quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Queria dizer-te que não sei





Queria dizer-te que não sei
que há qualquer coisa
talvez desperdiçada talvez não
Tu sentiste-a disseste que era como
qualquer uma outra coisa que
esqueci
A tarde era talvez já fosse tarde
e a noite não vinha
─ como sempre
Queria dizer-te mas não sei se agora
me saberás ouvir


Autor  : Maria Alberta Menéres
Foto: Anna O.photograph

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Madrigal

Josephine Cardin

A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
é bem mais simples ainda:

"Era uma vez uma flor.
Nasceu à beira de um Poeta..."

Vês como é simples e linda?

(O resto conto depois;
mas tão a sós, tão de manso
que só escutemos os dois).

Autor : Sebastião da Gama

in 'Antologia Poética'

domingo, 28 de janeiro de 2018

arrumações

Victor Bauer

eu quero lançar para o mar
esta angústia de dias acinzentados
de mágoas embuçadas
de dores auguradas.

esquecer-me de mim
e deitar fora os farrapos
os laços
os medos
e tudo o que me lembrar de mim.

enquanto eu não me metamorfosear
nada mudará
e
eu serei apenas um caco partido
espalhado pelo chão.
.
Autor : BeatriceM 2013-01-20 (reeditado)

sábado, 27 de janeiro de 2018

Rua da Maianga

eduard gordeev

Rua da Maianga
que traz o nome de um qualquer missionário
mas para nós somente
a rua da Maianga

Rua da Maianga às duas horas da tarde
lembrança das minhas idas para a escola
e depois para o liceu
Rua da Maianga dos meus surdos rancores
que sentiste os meus passos alterados
e os ardores da minha mocidade
e a ânsia dos meus choros desabalados!

Rua da Maiaga às seis horas e meia
apito do comboio estremecendo os muros
Rua antiga de pedra incerta
que feriu meus pezitos de criança
e onde depois o alcatrão veio lembrar
velocidades aos carros
e foi luto na minha infância passada!

(Nene foi levado pró hospital
meus olhos encontraram Nene morto
meu companheiro de infância de olhos vivos
seu corpo morto numa pedra fria!)

Rua da Maianga a qualquer hora do dia
as mesmas caras nos muros
(As caras da minha infância
nos muros inacabados!)
as moças nas janelas fingindo costurar
a velha gorda faladeira
e a pequena moeda na mão do menino
e a goiaba chamando dos cestos
à porta das casas!
(Tão parecido comigo esse menino!)

Rua da Maianga a qualquer hora
o liso alcatrão e as suas casas
as eternas moças de muro
Rua da Maianga me lembrando
meu passado inutilmente belo
inutilmente cheio de saudade!



Autor : Mário Antonio

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O poema ensina a cair

Diggie Vitt

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúptia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Autor : Luiza Neto Jorge

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O tempo passa? Não passa

Ettore Tito

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.

Autor  : Carlos Drummond de Andrade
in 'Amar se Aprende Amando'

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Sem Bússola, sem Leme...

Danielle Richard

Cansada, exausta, do labor insano
duma vida incolor, sem fantasia,
vou ver se encontro, noutro meridiano,
a emoção que desejo em cada dia.

Vou procurar, sem lógica, sem plano,
um pouco de aventura, de alegria.
Não mais o miserável quotidiano,
antes o vendaval que a calmaria.

Antes dor... No barco em que navego,
sem bússola, sem leme, louco e cego,
vou procurar inexistentes rotas.

Ó meu veleiro doido, sem governo,
a caminho, talvez, do céu, do inferno,
sobre espumas e asas de gaivotas.


Autor : Fernanda de Castro

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Ainda te falta


Ainda te falta dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancurado papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.

Autor:Albano Martins 
Foto:KuSiu

domingo, 21 de janeiro de 2018

em procura de memórias

Anka Zhuravleva

num fim de dia ,fui pelas ruas
as mesmas que um dia
andarilhamos – juntos.

sem querer admitir a mim própria
pesquisei resquícios de ti
algo como, um aroma
ou um sorriso esquecido.

as ruas estão diferentes
mas são as mesmas em que deabulamos
e em todas elas, todas
eu senti – ainda-  a tua presença.


Autor : BeatriceM 2017-01-20

sábado, 20 de janeiro de 2018

Nocturno

Victor Bauer
O desenho redondo do teu seio
Tornava-te mais cálida, mais nua
Quando eu pensava nele…Imaginei-o,
À beira-mar, de noite, havendo lua…

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
Ornar-te o busto de uma renda leve
E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
Em ti, a branca irmã que nunca teve…

Pelo que no teu colo há de suspenso,
Te supunham as ondas uma delas…
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
Era um convite lúcido às estrelas….

Imaginei-te assim à beira-mar,
Só porque o nosso quarto era tão estreito…
- E, sonolento, deixo-me afogar
No desenho redondo do teu peito…

Autor : David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

A perfeição


O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fracção de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exactidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exactidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Autor : Clarice Lispector

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

ah a forma do amor devia tomar

ah a força do amor devia tornar
os corpos transparentes, até ao centro opaco
onde desejam. Se deste amor tão raro
te desejo, como pode
o duro deus negá-lo?
Este resto de vida que me cabe,
o veneno na taça, o corpo espesso,
como vivê-los sem a sombra de água
sem a língua de lume do teu sangue?

.
Autor ::António Franco Alexandre
Foto: Jark

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Às vezes as coisas dentro de nós

Mira Nedyalkova,

O que nos chama para dentro de nós mesmos 
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
 Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
 e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
 Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
 pelo movimento, pela forma, pelo nome,
 voltamos ao zero irradiante, ao ver
 o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
 o que não tem tamanho, mas está agora
 engrandecido dentro do novo olhar.

 Autor : Fiama Hasse Pais Brandão
 As fábulas

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

É urgente o amor

Victor Bauer

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Autor : Eugénio de Andrade

domingo, 14 de janeiro de 2018

anoitece

andre kohn

anoitece e eu desfaço um fio de ilusões,
são memórias apenas,
que entrelaço e enrolo,
nas vagas das minhas recordações,
não estás aqui,
é certo.

mas que faço com estas memórias
que guardo e sinto?

não nego, que tu foste mais que um acaso,
para quê?!

se tudo, ou quase tudo
ainda se resume a ti

beijo-te e tu nem sabes…mas sei eu
e isso me basta
há dias assim…límpidos com a tua face
resplandecente de inocência


e também de  pecado.

Autor : BeatriceM

sábado, 13 de janeiro de 2018

O Espelho

Diggie Vitt

Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.

Autor : Mia Couto
In Idades Cidades Divindades

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Mar Sonoro

Victor Bauer

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho.
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Autor : Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Tratado geral das grandezas do ínfimo

Brooke Shaden

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Autor : Manoel de Barros

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

...

Sabine Liebchen

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida
e não desistir da luta,
recomeçar na derrota,
renunciar a palavras
e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos
e ser otimista.

Autor : Cora Coralina

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Despedida

Kyle Thompson
Uma harpa envelhece.
Nada se ouve ao longo dos canais e os remadores
sonham junto às estátuas de treva.
A tua sombra está atrás da minha sombra e dança.
Tocas-me de tão longe, sobre a falésia, e não sei se
foi amor.
Certo rumor de cálices, uma súplica ao dealbar das
ruínas,
tudo se perdeu no solitário campo dos céus.
Uma estrela caía.
Esse fogo consumido queima ainda a lembrança do
sul, a sua extrema dor anoitecida.
Não vens jamais.
O teu rosto é a relva mutilada dos passos em que me
entristeço, a absoluta condenação.
Chove quando penso que um dia as tuas rosas floriam
no centro desta cidade.
Não quis, à volta dos lábios, a profanação do jasmim,
as tuas folhas de outubro.
Ocultarei, na agonia das casas, uma pena que esvoaça,
a nudez de quem sangra à vista das catedrais.
O meu peito abriga as tuas sementes, e morre.
Esta música é quase o vento.

Autor : José Agostinho Baptista
in “Paixão e Cinzas”

domingo, 7 de janeiro de 2018

É hora da partida



É hora da partida – esperada
A roupa cobre o meu corpo 
Agora só meu
E deixo desordenados 
Aromas impregnados no teu 

Descansas num mar revolto
De sentires 
De desejos consumados
E de olhos fechados – dormes
Sonhando prazeres partilhados

Já não estou mais ardendo
No lume que nos queimou
No ocaso que chegou
No eco que se desfez
Na hora da partida que se anunciou

E vou pela calada
Dançando em passos ligeiros
Ainda com vestígios de beijos e mel
E das carícias que ficam 
A flutuar em parcelas de saudade.
.
Autor : BeatriceM 22-01-2012 (reeditado)
Foto: Laura Makabresku

sábado, 6 de janeiro de 2018

um dia...



Um dia ela já ali não está. Acordas e ela já ali não está. Partiu de noite. A marca do corpo ainda está nos lençóis, está fria. (...)
Não há mais nada no quarto, só tu. O corpo dela desapareceu. A diferença entre tu e ela confirma-se pela sua repentina ausência.
Ao longe, nas praias, gaivotas gritariam na escuridão a acabar, começariam já a alimentar-se do vermes do lodo a remexer nas areias que a maré baixa abandonou. No escuro, o grito louco das gaivotas esfomeadas, parece-te de repente que nunca o ouviste.

.

Autor:marguerite duras
Foto:Iwanuus

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Diminuto

norv austria

São horas de apanhar o primeiro transporte público
que se atravessar no meu atraso.

Mas
por favor, deixa-me
pelo menos por agora
tentar ordenar os ponteiros deste relógio insustentável
em cujo tempo se privou de me transportar

Das mãos
é preciso exigir mais qualquer coisa
além dum mero adeus
um verbo qualquer
que dê, pelo menos, para comprar o pão de cada verso.

Por hoje
permite-me que vá
devagar
para que a poesia
onde quer que apareça
possa ter a duração de uma pedra
por mais um minuto
desmesuradamente finito.
Inefável.

Com que lábios te vais defender dos meus beijos
aí, onde nenhum passado nos põe a salvo da memória?

Deixa-me fazer um minuto de poesia
em nome dos pássaros
abandonadamente suspensos
em linhas de voo.

Um minuto de poesia
apenas um bocado
o suficiente para flutuvoar rente às ondas
pingando indefesas
à beira da sede.

Fazer um minuto de poesia
como se o silêncio doesse mais alto
que as próprias palavras.

Repetir incansavelmente o mesmo verso
até que o poema se canse de ser diferente.

Amormecer no teu colo
e poesiar-me por todos os lados
enquanto as sonolências perto da tua voz
me dizem baixinho, muito baixinho
quase em segredo:

Poesia
é o prazer que nos acompanha
quando se escreve em legítima defesa da solidão.

Autor :Paradoxos (Heduardo Kiesse)
daqui http://paradoxosdoedu.blogspot.pt/2011/

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Os Lugares-Comuns

Andre Kohn
Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionei o facto.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.

Autor : Adélia Prado
in 'Bagagem'

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Há palavras que nos beijam

Katerina Plotnikova

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Autor : Alexandre O’Neill