que te levará à vista do infinito.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Marie Meister

domingo, 31 de agosto de 2025

Matéria de Afecto


acho que fui pluma
na tua mão —
vontade insensata
de me quereres inteira.

Em dias cálidos,
noites arrefecidas,
tardes escurecidas.

Acho que fui intimidade:
corpo saciado
de um tempo adiado.

Autor:BeatriceM 2025-08-31

sábado, 30 de agosto de 2025

Nas cidades de onde venho


Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direcções
nas pupilas das crianças.

Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, imprudentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
– para eles aquilo que apenas vêem!

E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos

Autor : Victor Oliveira Mateus
In “Pelo deserto as minhas mãos”
Imagem : Michael Zahornacky

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

o peso dos livros


Pensava que os livros não têm peso. Quero dizer, flutuam no entendimento.
Na memória. Ou melhor: equilibram-se porque não são gente.
Não têm noites, não têm insónias. Não têm sono lá dentro.

Pensava que os livros são menos complexos do que nós. Mesmo quando
não temos linha, quando não temos palavra. Mesmo quando
não conseguimos respirar. Quando pensei nisso,
tive uma vaga noção de título.

E um hálito branco a querer ser página.

Autor : Filipa Leal

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O céu

Oleg Oprisco


O céu
Assoam-se-me à alma,quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.

Autor :Luís Miguel Nava

domingo, 24 de agosto de 2025

Entre Linhas


não sei se é loucura
ou sanidade
esta ânsia de me fundir nos livros
que me completam.

sou parte da história,
sou a ausência da heroína,
perco-me nos enredos
onde me enleio,
me enrosco
e sonho —
sem saber ao certo
se está escrito,
se li
ou imaginei
as palavras com que teço
os acasos do meu fado.

Autor:BeatriceM 2025-08-24