terça-feira, 28 de outubro de 2008

Quero-te



Quero-te
no secreto segredo de dizer-te
na asa da brisa repousada
no fulgor deste sol
no arrepio da água na levada
no sobressalto da pedra na falésia
no silêncio dos cumes
na claridade das madrugadas brancas
no respirar nocturno das ruelas
no calor do vinho a perfumar a boca
na solidão das mãos
na fímbria do desejo
(quero-te assim
longínquo e doce
terno e ausente)
só posso desejar-te nas palavras.
.
Autor:Maria Aurora Carvalho Homem
Foto:Antropina

domingo, 26 de outubro de 2008

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Autor:Mia Couto

Foto:KxxG


sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Para ti...


"Tu e não eu, se encarregará da tarefa de destruir tudo o que vivemos, de acordo com a lei do excesso que é a única que compreendes: tudo ou nada, verdade ou mentira, amor ou ódio.
Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu tantas vezes, como nunca foi de mais ninguém.
Assim vou vivedo sem ti e sem procurar saber de ti. Mas sei de mim, sei do imenso vazio da tua falta, que nada preenche nem faz esquecer."
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Autor :Miguel Sousa Tavares, Não te deixarei morrer David Crockett
Foto:_-_Eau_-_

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Cedo ou tarde

Cedo ou tarde
Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.
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Autor:Albano Martins
Escrito a vermelho


segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Meus pensamentos são nómadas

Meus pensamentos são nómadas
se vagarosos
como a água que vem da montanha
e não sabe nada
do coração dos homens.
O meu, por exemplo,tem a leveza do vento
e corre para casa como se fosse
um cão que precede
os passos do dono.

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Autor:Casimiro de Brito
Foto:Natália Stag

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Se eu nao te amar mais

Se eu não te amar mais me
Caia o mar nos ombros
Me caia
Este silêncio pelos ossos dentro
Me cegue os olhos esta sombra
Me cerre
Esta noite num escuro mais profundo
Do que a chuva de ti de mãos tão leves
A figueira do meu sangue se emudeça
De pássaros à espera dos teus passos
De outra voz por sobre a minha
Morta
E as ruas do teu corpo eu desaprenda
Como desaprendi os dedos que em tocam
E se eu não te amar mais me caia a casa
De costa no teu peito como o vento
.
Autor:António Lobo Antunes
Foto:Artur77

terça-feira, 14 de outubro de 2008

"

"E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.
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autor:Miguel Sousa Tavares

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

As palavras em trânsito


Resvalas neste sopro.
Sabes
que tens o olhar ferido
desde sempre, que o incêndio
das palavras em trânsito celebra
prescritas sílabas, ancorados
ritos, desprevenidos
equinócios.
Dantes, havia um mar crispado
na fissura dos lábios.
Hoje, apenas
algumas gotas de sal.
.
Autor:Albano Martins
in:O Mesmo Nome(1996)
Foto:Natália Strag

domingo, 12 de outubro de 2008

Poema da despedida

Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo
.

Autor:Mia Couto

Foto: BoroG

sábado, 11 de outubro de 2008

A Casa Quieta



"Quero acreditar que já não estarias em casa por alturas em que cheguei mas não sei dizer. A verdade é que não te procurei. Mais uma vez. Penso que fiz as coisas do costume, penso hoje quando penso nisso que fiz as coisas do costume, terei deixado o sobretudo ao acaso, abri o frigorífico fechei abri uma outra vez, sem saber bem o que procuro, acontece-me quase sempre. As coisas do costume. Vagueei sem saber bem, o sobretudo caído alguém há-de arrumar, tu tratas disso. Do frigorífico abro fecho abro outra vez, quero pouco, não sei que quero, deixei de beber prometi-te acho que te prometi, não sei que beba."


Autor:-Rodrigo Guedes de Carvalho
Excerto :A Casa Quieta
Foto:Mabar

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

sentei-me


sentei-me sem a presença do destino,um quase nada…pousado na bruma, deixei que tudo me invadisse,foi então que voei…
.
Autor:Almaro
Foto:Laluna Bel

terça-feira, 7 de outubro de 2008

são

São duas e tal da madrugada e tenho medo
Tu já não estás comigo.
Hoje deito-me só.
Levanto-me só
Quero dormir não consigo, sinto a falta de ti na distância do meu abraço.
Tu sabes que gosto de te sentir.
Descansar a minha mão em ti
Beijar-te pela madrugada enquanto dormes sorrindo.
Olhar-te
Tu sabes e já não estás.
E sinto frio o teu lado da cama
E sinto esta cama tão grande sem ti.
E tu não estás!
E eu amo-te.
É mais forte que eu.
Este sentir amordaçado…
.
Autor: joão marinheiro

Foto:Paulo César http://www.paulocesar.eu/ - paulo cesar

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

...

a bruma da minha cidade é um retalho de dor, cada pedaço é uma cor, cada tom uma vida. passeio-me só, sem lua nem lobo, entre a luz e a sombra de cada uma. vagabundo navegante sem cidade nenhuma…
.
Autor:Almaro
Foto:Beatrice

domingo, 5 de outubro de 2008

Nas minhas mãos...

Nas minhas mãos
Deslizo no teu corpo...
As minhas mãos trémulas.
Percorro as linhas
De uma escultura perfeita,
E no suor da tua pele
Perco o medo de sentir.
Um momento único
De cada segundo que passa!
Nos meus dedos
Levo a inocência,
De um amor banido
Que se oculta,
Na textura do prazer
O estado natural do inconsciente.
Deslizo no teu corpo...
As minhas mãos pertencentes
Das sensações deslumbrantes,
Que a minha boca cala
Num beijo único.
Dois corpos despidos
Que se enaltecem de formosura
Nas minhas mãos...
.
Autor: Conceição Bernardino
Em "Alma Poética"
Página 19
Foto:Konradluczenczyk
.

um selo

um prémio atribuido a este blogue por
http://atilasiqueira.blogspot.com/
obrigada.

sábado, 4 de outubro de 2008

Noite

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.
Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.
São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.
Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.
Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.
Também a noite é escura.

Autor:Agostinho Neto
Foto: bornslippy