terça-feira, 31 de maio de 2016

pelo areal


pelo areal
estende-se um espelho
de manhãs desenganadas.

os incêndios
arderam nos poemas
de noites eternas
sem perdão.

ouve - se
o relógio de um corpo
descompassado
por pecados não cumpridos.

quero um vento!
de regresso
à maré,
mãe
de todas as batalhas.


Autor © João Costa . 21.maio.2016

domingo, 29 de maio de 2016

Não sei se foi a solidão

Eric Zener

Não sei se foi a solidão,
ou a saudade,
que fez pousio na minha cama.

Nunca falamos, nem a quero ouvir,
nem saber ou entender, o que
tem para me dizer.

Não a convidei,
mas ela coabita todos os dias,
e todas as noites a meu lado.

Autor : BeatriceMar

sábado, 28 de maio de 2016

Embriaguez

Richard Blunt

Toda a noite bebi vinho.
Mas foi o teu corpo
que me embriagou.

Autor  : Gonçalo Salvado

sexta-feira, 27 de maio de 2016

No dia em que emudeceste a cidade

Paolo Barzman

No dia em que emudeceste a cidade
um sonho atormentou-me a noite

havia uma margem
onde uma frondosa árvore
em desespero
tentava abraçar o vento

e o vento passava e ria
intocável

um pássaro trazia a manhã à janela de um rio
onde tu banhavas o verbo
- ventre do poema
mais secreto e indomável

e a vida, meu bem
esse fogo
tão bendito quanto maldito
ia secando todas as águas...

trouxeste o tempo para dar de beber aos peixes
- esse quase nada onde quase tudo assenta -
e um muro de espelhos ergueu-se!

ao olhar o meu reflexo no muro
arranquei os olhos
para não voltar a ver-me

eu era o germe do silêncio
que chorava versos mudos
condenado a roer a memória mais funda
até que o verbo... já não doa.

Autor : Sónia M
http://soniagmicaelo.blogspot.pt/

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Atalhei a noite

Paolo Barzman

Atalhei a noite,
Tentei chegar ao trilho mais certo dos teus passos
Caminhando no cerejal.
A velha casa era agora um borrão no crepúsculo,
Lembrava-me a fúria das crianças em louca correria.

Percorri, às apalpadelas, o quarto escuro, produzido pela idade
E foi aí que pedi a Purviance um copo de água.
Ela adiantara um torrão de açúcar para que a memória
Não fosse um frango fugido do galinheiro.

Alimentara-me de tudo isso, e nem o teu corpo encontrara
Para que a aventura fosse mais doce,
Mais secreta de certezas.
Sentira-me envergonhado por ser surpreendido
Quando te procurara
Tacteando uma imagem de ti.

Olhei pela janela.
Vi os ciganos em viagem em direcção ao sul.
Não sei se ias.
Não sei.

Eu fui.

Autor  : Rui Pedro Gonçalves
in Telhados de Vidro nº12, Averno, Lisboa, Maio de 2009


quarta-feira, 25 de maio de 2016

Entender

Steve Hanks

Há os que querem e podem.
Há os que podem, mas não querem.
Há os que querem, mas não podem.
E os que nem procuram!

Autor : Maria Petronilho

terça-feira, 24 de maio de 2016

A Vertigem da Luz


No tempo das romãs
para alumiar o voo dos pássaros
tilintam sinos
no bico dos teus seios

cúmplices (e)ternos
no baloiço das marés

esmaiam barcos
numa campânula de sons

desnuda-se em relâmpagos
a vertigem da luz

Autor : Eufrázio Filipe
http://mararavel.blogspot.pt/

domingo, 22 de maio de 2016

sabes

сандра бирман

sabes, que se um dia eu embarcar contigo
nesse sonho, sem presente nem futuro,
quiçá apenas passado, eu levarei os gatos,
mesmo que eles enjoem o mar em que navegas.


BeatriceMar

sábado, 21 de maio de 2016

há noites assim

Mikko Lagerstedt

Há noites assim não de outra coisa
que são de si mesmas cheias
até ser insuportável
até cada corpo cheirar exactamente
ao cheiro da sua alma. Há noites assim
que somos nós: Deus nos defenda
de tanta noite haver por dentro
por fora de nós mesmos.

Autor : Bernardo Pinto de Almeida

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O teu coração dorme comigo

Parvana Photography

Aceitar o dia. O que vier.
Atravessar mais ruas do que casas,
mais gente do que ruas. Atravessar
a pele até ao outro lado. Enquanto
faço e desfaço o dia. O teu coração
dorme comigo. Agasalha-me as noites
e as manhãs são frias quando me levanto.
E pergunto sempre onde estás e porque
as ruas deixaram de ser rios. Às vezes
uma gota de água cai ao chão
como se fosse uma lágrima. Às vezes
não há chão que baste para a enxugar.


Autora : Rosa Alice Branco

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Ainda o Deserto

maszu

Quando o deserto começa a ser por dentro,
alastra a mancha de secura sobre o que chamamos coração
e só esperamos que a noite chegue, pois nenhuma brisa
se levanta já para a podermos imaginar.

Autor : Luís Filipe Castro Mendes
in Lendas da India

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Um Dia, de Repente

steve hank

Um dia, de repente,
arrastam-nos à força
para um lugar incerto.

Um dia, de repente,
Desnudam-nos impudica/
mente.

Um dia, de repente,
somos apenas um ser vivo:
verme ou gente?

Autor : Lara de Lemos
in 'Antologia Poética'

terça-feira, 17 de maio de 2016

Aragem

juan carlos boveri

Como aragem perfumada
a mim te entregas, minha amada.

E não sei se existes ou se te sonho:
meu desejo te nomeia
pura brisa de folhagem.

Que aroma me envolve quando te despes?

Esta fragrância que me inebria
vem do teu corpo ao desnudar-se
ou da luz rosada que amanhece?


Autor : Gonçalo Salvado

domingo, 15 de maio de 2016

tenho o livro



António Curnetta

não sei horas, nem tempo, nem tão pouco prazos,
conservo imagens (nossas) ainda.

choveu e nem me importa, gosto de sentir a chuva a cair
tenho o livro (o teu)
já o li e reli.

e quero pensar que nunca chega o términus
para não me desvincular do que ele me diz e desdiz
sinais de luta de sonhos de cinzas
e de reedificação.

deixo a imaginação a vaguear e as flores a perfumar o dia.

Autor: BeatriceMar


sábado, 14 de maio de 2016

Era o último amor

Nicole Burton (Parvana Photography)

Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem advinha
o sabor pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.

Autor : Luís Filipe Castro Mendes

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Minha boca

Peter Brownz Braunschmid

minha boca
é pouca
pro desejo
que anda à solta

Autor : Martha Medeiros

quinta-feira, 12 de maio de 2016

quero dizer-te: não morras

Ezgi Polat

quero dizer-te: não morras.

Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.

Autor : António Franco Alexandre


quarta-feira, 11 de maio de 2016

Rajada

Nadja Berberovic

Abram-se as portas do inferno
para o meu amor!
Rasgue-se a terra num rugido eterno
para solver a minha dor!...

Trágica cavalgada
do meu pensamento!
Tu andas batalhando o meu tormento
Num rumor de maldição!

Oh rajada infernal!
leva-me o coração,
onde vibra a agonia do meu mal...

E se amarrada à minha cruz de fogo,
nesta ânsia rubra, eu não vencer a Dor,
dispersa seja a queixa do meu rogo!
- E que o vento e as ondas,
a fiquem gritando
num eterno clamor!...

Autor  : Judith Teixeira
in 'Antologia Poética'

terça-feira, 10 de maio de 2016

As gavetas

katia chausheva

Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.


Autor : Pedro Mexia

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Há tardes assim

Danielle Richard

Há tardes assim. Uma ou outra tarde em que
a brisa se solta das teias do tempo e flui serena
nas margens de um rio como quem caminha
devagar. Muito devagar, ao encontro do aconchego

de uns braços – os teus. Um calor que nasce na tua
pele e se propaga nessa brisa como uma folha
que dança nas costas de um vento brando e pousa
depois no leito doce de um açude, que a beija

e acolhe como uma ninfa. Quero ser folha e dançar
no teu peito, ser a brisa solta que te enlaça e sentir
os teus lábios desenharem as linhas do meu corpo – tal
e qual os flancos beijados por um sal doce além-mar.

Autor : Carla Pais

domingo, 8 de maio de 2016

A Nossa Vez

Ezgi Polat

É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar

e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera

e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer

a nossa vez.

Autor : Rui Pires Cabral
in 'Longe da Aldeia'

sábado, 7 de maio de 2016

A cidade é um chão de palavras pisadas

Paolo Barzman

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.


Autor : José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, 6 de maio de 2016

O outro


Willem Haenraets

Vão para ti, amor de algum dia,
os gritos rubros da minha alma em sangue;
vives em mim, corres-me nas veias,
andas a vibrar
na minha carne exangue!

Mas, quando nos teus olhos poisa o meu olhar
enoitado e triste,
vejo-te diferente…
Aquele que tu eras, e que eu amo ainda,
perdeu-se de ti
...e só em mim existe!

Autor : Judith Teixeira
in 'Agosto'

quinta-feira, 5 de maio de 2016

MUSEU

ezgi polat

Vasculhei as tuas coisas como um detective.
Tentei descobrir porque deixaste de gostar de mim.
Não conseguia reduzir a um só motivo.

Uma das minhas gavetas está cheia de tralha tua.
Eu queria arranjar um apartamento maior,
e ter um quarto só para ti.
Iria tornar-se numa espécie de museu.
A tua ausência iria estar em exposição.

A tua fotografia está no armário.
Está ao lado dos livros que li,
e que não tenciono reler.

Autor :  Hal Sirowitz
daqui:https://www.facebook.com/DoLadoEsquerdo

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Feitos de Vento

MAJA TOPCAGIC


..ainda me estremeces no peito
como arrepio de um sopro de vento

o teu nome inscrito na mudez de um grito
que se faz ouvir na noite

a nitidez da memória
de uma tarde quente

a placidez dos gestos
a esconder o desassossego do ventre...

e o corpo...
...tão perto
no encontro sereno da fala...

os olhos
bebiam o horizonte distante
como se soubessem
que o retrato que me tiravas à janela
{já tão antigo!}
seria este silêncio de agora
que de nós não parte...

o murmúrio das árvores lá fora
ensurdecia os pássaros mudos

e nós
fomos a plenitude
de um único intervalo
já tardio na vida...

ficámos feitos de vento
amor
dor de um destino que chamei rebelde

uma espécie de angustia em mim cravada
por haver chegado sempre tarde...

amor
não gosto dos dias
em que não se ouvem os pássaros...

Autora : Sónia M
http://soniagmicaelo.blogspot.pt/

terça-feira, 3 de maio de 2016

Como é que eu,

Saul Landell

Como é que eu,
ouvindo tão mal, distingo
o teu andar desde o princípio do corredor?

Como é que eu,
vendo tão pouco, sei
que és tu chegas, conforme a luz?

Como é que eu,
de mãos tão ásperas, desenho
a tua cara mesmo tão longe dela?

Onde está
tudo o que sei de ti
sem nunca ter aprendido nada?

Serei ainda capaz
de descobrir a palavra
que larga o teu rasto na janela?

(Que seria de nós
se nos roubassem os pontos de interrogação?)


Autor: Mário Castrim

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Esta vista de mar,

Danielle Richard


Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da natureza pede
o amor em dois olhares

Autor: Fiama Hasse Pais Brandão

domingo, 1 de maio de 2016

Maio

norvz austria

Hoje um poeta morreu
no trabalho
a construir poemas

João Corinto servente
não sabia palavras
só tijolos e cimento

Um pé fora do andaime
o chão não era de cravos
e as aves
bateram asas

Hoje um poeta morreu
no trabalho

Projectou-se do oitavo verso
do seu poema

Autor : Eufrázio Filipe
(2008)
http://mararavel.blogspot.pt/