domingo, 31 de março de 2019

Aliados


Victor Bauer

Sentou-se, cruzou as mãos
Olhou fixa para o chão de madeira encerada
E disse com voz calma e segura

Eu posso ter tudo controlado
E estou sempre perto do abismo
Não sou eu que o procuro
É ele que me persegue

O abismo é um aliado
Que eu não escolhi, mas acolhi.

Autor  : BeatriceM


sábado, 30 de março de 2019

....

Adam Bird

Os livros são poderosos instrumentos de transformação. E quanto mais interesses eu tiver, mais interessante eu fico.

Autor :- Leandro Karnal

sexta-feira, 29 de março de 2019

Cerimónia Funesta


Elena Dudina

O corpo não responde
às vozes de comando,
como um cão estropiado
já desdenha os apelos
os antigos convites
às funestas moradas,
esqueceu-se do ponto
vai olvidando senhas
os códigos das grutas
acumulando lixos
as servidões austeras
diluem-se num canto
o corpo não atende chamadas
não estremece ao ruído da chave
não suporta
qualquer intromissão
secou num aterro,
os restos à vista
a memória escava
da lembrança os rastos
avidamente suga
de tal fausto os ossos,
de tão vitais cerimónias
nos tão secretos barcos
mesmo o pouco que resta
ainda se mastiga.

Autor : Fátima Maldonado,
 in "Vida Extenuada" & etc, 2008

quinta-feira, 28 de março de 2019

Poema inútil com montanha



Alcove (Adam Andrearczyk)

Vejo a montanha à minha frente pousada 
Sobre a água sempre verde, e penso na inutilidade 
De tudo o que ela é, e na inutilidade de estar pensando nisto, 
Quando um pensamento inútil me sugere 
Que a montanha pode ser 
Um pormenor pensado por ela 
Na paisagem do meu próprio peensamento, para 
Com isto me levar a pensar sobre pensamentos, 
E não sobre montanhas, ficando ela, como antes, 
Pousada na água sempre verde, sem ser 
Pensada por ninguém. 


Autor : Rui Costa



quarta-feira, 27 de março de 2019

Rosto

Platon Yurich
Nunca vieste
quando o desejo
fazia um entalhe de sofrimento e apelo
na polpa, madura, do dia.

Nunca vieste
quando um golpe de luar
abria ao lado do meu corpo
um lençol fresco, para acolher-te.

A tua boca não prendeu
a flor dos meus lábios.
Nunca calei no teu beijo
a indizível palavra.

Nunca vieste

Respirei-te no sonho.
A morte terá o teu rosto desconhecido.

Autor : Luísa Dacosta
in A maresia e o sargaço dos dias

terça-feira, 26 de março de 2019

A Salvação do Mundo

kyle Thompson
Os anjos levaram as igrejas... 
Anjos envergonhados, de grandes asas tristes, 
que fugiam, escondendo o rosto, 
nas pregas dos mantos, que os incêndios enegreciam. 
Levaram as igrejas, os santos e os milagres. 
E os homens ficavam olhando o céu, 
os homens que tinham deixado os anjos levar as igrejas, 
de mãos postas, ajoelhados. 
As mãos que eram para não deixar os anjos levar as igrejas. 
Mas os homens já não sabiam, 
e os anjos julgaram que eles não queriam as igrejas para nada. 

A terra vazia e os homens de mãos postas, ajoelhados. 

Então surgiram os anjos de extermínio. 
E as longas espadas flamejantes 
deceparam as cabeças dos homens ajoelhados, 
que tinham fechado a porta das igrejas na cara da verdade. 

Autor : Adolfo Casais Monteiro
in 'Simples Canções da Terra'

domingo, 24 de março de 2019

Caminho


Caminho nas cores incandescentes, que escolho no olhar,
desato as correntes que me estrangulam o ser.
O trejeito irrefletido no ir,
o brado no vácuo de não saber para onde ir,
mas vou!
.
BeatriceMar 2013-03-16 (reeditado)

sábado, 23 de março de 2019

Astronomia

Vou buscar uma das estrelas que caiu
do céu, esta noite. Ficou presa a um
ramo de árvore, mas só ela brilha,
único fruto luminoso do verão passado.

Ponho-a num frasco, para não se
oxidar; e vejo-a apagar-se, contra
o vidro, à medida que o dia se
aproxima, e o mundo desperta da noite.

Não se pode guardar uma estrela. O
seu lugar é no meio de constelações
e nuvens, onde o sonho a protege.

Por isso, tirei a estrela do frasco e
meti-a no poema, onde voltou a brilhar,
no meio de palavras, de versos, de imagens.

Autor : Nuno Júdice
In O Breve Sentimento do Eterno
 Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008

sexta-feira, 22 de março de 2019

...

omar ortiz

Minhas mãos doceiras
Jamais ociosas
Fecundas. Imensas e ocupadas
Mãos laboriosas
Abertas sempre para dar
ajudar, unir e abençoar.

Autor : Cora Coralina

quinta-feira, 21 de março de 2019

Sobre um Poema

Joan Carrol
Um poema cresce inseguramente 
na confusão da carne, 
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, 
talvez como sangue 
ou sombra de sangue pelos canais do ser. 

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência 
ou os bagos de uva de onde nascem 
as raízes minúsculas do sol. 
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis 
do nosso amor, 
os rios, a grande paz exterior das coisas, 
as folhas dormindo o silêncio, 
as sementes à beira do vento, 
- a hora teatral da posse. 
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. 

E já nenhum poder destrói o poema. 
Insustentável, único, 
invade as órbitas, a face amorfa das paredes, 
a miséria dos minutos, 
a força sustida das coisas, 
a redonda e livre harmonia do mundo. 

- Em baixo o instrumento perplexo ignora 
a espinha do mistério. 
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne. 

Autor : Herberto Helder

terça-feira, 19 de março de 2019

A última corrida


Era um rapaz que partiu
para conhecer o medo
o seu coração arranhado pelas chamas
tropeções de um cego que foge da aldeia
nessa noite
quem conseguiria contar

de comboio em pensamento seguiu para Bréscia
a última corrida de aeroplanos do século
andava à roda de trinta mil libras
e ele queria muito voar sozinho
sobre florestas

ninguém soube mas a sua vida
vista daquele aeroplano maravilhara-o
chegariam os nevões é verdade
novas e novas sombras sobre a terra
mas a sua vida vista do aeroplano era tão grande
como nenhuma outra coisa que conheceu

cá em baixo diziam:
«o seu voo prolonga-se sobre cada floresta
e desaparece
nós vemos as florestas
mas não o vemos a ele»

Autor : Jose Tolentino Mendonça

domingo, 17 de março de 2019

não te iludas


não te iludas com as palavras que por vezes lês, e não compreendes.  não sejas apenas um leitor negligente sobre o que eu escrevo, ou escrevi.

sabes, as palavras não são perpétuas, por vezes caem no entorpecimento e depois passam a ser mentiras/verdades subordinando-se ao tempo em que foram escritas, e depois quando forem lidas.

não te iludas meu amor, porque tudo, tudo tem a sua finitude.

até mesmo as palavras.

Autor : BeatriceM 2014-02-16 reeditado

sábado, 16 de março de 2019

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Quando a voz lhe envelhecer nas palavras. Puxem-lhe os passos na direcção contrária do olhar. Lancem-no sozinho contra a cama e retirem as portas do casulo para quando entrar bater com o nariz no perfume das flores que não plantou. Quando estiver quase a descobrir. Destapem-lhe o futuro da frente e coloquem lá outra coisa que não seja passado. Leiam os gestos os dedos as mãos os braços a carne e gastem-lhe os caminhos de tanto andar a pé. Quando cair num sonho feliz. Respirem-lhe os versos devagarinho para não doer. Deixem-no escapar tranquilo e quieto nem que seja por um triz ou por um triste corpo devoluto.

Autor : Heduardo Kiesse

sexta-feira, 15 de março de 2019

..

a noite desvaneceu-se
em pedaços
perdi a lua, procuro-a...
caminho nua de palavras
no areal do meu destino,
estrelas tombam
na espuma, aqueço-as
no meu ventre,
luzem e liberto-as, aves
brilhando, na noite inexistente
tenho o amor em mim
em quarto minguante,
deslizo no vento
respiro nuvens e descubro-me
noite, azul latejando matizes
de poemas translúcidos,
embriagada de nenúfares...
uma luz branca, marfim
purpurina reacende -se
no meu colo...

Autor : Ana Cristina Macieira 17-11-2018
Retirado do facebook da autora

quinta-feira, 14 de março de 2019

Os Deuses

Kyle Thompson

Houve-os na Grécia antiga,
houve-os em Roma.

Onde estarão agora,
abscônditos mas vivos?

Seu exemplo nos falta.

—: Somos pálidos, tristes, receosos.

Onde estarão, que apenas
sabem deles as árvores?

Autor : Sebastião da Gama
in Campo Aberto

quarta-feira, 13 de março de 2019

O circulo temporário

eduard-gordeev

I.

Na cidade não se falava de amor
mas eu amava
e resistia à cidade
porque falava de amor.

II.

Uns viviam em ruas com nome
de escultor,
outros viviam em ruas com nome
de pintor,
muito poucos viviam em ruas com nome
de gente.

III.

Na cidade tudo era circular:
terminava no mesmo ponto
em que começava.
Redondos, inúteis,
sobrevivíamos
como as montanha lá ao fundo.

Autor  : Filipa Leal
in A cidade líquida e outras texturas (deriva

terça-feira, 12 de março de 2019

......

Kyle Thompson

“Dizem que de louco todo mundo tem um pouco.
Então considerando que muitos surpreendam-se comigo, de louco eu devo ter um muito.
E quer saber? Hei de ter então muito mais.
Ninguém se destaca nessa vida sendo igual a todo mundo.”

Autor : Augusto Branco

domingo, 10 de março de 2019

Oração


Que o tempo te sare a ferida
E que a dor seja atenuada

Porque essa dor é a tua
Ninguém a sente como tu

Que as cores do dia
Sejam um bálsamo para amolecer
A ausência
E a falta do amor
Dessa ave em permanente voejo

Que um dia tudo seja apenas
E só
Memória e saudade….

Autor : BeatriceM 2019-03-09

sábado, 9 de março de 2019

Aparição

Oriol Angrill Jordà
A mulher que por mim passou na rua, há pouco, 
foi uma coisa diáfana, gentil, 
cedo, a pairar 
na sombra dum jardim 
com flores, em baixo, ajoelhadas, 
ao senti-la na altura, 
e mandando-lhe o aroma em lágrimas, desfeito, 
para mantê-la em uma nuvem branca...
.
Mulher, coisa diáfana, vaga e bela, sem desenho,
logo fluido animando o colo duma nuvem, nuvem,
num ápice, trucidada pelo vento!


Autor  : Edmundo Bettencourt
in 'Rede Invisível' 


sexta-feira, 8 de março de 2019

...

Quero ficar só. Gosto muito das pessoas, mas essa necessidade voraz que às vezes me vem de me libertar de todos. Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa e não esta feia ressentida que me olha do fundo do espelho. Ouço duzentas e noventa e nove vezes o mesmo disco, lembro poesias, dou piruetas, sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo a alegria está instalada em mim.

Autor : Lygia Fernandes Telles

quinta-feira, 7 de março de 2019

Poema da Noite

Federico Erra
.
Já chorei vendo fotos e ouvindo musica;
Já liguei só para ouvir uma voz;
Me apaixonei por um sorriso;
Já pensei que fosse morrer de saudade;
E tive medo de perder alguém especial... (e acabei perdendo)
Já pulei e gritei de tanta felicidade;
Já vivi de amor e fiz muitas juras eternas... "quebrei a cara muitas vezes!"
Já abracei para proteger;
Já dei risadas quando não podia;
Já fiz amigos eternos;
Amei e fui amado;
Mas também já fui rejeitado;
Fui amado e não amei...

Autor : Augusto Branco

terça-feira, 5 de março de 2019

...

Richard Blunt

Na hora da despedida, é quase sempre mais triste ficar do que partir e, numa ilha, isso marca uma diferença fundamental, como se houvesse duas espécies de seres humanos: os que vivem na ilha e os que chegam e partem.

Autor :  Miguel Sousa Tavares
In Equador

domingo, 3 de março de 2019

Hoje um barco com flores


Hoje,
sem destino desaguo no dia,
como uma partícula de um arco-íris,
que a noite pariu no meu olhar,
e num barco com flores.

Sem eira nem beira,
junto a cumplicidade,
das cores que me trespassam,
o olhar e a alegria de SER.
.
Autor : BeatriceM 2014-02-23 reeditado

sábado, 2 de março de 2019

..

sayaka maruyama

Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até na íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.
Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.
Mas nós sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.

Autor : Fiama Hasse Pais Brandão
in Cenas Vivas

sexta-feira, 1 de março de 2019

Um Homem

Saul Landell


De repente 
como uma flor violenta 
um homem com uma bomba à altura do peito 
e que chora convulsivamente 
um homem belo minúsculo 
como uma estrela cadente 
e que sangra 
como uma estátua jacente 
esmagada sob as asas do crepúsculo 
um homem com uma bomba 
como uma rosa na boca 
negra surpreendente 
e à espera da festa louca 
onde o coração lhe rebente 
um homem de face aguda 
e uma bomba 
cega 
surda 
muda 

Autor : António José Forte
in 'Uma Faca nos Dentes'