sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Anjos ....

Anjos amortalhados nas vértebras da noite
abrigados no enigmático sorriso
com que me afrontam. Esse um exercício
de exactidão numérica, rasando
o fogo na navalha da escuridão.

Anjos amortalhados no véu das asas
de olhos vazios, aves escuras desorbitadas,
pendurados como casacos amarrotados
nas luminosas entranhas de um animal.

Anjos amortalhados no redobrar do vazio
onde o tempo se enrola sobre si próprio
e se fecha numa pedra ou estrela coagulada.

Ouve. Toca a finados, o tempo todo
é por ti ainda, este requiem
sem que o reconheças, no inumerável
reflexo dos espelhos. Anjos espreitam-te.

E é onde não estou que se ergue, intangível
o canto puro, a voz que te enlaça
e te arrasta nas coxas da luxúria.


Autor :  Maria João Cantinho
Imagem :Alexander Vakovlev