terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Amei-te


Amei-te
porque o teu olhar numa tarde se encheu de lágrimas,
e falaste em morrer, e tremeste de medo.

Contudo
não eras mais que uma flor corrupta,
dessas que a vida enleia e usa
e depois atira para uma sarjeta lamacenta.

Mas, para mim, eras toda inocência, toda pureza branca.
Porque a inocência é um dom de Deus,
o dom só concedido
àqueles que mais ama.
Por isso, os homens só aparentemente sujam
as pequeninas rosas.

Ah! tivesse eu forças para seguir-te,
embora de longe, mas atentamente,
ajudando-te a subir o agreste calvário!

Autor : Saúl Dias
Imagem : lizzi

domingo, 29 de janeiro de 2023

Sempre soube quem eras,


Sempre soube quem eras, embora a razão se contraísse em mim cega e surda.

Eu sentia-me como um cão escorraçado, e tu sabias entrar no meu olhar, e as palavras para comigo eram como um afago que matava a sede a quem sempre a tivera por saciar.

Sempre soube quem eras.

Uma presença que era apenas uma sombra e que apenas fazia sol quando dele necessitava.

Uma ilusão incandescente, quem em mim vivia, mas, só em mim.

Fizeste-me bem, muito bem, na mesma simetria que mal, muito mal.

Mas, existe o tempo para mitigar os nossos erros e com eles aprender algo.

Sempre soube quem eras.

Por isso, vou sem queixas, apenas deixo a quimera se desvanecer.

Na tarde.

E fecho os olhos para o sol não me encandear.

Afinal !

Quem nunca viveu uma quimera aquiescida?

Autor : BeatriceM. 2023-01-29

sábado, 28 de janeiro de 2023

Trago-te ao Espaço da Janela


Trago-te ao espaço da janela.
De novo surgiram deste lado da rua.
Em voz baixa disse «uma alucinação». A
única resposta foi entrar em casa
subir ao quarto mudar de roupa
ser jovem com quem soube bem ser jovem
sábio com quem quiseste ser sábio
velho com os velhos.

Trago-te para perto da janela
o rio vê-se daqui.
A cor da terra circula.

«Talvez seja a morte» «não»
«se for a morte o coração baterá mais ou menos forte».
O corpo
não tem grande lugar.

Autor : João Miguel Fernandes Jorge

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Prognóstico


Poeta,
Creia,
Nem tudo está perdido,
Porque,
Felizmente,
Sobretudo o mais,
O seu ideal,
A muitos outros ainda comove,
Demove
e
Predomina


Autor - Ada Ciocci Curado, no livro "Acalanto". Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1991
imagem Achraf Baznani

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

a rectidão da água; o crescimento


a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para
o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.

Autor:António Franco Alexandre
Imagem : Steve Arnold

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

As Camélias

 


Envolvida num xaile de ternura
encosto as minhas costas ao teu peito
cruzas os braços sobre as minhas ancas
de muito leve beijas-me os cabelos
Sonolentos pousados junto ao fogo
bebemos um licor do mesmo copo
ouvimos essa música dolente
onde um sax nos conta solidões
Mordiscas-me a orelha sem enfeites
respostas a poção do meu perfume
as tuas mãos procuram o meu peito
debaixo do calor da camisola
Os gestos são de sempre, são exactos
tudo está certo e nada está perdido
sob a manta xadrez os pés descalços
procuram-se e encontram-se em sossego.
Sentimo-nos eternos de tão ternos
Sabemo-nos humanos de tão bichos
Por isso é que as camélias desabrolham
mais brancas do que as neves de Janeiro.

Autor : Rosa Lobato de Faria

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Os Significados



Não sei como tudo começou: suponho
que havia uma figura que depois
se estilhaçou para formar um puzzle.
Mas se juntarem todas as peças
talvez não haja nenhuma figura, e então
de que origem intacta partiu tudo
o que depois se quebrou? É impossível
fazer estilhaços de estilhaços sem uma
coerência primeira, agora ausente.
Quando todas as peças se juntam
estaremos reduzidos ainda a uma peça
de uma figura maior, ou essa figura
é uma utopia pragmática, instrumental,
que permite algum sentido ?
Ó significados, para vós, na infância,
tinha um caderno.
 
Autor : Pedro Mexia
Imagem : Michelle Ellis

domingo, 22 de janeiro de 2023

Tatuagens



Nos desencontros que existiram entre nós
O silêncio guardou como tatuagens
Os abraços e os beijos que não trocamos

Autor : BeatriceM  2023-01-22
Imagem : Martina Bisaz

sábado, 21 de janeiro de 2023

A Poesia adormeceu


A manhã acordou
do sono do poema
as palavras adormecidas
foram esquecidas
Acordo da canseira do sonho ___
___ da subversão da memória
acordo de um lugar
onde estou obrigado
ao reencontro com as sombras
onde deixei o poema
agarrado às paredes
do lugar matricial
Acordo onde nasceram malmequeres
das raízes do meu poema
que entretanto esqueci

Está frio!
receio que a poesia
me tenha abandonado.

Autor :Luís Rodrigues 2023-01-18
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/2023/01/foto-do-autor-do-texto-
Imagem :desconheço o autor

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Filhos da Terra

Começo o dia a fazer gestos supérfluos
mas de que me sustento:
Digo “Bom dia” às flores da casa e da varanda
mesmo às urtigas que aí agora proliferam.

Não, não as extermino.

Admiro-lhes a persistência e a rebeldia.
São marginais nos jardins, perseguidas pelos jardineiros.
mas está provado que as plantas ditas
daninhas
têm uma função na Natureza!

Bem-vindas todas, minhas queridas plantas,
As que plantei e as que me invadiram o território!

Assim os homens tratassem os outros homens
que lhes pedem guarida!
São, como todos nós,
filhos da Terra!

Autor : Teresa Rita Lopes
Imagem : Kindra Nikole

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

A Fome

 

 Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,
aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.

A fome fala através das feridas.

Autor : Luís Miguel Nava. 
Imagem Mary Parker


quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Cortina



A cortina se estufa
quarto adentro como se viva
a primeira trovoadareboa lá fora
o cachorro corre e
se esconde na escada
escura
a cortina se estufa
 
como se animada por dentro
da trama do tecido
o fole de um pulmão
que sugere:
nada mais
urgente do que inspirar
este momento
(nada:
nem mesmo um cortejo inteiro
de notícias ou poemas)
este momento
a tempestade em prelúdio
e o sopro
de lilases
que ela traz.

Autor :Adriana Lisboa
Imagem : karen hollingsworth

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Compêndio


Dizias: daqui o mar parece '
uma tarântula
azul. Eu respondi:
vermelhas
são as flâmulas,
das algas e o fermento
das águas.

Escrever
é isso: fazer
da vida uma pauta
e um compêndio de espuma

Autor :Albano Martins
Imagem :Eric Rubens

domingo, 15 de janeiro de 2023

balada

sempre que ouvia aquela balada
em mim ressurgiam
tempos outros
e eu cerrava os olhos
preservando segredos
afogando saudades
revivendo palavras.
.

hoje por um acaso
ouvi algures aquela balada
e sem querer
de meus olhos consternados
uma lágrima rebolou
e uma ternura inundou-me
em forma de gratidão.

Autor :BeatriceM - 2023-01-15
Imagem : Irene Rudnyk

sábado, 14 de janeiro de 2023

De Esquecer

 

Demorei-me muito tempo ao pé de ti.
As portas fechadas por dentro, como se encerrasses
o amor e a lei. Demorei-me demais. Ao fim da tarde,
nesse mesmo dia que já morreu,
olhámo-nos devagar, mas distraídos. Diria até que anoiteceu.

Nunca falámos do amor que chega tarde.
Nem o interpelámos (como se já não pudesse
ter nome). Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.

Vês aqui alguma figura? Ninguém vê.
Repara no ponto preto que alastra na margem do quadro,
nas minhas lágrimas desse tempo.
Relê.

Autor : Luís Filipe Castro Mendes
Imagem :Eric Wallis

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

O som desse adeus



A tua boca ainda ressoa no eco do quarto (são
palavras que ficaram bordadas na pele, perdidas
na bainha dos lençóis que as noites brancas
enxovalharam) como restos de um beijo que perduram nos retratos.

Ficou o teu perfume quando abro o livro de poemas que
deixaste por ler, o mesmo que largaste ao lado do candeeiro
que de tão cansado já não vive. Não há luz que resista ao
desencanto de uma cama, ao suor lavado e à voz morta de um

corpo que emerge do vazio e se ilustra no frio das cinzas.
Não fechaste a porta antes de sair e por momentos achei
que as palavras largadas ao acaso regressariam contigo.
Mas não, escusaste-me ao som desse adeus.

Autor : Carla Pais
Imagem : Zayats Alexey

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Entrei pelo mar ...

Entrei pelo mar mulher
açodado, a colher algas
Esqueci-me do meu mister
embalado pelas ondas.

O mar homem não se esquece
embalado pelas ondas.

Autor : Ruy Cinatti
Imagem : Evan Atwood

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Afirmas que brigámos

Afirmas que brigámos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
e vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembranças? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo - é minha! - a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
que eu costumo vestir quando está frio?

E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?

De quem é esta briga? Não me lembro.

Autor : Rosa Lobato Faria
Imagem : David Talley

domingo, 8 de janeiro de 2023

Perdão


Começar o ano novo perdoando
Sem vacilações nem rancores
Pois um dia eu do perdão estarei precisando.

Autor : BeatriceM 2023-01-08
Imagem : Boyana Petkova

sábado, 7 de janeiro de 2023

A Gaveta do Fundo



A gaveta do fundo: onde guardava
brasas e joias de família –ou seja, reservas de calor
para os dias do frio que aí vêm.

A gaveta do fundo:
forçada a fechadura, saqueada,
desmantelada em tábuas e ferragens.

Dada a beber às altas labaredas
que, bebendo, multiplicam a sede,
em vez de a extinguir.

Autor : A:M.PiresCabral

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Ao Amor

Muito amo as criaturas, porém,
sobretudo eu amo o poeta,
por ser ele o senhor da sensibilidade,
da emoção e do sonho.

Enfim,
eu amo a palavra por permitir-me dizer ela
o quanto eu amo.

Autor : Ada Ciocci Curado
In 'Acalanto', 1991
Imagem : Ildiko Neer

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

...

 

A vida devia ser duas; uma para ensaiar, outra para viver a sério. Quando se aprende alguma coisa, está na hora de ir.

Autor : João Ubaldo Ribeiro
Imagem :Karyn Teno

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Eu preciso de silêncio

 





 

Eu preciso do silêncio

E o silêncio precisa de mim

Num cantinho esquecido

Visitado somente

Por flores de jasmim

 

Alexandra Santos

As letras do teu nome

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Fim de Festa



Ardem os sinais do coração.
Eis o pátio, deserto e claro
onde adormeceram as palavras que disseste.
Chegam aos olhos e pousam, ressonantes.
Tudo dói, canta e arde
entre os estorninhos das sílabas.
Voltaste sabendo que há palavras
que nunca morrem como serpentes,
puras são, minúsculas conchas
dando à costa da fala
a chama entontecida e fulminante da claridade.
Neste pátio deserto da tua vida
dirás como o velho navegante das estações:
“Dou-me bem com o mundo
na selva do meu silêncio.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto
Imagem : anna derzhanovskaya