quinta-feira, 30 de junho de 2022

Lâmpada no coração do fogo


 Procuras frios animais no caminho das águas.
Um relógio na cadência da noite. Uma linguagem
no firmamento das palavras.
Desfazes nas mãos a orografia do pânico.
Uma sugestão musical, quase.

Autor : José Laurindo Leal de Góis 

quarta-feira, 29 de junho de 2022

O lírio prateado

 

As noites ficaram frias de novo, como as noites
de começo de primavera, e quietas de novo.
Será que a conversa te incomoda? Estamos
sozinhos agora; não temos razão para silêncio.
Vês, sobre o jardim — a lua cheia nasce.
Não verei a próxima lua cheia.
Na primavera, quando a lua nascia, significava
que o tempo era infinito. Anêmonas
abriam e fechavam, as sementes
em cachos caíam dos bordos em pálidas lufadas.
Branco sobre branco, a lua nascia sobre o vidoeiro.
E no arco em que a árvore se divide,
folhas dos primeiros narcisos, ao luar
prata-verde-claras.
Juntos, chegamos
perto demais do fim para agora
temermos o fim.
Nessas noites, não estou nem mesmo certa
de que sei o que significa o fim.
E tu, que estiveste com um homem —
depois dos primeiros gritos,
não faz a alegria, como o medo,
barulho algum?

Autor :Louise Glück
tradução de Maria Lúcia Milléo Martins

terça-feira, 28 de junho de 2022

Nasceste


Nasceste do outro lado,
onde o sol nunca destruiu os negros signos
da escuridão,
onde o terror do pai,
o distraído olhar da mãe,
o silêncio dos irmãos, faz crescer em ti as
imperecíveis flores da amargura.

Foste sempre
a equívoca imagem dos espelhos: um sorriso
era uma lágrima.
À tua volta estava escrito:
o amor é uma espada de fogo, às vezes mata.

Navegaste turvos oceanos cujas vagas alterosas,
nunca antes vistas,
batiam no teu assombro.
Atravessaste os ares, muito perto do céu,
mas nunca viste as altas mansões de Deus.
Eras apenas o anjo,
aquela que nunca pôde deixar as estâncias do
sono.
Entregaste, sem saber, os segredos do teu corpo,
tão predisposto à imolação.
Choraste tantas vezes,
em quartos de persianas descidas, que a morte
habitava,
sem fazer ruído.

Hoje,
não dizes nada.
Levas sobre os ombros um xaile de magoada renda.
Vestes quase sempre de negro.
Vais e vens,
ao longo dos labirintos onde em cada esquina
espreita o tigre.

Não sabes o que fazer com as mãos frias,
povoadas de angustiantes anéis.
Não bordas o livro das tuas horas,
e o dedal das avós dementes caiu sempre no
chão.

A chuva caiu sempre nos teus dias,
e caminhaste pelas ruas, à deriva, cabisbaixa,
como se pedisses perdão.
Ninguém te ouviu,
pois não havia palavras debruçadas da tua
boca.
Era sempre Inverno.

E quando ele chegou,
o filho pródigo de uma ilha,
parecia que enfim poderias cantar nos jardins da
paixão, na elevação das chamas.

Mas não.
Assassinaste sempre a ternura que ele ainda
guardava no devassado cofre da sua idade.
Suicidaste-te.

José Agostinho Baptista
'Esta voz é quase o vento'
Assírio & Alvim, 2004
Imagem : Angelo Bonini

domingo, 26 de junho de 2022

...


ninguém precisa ver as minhas lágrimas, são espontâneas e derrapam
desgovernadas como um rio sem foz
assim,como a minha tristeza, a raiva a aflição
a dor mesmo que exposta é e será sempre anónima...

Autor : BeatriceM 25-06-2017
Imagem :Katharina Jung

sábado, 25 de junho de 2022

TRIESTE

 

Nesse verão nenhum de nós buscava terra firme
parecia-nos caminhar há séculos sobre as águas
Donde viemos nós? Como chegámos a esta luz
austríaca sobre as colinas
ao fumo lento no anfiteatro do golfo
à ordem aleatória do tempo?

Talvez nos caiba viver por cidades estranhas
em casas que esconderão sempre o seu medo
e a sua glória
sós diante dos céus
sem a certeza culminante

Vemos a tarde perder-se na direcção do molhe
o mundo é aquilo que nos separa do mundo

Autor : José Tolentino Mendonça
Resumo: A Poesia em 2009 [de O Viajante sem Sono], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Préstimo

Um gato não serve realmente
para nada, vão quase seis séculos
desde o tempo das caravelas
onde embarcou com os marítimos para
extermínio dos roedores que
infestavam o porão das naus. Agora
só o dorso oferece às carícias
ou ao regaço o peso
do pequeno corpo, ronronando
a grata beleza de existir.

Autor : Inês Lourenço
Imagem : Ildiko Neer

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Um Campo Batido pela Brisa

A tua nudez inquieta-me.

Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.

Autor : Fernando Assis Pacheco
in “A Musa Irregular”
Imagem:Vicente Romero Redondo

quarta-feira, 22 de junho de 2022

O Pássaro da Esperança

Atravessas-me a alma
como uma seta
feliz de sentires-me o coração
e fico acesa,
acesa para o amor,
para a nostalgia
de alados tempos antigos.
Acende-me, o teu canto
que todo o meu tempo enobrece
e vibra,fiel, de quem é livre
e terno.

Contigo percorro
os mais doces lugares da Terra,
as mãos do sol
saídas do luar de Junho

Para iluminar os sonhadores
e repintar-te de verde
como as árvores,
onde uma fêmea leal
te espera
para um concerto a dois.

Se outros vierem
que cantem também.

Todos ( humanos e bichos)
somos necessários
a um mágico cantar de sonho.
E ao amor e sempre ao amor
que nos ilumina a vida
e transforma o mundo.

Autor :Fátima Pitta Dionísio Funchal,20 de Junho de 2020
Imagem : Omar Ortiz

terça-feira, 21 de junho de 2022

Como um livro


Como um
livro
Folheei o
teu corpo como um livro
à procura da tua alma : encontrei-a no índice.
.
Autor:Albano Martins
Foto:Martim Dimitrov

domingo, 19 de junho de 2022

Se...



Se te disserem que eu te esqueci
admite e sorri com a leveza da brisa. 

Há amores que permanecem para sempre
mesmo que sejam apenas e só migalhas na memória.

Eu nunca  te esqueci ...

Apenas segui em frente,
com a resiliência a fazer-me companhia.

O resto só nós sabemos ...

 Autor : Beatrice 2022-06-11
Imagem Arthur Elgort

sábado, 18 de junho de 2022

Estigma

Trini Schultz

Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.

Autor : José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, 17 de junho de 2022

..

 


Pensar
é como tactear uma sombra
entrar de rastos
numa profusão de escuros

Autor _ Ana Hatherly
in “Fibrilações”, Quimera Editores, Lisboa, 2005

quinta-feira, 16 de junho de 2022

O Riso


Por substituição das emoções a poesia
recorda uma arte escura: vagares, caligrafia
da estação que ondula, oscilação de um cálamo
a meio do branco. A natureza encurva-se,
o coração assenta de modo a ver o mundo.
Eis um dia inteiro, o trabalhar dos olhos,
a falta de sentido de iluminar a luz.
A sombra é sem esforço, a respiração respira,
encontra-se uma face, transforma-se num som,
pequenos acidentes dilatam-se no céu.
Palavras que se apagam. Pensamentos fáceis.
Se isto é poesia eu rio-me no fim:
é como estar sentado, não ter arte nenhuma.

Autor : Carlos Poças Falcão
Imagem : Willem Haenraets

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Realismo

 

Tinhas a mesma vontade que eu
de louvar a imperfeição
de chamar as coisas pelos nomes

mesmo as que nem chamar se chamam
e o desatino do extremo cansaço.
É por isso que a nossa felicidade,
a que nem sabemos se é
(mas podemos fingir)
está na tristeza que aclamo, logo ao despontar do dia
e na rotina que me despejas, por vezes,
ao fechar da noite.
A minha fé está na dedicação
com que arrumas a loiça lavada
e a tua,
está na emoção com que ajeito os lençóis
antes de fechar os olhos.

Não existe mais nada para além deste querer
Querer sentar-me contigo
e contar-te o desnorte amargo das
minhas palavras
querer
continuar a adorar-te, apesar da dor de estômago.

Não te escondo que já me doeram todas as coisas
a vida, a não vida,
a voz, os cabelos, o pão
mas ao saber-te sentado no momento em
que abrir a porta
deus da secretária de madeira
pai-nosso, amor-meu!
tão existente quanto despojado das
grandes coisas
não há mundo nem ponta de estômago por
mais inflamada que esteja

que me impeçam
de não-doer.

Autor : Cláudia R. Sampaio
Imagem : Clare Elsaesser

terça-feira, 14 de junho de 2022

Ode ao Gato


Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

Autor : José Jorge Letria
Imagem : May Lopes

domingo, 12 de junho de 2022

prazeres infantis


amadureci com a brisa, com o tempo
e o destempo, mas ainda gosto de molhar os pés
na água fria.

BeatriceM 09-06-2014

sábado, 11 de junho de 2022

....


O meu corpo enrosca-se na noite do teu corpo
adormecidas as minhas palavras ondulam na tua boca
da tua respiração soltam-se borboletas azuis
acordado sigo ainda os seus invisíveis trajectos
é neles que leio as palavras esquecidas na noite
uso cautelosamente o antigo saber divinatório
enquanto danças sobre a terra vestida de lavanda.

Autor _ Carlos Alberto Machado
in Registo Civil – poesia reunida, Assírio & Alvim, 2009
Imagem : Maria Oosthuize

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Regressa

 Se outra forma não há
De concretizar este amor,
Recolhe
Dentro do meu ventre
O teu desejo,
E regressa
Ao teu voo no meu rio
Quantas vezes teu pousar
O permitir.

Autor :.Margarida Afonso Henriques
Imagem : Vincent Romero Redondo

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Um dizer ainda puro

Metin Demiralay

imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.
dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.
diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.

Autor : Vasco Gato

quarta-feira, 8 de junho de 2022

veias


Nas minhas veias corre vento – por
isso, dá-me um vestido inflamado de
rosas e ensina-me as horas do amor:

daqui até a morte é um instante.

Autor :  Maria do Rosário Pedreira
In :O Meu Corpo Humano
Editor: Quetzal Editores Edição: abril de 2022
Imagem : Omar Ortiz