quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Os Tempos Não


Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.
-
É pelo hálito que te conheço
no entanto o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.
-
Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.

Autor : Manuel António Pina
in Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde (Assírio & Alvim, 1974)
Imagem :  Alex Stoddard

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Hoje é o Dia de Todos os Deuses

Hoje é o dia de todos os deuses.
A maresia subirá breve
ao terceiro andar.

Virá como quem pede mais um pouco
desta tarde.
Deixo-me ficar enquanto vou

indecisa como quem não sabe.
Se escolho rainha se rei
só eu decido, só eu sei.

Hoje é o dia de todos os deuses.
A qualquer deles vou pedir
não só a Zeus, não só a Argos,

não só a Afrodite,
a que o amor consente de todos os modos,
à brisa pedirei

que me deixe partir
a voz em arco
e tudo fruir de outro modo

Ainda que hoje não seja o dia
direi
não tenho género ou identificação bastante

que se assemelhe
ao estar
preto no preto branco no branco.


Autor ; Helga Moreira, 
in 'Agora que Falamos de Morrer'
Imagem :Pinterest

terça-feira, 18 de novembro de 2025

com uma pedra


com uma pedra podemos fazer um universo, uma história ou um poema (as pedras servem para tudo, menos para atirar, as pedras são as letras do escultor…)“Engracei com uma pedra. Não pela cor, nem pela forma, mas por estar ali no meio do meu andar.Olhei-a, em conversa (daquelas conversas que temos com todas as coisas que nos entram no olhar e ali ficam a provocar-nos, seja pedra, rio, nuvem, quadro, flor ou coisas outras), mas ela mandou-me seguir caminho.O meu parar incomodava-a “ Sai! Sai da frente! Sai! Não ouves?” Repetiu-se em soluços simpáticos mas insistentes.Fiquei intrigado, porque não a imaginava com olhar. Pedra que é pedra, não tem frente nem costas quanto mais “olhar”.Fui. Na volta tornei a vê-la e parei-me provocador, mas não me disse nada.“Sonhei”, pensei “ lá estás tu com as tuas histórias”, disse-me. Fui com toda a intenção de ir, mas fui interrompido por um sussurro, “Espera! Fica aqui comigo! Preciso de ti!”. “Para quê? Porquê?”, “ Cansei-me de ser pedra! De manhã quando passaste por mim, estava a olhar para aquela papoila, aquela que ali está, a olhar para mim. Quero que me transformes em papoila!”, “Mas tu nunca serás uma papoila! Serás sempre uma pedra!”, “ Tu também já foste menino e agora és homem, porque razão não posso ser papoila?”Agarrei nela e esculpi-a, papoila…O sol encarregou-se de lhe dar cor…”
.
(escrito com a alma de uma pedra a 12/7/2004)

Autor:Almaro

domingo, 16 de novembro de 2025

Tristeza


não escondas a tristeza que te absorve;
deixa as lágrimas correrem livres
até não restar mais dor no peito.

é apenas uma catarse,
e — quem sabe — amanhã,
ou depois,
depois,
um sorriso renasça no teu rosto.

 Autor : BeatriceM 2025-11-16
Imagem : Artur Saribekyan

sábado, 15 de novembro de 2025

Ausência


Boyana Petkova

Fala

Ouvir-te-ei
Ainda que os segredos
As amoras me chamem

Diz-me
Que existirão lágrimas para chorar
Na velhice
Na solidão

Ainda que acordes os olhos dos deuses

Fala

Ouvir-te-ei
A coragem

Alguém de nós que já não está

Autor : Daniel Faria
in "Oxálida"

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Do muro

 

Este muro avança com a estrada,
caminha para o cume e para o vale.
Se eu parasse junto dele, dir-me-ia:
aceito e recuso o movimento,
vou e não vou por vários horizontes,
sou e não sou infindamente.

Autor : fiama hasse pais brandão
as fábulas quasi 2002
Imagem : Pinterest

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira


Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico

Autor : António Ramos Rosa
Deambulações Oblíquas. Quetzal, 2001.
Imagem :Pinterest

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Na periferia da manhã


Na periferia da manhã, levemente adiada,
improviso uma ilha.
Tão nua como páginas em branco.
E concedo-me o direito de esperar Ulisses.
A minha fronte marcada com palavras sem destino.

Autor : Graça Pires
Imagem : Tina Albrecht

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Elogio da Distância



Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

Autor : Paul Celan
in “Papoila e Memória”
Imagem : stoddard

domingo, 9 de novembro de 2025

Segredos

 

Ontem falaram-me
de segredos
meus
eram segredos que só o vento sabia
fiquei perplexa e sem feedback.

Já não posso confiar em ninguém
nem sequer no vento.

Autor : BeatriceM 29-10-2022
Imagem : Mira Nedyalkova

sábado, 8 de novembro de 2025

Parto estelar


Contados os pontos
Finitos como eu
Mas belos no findar

Abstratos anjos gasosos
As verdadeiras nuvens
E o céu estão aí?

Reparar que é Hidrogênio
Também
Tão onipresente quanto Deus
Também
Tão logo se torna Hélio
Também
Nobre como deve ser

Um rajado
Na noite e no tempo
Vindo do infernal núcleo
Esgota contigo

No passado parecias eterna
No dia não parecias
Na noite perecias passageira

Humana luz
Resiste
Exaure

Orbitando no pretume onírico
É perfeita
Por esgotar-se
E brilhar o suficiente
Para parecer imortal

Autor : André Rosa

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Fim

Não houve um fim com grito ou dor,
só o silêncio a apagar o sabor.
Foi morrendo devagar, sem razão,
como quem larga devagar a mão.

Faltou carinho, vontade, calor,
aquilo que um dia chamámos amor.
Não foi traição, nem culpa, nem erro,
foi só o tempo a fechar o desterro.

Ficámos bem, e isso é raro,
não carrego raiva, nem olhar amargo.
Tu foste parte da minha estação,
mas não eras destino — só direção.

Hoje somos dois que já foram “nós”,
e mesmo que a memória ainda traga a voz,
a vida seguiu, tranquila e capaz…
porque o que ficou entre nós,
ficou tudo em paz.

Autor :Raquel Gonçalves
Imagem : Irina Dzhul

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Dia de Aguaceiros


Dia de aguaceiros. Sei que os jardins
não são os de Academos. Mas vou pelos passeios
entre a escrita das chuvadas no saibro e a discreta
disposição do Logos na murta dos canteiros.

Dia de amentilhos, gravetos, muros verdes:
as alamedas param e os cedros repousam
a terra tão porosa que facilmente encanta
- e eu cedo e levo ao chão a mão inteira, a medo.

Retiro-a manchada por um líquen de areia.
Aprendo por contacto que o Verbo nos irmana
baixando intelecções a corpos indefesos.
E um século à volta abre guarda-chuvas negros.

Autor : Carlos Poças Falcão
Imagem :Paolo Barzman

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

a gaiola

Agora que regressei
a este quarto para ficar,
não me contes que a vida
continua lá fora,
não me tragas
a luz de outros voos.

Basta-me a sombra dos ramos
fingindo árvores nas cortinas;
tal como a ti
a águia libertada à porta
da mais indolente taberna ou
os cães recusando-se a morrer
de traição - todos esses perdões
em papel que vais guardando.

Ao centro do jardim (lembras-te?)
havia um poço
onde deitavam as laranjas
caídas ao chão
para se desfazerem
num silêncio mais doce.

Deixa-me ser também
apenas o caroço deste mundo,
que apodrece à nossa volta
e na minha carne.

Autor : Inês Dias
 UM RAIO ARDENTE E paredes frias
Imagem : Igor Burba

terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Ausente

 

Stephem Carrol

Corpo suspenso
Da imaginação dolorosa

A distância
Permeando o desejo

Oceano
O impossível lençol entre nós dois

Autor ; Alberto de Lacerda
In: O Pajem Formidável dos indícios