quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Um poema

O poema
sai barato
já não se escreve
com pena de pato

Um poema
é um poema
é um poema

Uma rosa
não é uma rosa
não é uma rosa

O rabo
é abstracto?
o poema
sobre o poema
(este poema)
engonha
mas não envergonha

Autor : Adília Lopes
In Caras Baratas - Antologia, Lisboa: Relógio D'Água, 2004

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

A voz solitária do homem





Há palavras que escrevemos mais depressa
o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhes é desconhecido
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono

Autor : José Tolentino Mendonça,
In Baldios, Assírio eAlvim, 1999





domingo, 24 de fevereiro de 2019

Amaste-me

O silêncio que nos martirizou
a distância que nos doeu
as circunstâncias estranhas
amargas
insuspeitas
frias
desinteressantes.

Amaste-me
eu sei!

E de nada serviu o meu olhar
envergonhado e faminto
sobre a tua pele
nua
e apetecida.

Autor : BeatriceM 2013-02-17

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Do Amor


Richard Blunt


Se te pedirem, amor, se te pedirem
que contes a velha história
da nau que partiu
e se perdeu,
não contes, amor, não contes
que o mar és tu
e a nau sou eu.

Autor : Fernando Namora
In Poema de Amor"

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

...



Igor Morski
.

Sózinho
onde
nada se encontra
onde
tudo é sonho
e o mundo
se fragmenta
nos desejos
mais ocultos,
eu
escalo memórias
revivo "estórias"
que só meu "eu" conhece.
Vago
entre imagens
que se formam
e dissolvem..

Autor : joanna.franko

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

...


Diggie Vitt

foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

Autor : Al Berto

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Encantatória

Lora Zombie

Custa é saber
como se invoca o ser
que assiste à escrita,
como se afina a má-
quina que a dita,
como no cárcere
nu se evita,
emparedado, a lá-
grima soltar.

Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia,
como a tecla certa arreda
do branco suporte
a porcaria.

Autor :-Luiza Neto Jorge
em revista Colóquio|Letras, número 78, Março de 1984, p. 77.



terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

PAISAGENS DA MESMA SOLIDÃO

 Ninguém me disse, um dia,
No escuro
Que há palavras que são sítios por dentro.

Ninguém me disse, um dia,
Que há noites que são quase lugares.
Paisagens da mesmo solidão,
Plena de outros lados:
As lágrimas principais.

Como ruas assim,
Que se existissem de tanto silêncio,
Seriam planícies de mais frias
E despovoadas,
Morrendo com tanta força que nunca
Se encontrariam no mesmo medo.

Porque no silêncio,
Há sempre o perigo de palavras às escuras

(onde tenho todas as ruas do mundo
À minha espera)

Autor: Duarte Temtem
 in o poema insone (Magna)

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Vivências



Victor Bauer
.
Regresso…sem hora nem data delimitada
Ao sítio onde num tempo me senti feliz
Sou contraproducente
E ao inverso das andorinhas
Que regressam sempre na primavera
Eu não tenho esse ritual…regresso quando me apetece
E me faz falta ao corpo e à mente

A viagem nem é  curta, em tempo, e distância
Mas regresso e fico neutralizada  a beber uma limonada bem fria
Imaginando que o limão é doce, quando sei que é amargo
E fico a ver o mar a bater na areia
Como uma valsa cadenciada
Por vezes num bailado descontrolado e impetuoso

Quando me chega um odor a tabaco
Não desvio a minha vista do meu ponto de vigília
Eu sei que não és tu

E parto até o próximo regresso
Ao local onde em algum tempo
Me senti feliz

Autor : BeatriceM 2019-02-16



sábado, 16 de fevereiro de 2019

Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
   está fechado:
   "não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

    O poema, senhores,
    não fede
    nem cheira

Autor : Ferreira Gullar
 in 'Antologia Poética'

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Hora de Ponta



Mirella Santana

Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática,
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre
apertada contra o peito, contra o visco da hora apinhada
na minha pele pública, na minha pele de todos.
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso
doce e cansado, os olhos brilhantes, a candura intacta
toma-me toda como se eu fosse um anjo
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho,
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para
os outros. No teu rosto ã hora de ponta aprendo a compaixão
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio.

Autor : Rosa Alice Branco
 in 'Da Alma e Dos Espíritos Animais'

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Traço Comum

descalço-me de sombras para chegar a ti
 as linhas do meu rosto são claríssimas
 nelas não vês o velho, a criança, o adulto
 vês apenas o traço comum
 que é onde eu procuro a tua mão
 na transparência da minha palavra inteira

Autor : Vasco Gato




quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Marianna e Chamilly

Eduardo Arguelles art

Quando partires
se partires
terei saudades
e quando ficares
se ficares
terei saudades

Terei
sempre saudades
e gosto assim

Autor : Adília Lopes
in 'Caderno'

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

O silêncio

Mara Light

Regressamos a uma terra misteriosa
trazemos uma ferida
e o corpo ferido
imprevistamente nos volta
para margens mais remotas

Giorgio Armani tinha declarado
àquele jornal inglês: «o luxo desagrada-me,
é anti-democrático.
Quero agora homenagear os operários de todo o mundo»
Eu só pensava em São João da Cruz
enquanto ouvia pela enésima vez:
«a moda substituiu o luxo
pela elegância»

João da Cruz fala de coroas,
resplendores, casulas
véus de seda, relicários de ouro e
diamantes

para lá do jogo das nossas defesas
qualquer coisa interior
a intensa solidão das tempestades
os campos alagados,
os sítios sem resposta

o teu silêncio, ó Deus, altera por completo os espaços

Autor : José Tolentino Mendonça

domingo, 10 de fevereiro de 2019

saudades

saudades do teu corpo
moreno
com aroma de amoras silvestres
misturado com o meu
aroma de framboesas.

somos e temos os aromas
que se completam em nós
dois
apenas.

Autor : - Beatrice 2019-02-10

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Madrugada


Loui Jover

Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes

Autor : Ferreira Gullar
in 'Antologia Poética'

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Vatícinio


Loui Jover

Hás-de beber as lágrimas sombrias
que nesta hora eu bebo soluçando!,
e o veneno das minhas ironias
há-de rasgar-te os tímpanos cantando!

Hás-de esgotar a taça de agonias
neste sabor a ódio... e, estertorando
hás-de crispar as tuas mãos vazias
de amor, como eu agora estou crispando!

E hás-de encontrar-me em teu surpreso olhar
com o mesmo sorriso singular
que a minha boca em certas horas tem.

E eu hei-de ver o teu olhar incerto
vagueando no intérmino deserto
dos teus braços tombados sem ninguém!

Autor : Judith Teixeira
in 'Antologia Poética'

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

...

Erik Johansson


Vivemos em um mundo onde os normais são loucos, e os loucos são normais.

Autor : Leandro Karnal

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

A Árvore da Sombra



A árvore da sombra
tem as folhas nuas
como a própria árvore ao meio-dia
quando se finca à terra
e espera
como um cão espera o regresso do dono.
Nós abrigamo-nos mais tarde ou mesmo agora num lugar
muito distante
onde o tempo recorta
um tapete que esvoaça no papel.
A casa da sombra
é branca e habitada.
Somos nós ainda
sentados ao fogo que o teu sorriso
acende e aconchega
no silêncio que ilumina
a árvore da sombra
para que a noite desenhe
o seu nome visível
e a sombra possa contemplar
Os ramos mais belos e o tronco mais esguio
do seu objecto.
Nesta sombra há um imenso amor
ao meio-dia.
A hora dos prodígios
é feita de segundos do tempo que há-de vir
e o horizonte
é a proximidade total da tua boca.

Autor : Rosa Alice Branco
in 'O Único Traço do Pincel'

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Estende a tua mão

Stephen Carroll

estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ar
a sorvo e sopro,
ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo

Autor : Herberto Helder
in a faca não corta o fogo

domingo, 3 de fevereiro de 2019

O teu nome

Lovi Jover

O teu nome ainda me sacia os lábios
Com uma suavidade
Que eu soletro baixinho
E só para mim

O teu nome é nome de rei
É nome de santo
É nome de rua
É o teu nome apenas

E tu sabes que eu gosto do teu nome
E que eu gosto de ti

Autor: BeatriceM

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Insónia


Penso que sonho. Se é dia, a luz não chega para alumiar o caminho pedregoso; se é noite, as estrelas derramam uma claridade desabitual.

Caminhamos e parece tudo morto: o tempo, ou se cansou já desta caminhada e adormeceu, ou morreu também. Esqueci a fisionomia da paisagem e apenas vejo um trémulo ondular de deserto, a silhueta carnuda e torcida dos cactos, as pedras ásperas da estrada.

Chove? Qualquer coisa como isso. E caminhando sempre, há em redor de nós a terra cheia de silêncio.

   Será da própria condição das coisas serem silenciosas agora?

Autor : Carlos de Oliveira
in Terras da harmonia

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

21 anos

Bogna Patrycja Altman

Os meus cavalos
espantaram-se

Como o Hipólito
da tragédia grega
bocados de mim
pendem
dos arbustos

Autor : Adília Lopes
in 'A Árvore Cortada'