quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Final

 


De mãos escassas nuas a flor frágil
renasce sem motivo senão vê-la
tardia nos caminhos
que até aqui me trouxeram, e a surpresa,
a nitidez dos colos tranquilos
onde as searas são o dia-a-dia
já maduras e a estrada que entre os campos
me leva desconheço hoje para onde
nem como nem porquê entre cidades
e plainos navegando e vendo as árvores
e o seu perfil exacto contra o céu.

Digo-me tanto aqui hei-de passar
que um dia o silêncio se abrirá
no rasto que existia na memória
e as lembranças se irão, morto estava
o desejo de flores e as mãos escassas
preparavam o seu fim
sem que a pena ou o medo as desviasse.

Autor : Nuno Dempster

Uma pedra

Atiro uma pedra à noite
a noite desfaz-se em aros
e há silêncio e solenidade
e trabalho o poema
com nova pedra na mão
mas não acuso tento salvar
aquilo a que me disponho
aquilo a que venho
em temas nem fios
frente à grande boca da noite
com fome de nomes de coisas
maiores do que nós
que adormecemos sem querermos
na pouca luz que faz.

Autor : Ana Salomé
Imagem : Joan Carol

domingo, 28 de agosto de 2022

abandonada

sinto-me como uma folha caída,
na berma da estrada,
rejeitada pela árvore,
ou tão somente, soprada pelo vento,
em dia de abandono…

Autor : BeatriceM 2022-08-27
Imagem : leszek paradowski

sábado, 27 de agosto de 2022

Noite por ti despida

 

Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que me dás em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada sem fim.
Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho.
A noite por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.

Autor : Casimiro de Brito
in "Solidão Imperfeita"
Imagem : Omar Ortiz

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Poemas



um deus que caminha
invisível, por dentro dos jacarandás
desenhando a orla da noite
o arrepio do mar.

os barcos esperam-no
quietos, guardando a luz,
os olhos do deus, o seu deslizar
entre as águas tranquilas.

Autor : Maria João Cantinho
Imagem : Katharina Jung

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

O teu amor,bem sei, é uma palavra musical



o teu amor, bem sei, é uma palavra musical,
espalha-se por todos nós com a mesma ignorância,
o mesmo ar alheio com que fazes girar, suponho, os epiciclos;
ergues os ombros e dizes, hoje, amanhã, nunca mais,
surpreende o vigor, a plenitude
das coxas masculinas, habituadas ao cansaço,
separamo-nos, à procura de sinais mais fixos,
e o circuito das chamas recomeça.

é um país subtil, o olho franco das mulheres,
há nos passeios garrafas com leite apenas cinzento,
os teus pais disseram: o melhor de tudo é ser engenheiro,
morrer de casaco, com todas as pirâmides acesas,
viajar de navio de buenos aires a montevideu.
esta é a viagem que não faremos nunca, soltos
na minuciosa tarde dos lábios,
ágil pobreza.

permanentemente floresce o horizonte em colinas,
os animais olham por dentro, cheios de vazio,
como um ladrão de pouca perícia a luz
desfaz devagarmente os corpos.
ele exclama: quando me libertarás da tosca voz dormida,
para que seja
alto e altivo o coração da coisas? até quando aguardarei,
no harmonioso beliche, que a tua visão cesse?

Autor : António Franco Alexandre
Imagem : Duongo Quoc Dinh

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

erro de sintaxe

 

De comunicação não percebo nada
gosto é de genocídios de palavras
de caçar coelhos só com sílabas
disparar sobre tudo
apenas com uma junção de letras
até ficar sozinha, só eu
e a minha incompreensão
que nunca é a dos outros, que
usam sempre outra sintaxe.

Não sou capaz é de silêncio
não dá lucro, não faz viver
o silêncio incorpora sempre
uns braços cruzados, uma desistência
pendurada na lingua
um ar de lesma muda, sem opinião
e eu até posso perder
mas aos pulos, de socos no ar
montada num canhão de bandeira
hasteada a disparar a minha sintaxe
não a dos outros, que é deles
não quero nada que não me pertença, nunca quis
e das poucas coisas que tenho
é o que me sai da boca
que mesmo que já mastigado
não me deixa a barriga vazia.

Se não me faço entender
é porque nem sempre é fácil admitir que
sou a primeira a render-me
tantas vezes que nem aqui estou
que nunca sei quando venho
tantas vezes não quero desistir
que nem chego ao começo
já sei que é uma ousadia querer compreensão
de nada serve,
cada um tem uma, muito própria
e a subjectividade é inabalável

Seriam precisos infinitos livros para
me exprimir, para chegar por palavras
à compreensão, à minha.
Mas mesmo assim,
nunca seria a dos outros.

Autor : Cláudia R. Sampaio

terça-feira, 23 de agosto de 2022

anoitece-me



anoitece-me
o poema
na rosa vermelha
de sangue.
já não voa,
já não sonha:
tem o ar
preso na asa.
que hei-de fazer
agora,
com esta flor
esquecida?
guardá-la em livro
não lido
seria
poema branco
perdido.
já sei: vou pingá-lo
pouco a pouco
no caminho que terei.

Autor : LuísM Castanheira

domingo, 21 de agosto de 2022

Destinos


Em todos os continentes

Os livros que lemos
Foram
E serão os nossos destinos

Em tantos livros te li
E em tantos tu me leste

Autor : BeatriceM 2017-08-20

sábado, 20 de agosto de 2022

O Fósforo na Palha

 

 Aos meus olhos
a cidade organiza
a sua tristeza.

Uma cintura aperta
a asfixia.
Um furo mais.

Um riso eleva-se
e sou eu que rio
sou eu que amo.

Auxilio a cidade
a suportar.
Um furo menos.

Não há pedras bastantes
para o nosso túmulo.

Egipto Gonçaves
imagem :Katharina Jung

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Uma guitara perpetua o verão

 

Longínqua, uma guitarra perpetua o verão
na larga casa da saudade.
Abro as janelas do mar
e no clamor das ondas
o sol de agosto desce calmo
sobre os barcos.
Sou jovem em qualquer lado
onde há o brilho indomável
dos anos, antes destes,
e de outros, longe de ti.
Chegam pescadores do lado
dos búzios e dos limos
com os pés calçados de sargaço
e a tarde é um farol nas nossas mãos.
Cada palavra que dizes
é um rio junto à fonte,
uma claridade a abrir,
a subir a pique sobre o mundo.
Ouso pedir-te
que te escondas comigo
nesta ilusão de juventude
plasmada na minha varanda
aberta sobre o mar;
que não apresses a voz;
que me deixes cerzida num abraço,
e que a tarde caia sobre nós
fulgente de ouro e luz
alheia ao peso do cansaço.

Autor : Maria Isabel Fidalgo
Imagem : Maria Magdalena Oosthuizen

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Esta noite não

 


Ela disse que eu não podia ir com ela
para o seu apartamento, porque
tinha de estudar para um teste. E
que eu não conseguia ajudá-la,
porque eu não era bom a matemática.
A única coisa que eu era bom era
a tirar-lhe as roupas, mas
isso ela já sabia fazer.

(Poemas de Hal Sirowitz, traduzidos por José Luís Peixoto)
Imagem : Vicente Romero Redondo

terça-feira, 16 de agosto de 2022

és só um homem esquecido pela terra

 


és só um homem esquecido pela terra,
os que te cercam não te reconhecem,
nada sabem das tuas mãos, dos teus olhos,
da coisa mais ínfima que seja tua.
Tu vês os que te cercam, mas eles
Rodeiam-te da tua ausência
com a perseverança de sobreviventes

do mundo aos lábios: a separação
do olhar de Deus

Autor : Rui Nunes
Imagem : Diggi Vitt

domingo, 14 de agosto de 2022

Vou

 

E levo de ti as tardes que tivemos
as conversas á beira-rio.

Os nossos silêncios repletos de diálogos
a ternura dos beijos trocados.

O passeio de mão dada
o teu braço sobre o meu ombro.

A sede na nossa boca
e nossos corpos em combustão.

E a noite onde a luxúria
se confundia com a pureza.

Autor : BeatriceM 2022-08-14
Imagem : Vladimir Volegov

sábado, 13 de agosto de 2022

A Poesia

Difícil, estreita passagem,
força quente perscrutada,
corpo de névoa, de imagem,
com sulcos de tatuagem,
voz absoluta escutada...

Destino de aranha, tece
com fios vários da vida
alegria se amanhece
ou chora se a luz fenece
pela noite perseguida.

Intimidade exterior,
pureza de impuras formas,
conhecimento e amor,
água límpida, estertor,
sem regras feita de normas.

Autor : António Salvado

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Fica ...


Fica…
Não me abandones os teus silêncios de vidro
onde se exila a tua verdade clara,
não abandones em mim
esses teus lugares suspensos, adormecidos,
onde a madrugada pura se expande em cânticos
de aves azuis.
Aguardo-te amanhã,
naquele beiral perto do céu
onde se avista o campo de lilases
semeado com todas as tuas palavras súbitas
para mim.

Fica....

Autor : Maria João Saraiva
in RIO DE DOZE ÁGUAS, 12 POETAS (Coisas de Ler, Ed., 2012)

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Olho para o livro ...


Olho para o livro que me emprestaste
e que nunca devolvi. Também ele olha para mim.
Tem as marcas da tua leitura, certos vincos
no branco das páginas, manchas subtis e difusas
como nuvens, restos das tuas mãos ou do teu olhar.
Espero que não penses sobre mim o que penso
sobre as pessoas que nunca me devolveram
os livros que emprestei. O que pensarás tu
sobre mim? Nunca li o livro que me emprestaste,
preferi sempre imaginá-lo. Suponho que ainda
se sinta estrangeiro entre os meus livros,
mas agora é demasiado tarde para devolvê-lo,
há tanto tempo que não falamos, não sei
se ainda guardo o teu número de telefone.
O que pensarias se agora, a despropósito,
te quisesse devolver o livro? Havias de pensar
que queria alguma coisa. Sabes, fico com o teu
livro porque não quero nada. Provavelmente,
nunca te devolverei este livro, fará parte do
meu espólio, é a última ligação que temos.

Autor : José Luís Peixoto
in Regresso a Casa

sábado, 6 de agosto de 2022

Ecos



Ana Luísa Amaral
Nascimento: 5 de abril de 1956, 
Falecimento :  5 de agosto de 2022
.
Em voz alta, ensaiei o teu nome:
a palavra partiu-se
Nem eco ínfimo neste quarto
quase oco de mobília

Quase um tempo de vida a dormir
a teu lado e o desapego é isto:
um eco ausente, uma ausência de nome
a repetir-se

saber que nunca mais: reduzida
a um canto desta cama larga,
o calor sufocante

Em vez: o meu pé esquerdo
cruzado em lado esquerdo
nesta cama

O teu nome num chão
nem de saudades

Autor : Ana Luísa Amaral
in Se fosse um intervalo

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Verbo

 

Tudo o que sou, sou apenas aquilo que não sou

O mar revolto, uma ilha deserta,
Um ponto parágrafo a contornar uma nova história ou uma vírgula em ascensão.
Talvez a derrota ou uma qualquer vitória.
Enfermo desajeitado com cariz de deputado.
Não importa o que sou, mas quem sou...
Uma hera a impedir as fissuras negras da velha parede,
O colapso do verbo inacabado,
Um futuro incerto num passado inesperado,
Um desenho rabiscado, a flor que ainda não rasgou a terra.
Sou chuva, sol e erva,
Lágrima de um ser desconhecido,
Amendoeira em flor, canto do canto ainda não parido.
Sou gaveta por abrir, malmequer desfolhado,
Sou tudo aquilo que ainda não fui,
Sou tudo aquilo que sou,
Uma reza em pecado, um peregrino desolado...
Sou a fúria que carrego na mão e este corpo despido.
Sou nada, nada do que sou, porque o que sou, simplesmente sou.

Autor : Conceição Bernardino
In - "o murmúrio dos impiedosos"
Imagem :Hayley Roberts

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Exílio


Quando penso nas ruas por onde andei,
nas ruas das cidades em que vivi
e recordo as janelas
que guiaram os meus passos
justamente até aqui, a hora tardia
de escrever estes versos sem dedicatória,
quando penso na teia emaranhada
onde me fui perdendo,
descubro na memória um clarão branco
e vejo desolado que não tenho uma cidade
a que pertença inteiro
e lhe devote as minhas palavras
de modo tão fiel como os choupos repartem
o sol com os seus bairros e dão sombra no estio;
não sei se o tempo apaga a origem,
a ilha que não é minha senão no sangue
de velhos capitães
que meu pai garantia correr-me nas veias
e o rio que foi meu, largo rio, mar
onde aquele que eu era se afogou.
Essa ilha naufragou sem a ver,
esse rio não corre mais,
e às vezes quando passo para norte
e o vejo não o sinto, é outro rio.

Se habitasse nas suas margens talvez
o exílio não tivesse surgido,
seria o mesmo rio que hoje flui ausente
na memória despida de sinais
e apinhada de rostos inúteis,
de mortos e de amigos que partiram
deixando as cidades por onde andei
desertas como o exílio que sinto esvaziar-me
de paisagens antigas,
de retratos de um velho álbum
nas folhas de um jornal ido há muito.

Autor : Nuno Dempster
Imagem : Brian Oldham