quinta-feira, 30 de novembro de 2023

No Fogo da Memória

Começa-se o silêncio a desenhar
nos interstícios da carne, a que se prendem
imagens que no fogo
lento da memória se apuraram
de dia para dia e que o passado
nos serve agora como uma iguaria.

Autor :Luís Miguel Nava
Imagem : Korinne Bisig

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Percorro-te

 

Percorro-te
A língua de cetim
A prolongar o êxtase
As mãos de seda
No rio do teu corpo.
Afloro a nascente:
E num grito
Todo tu és torrente.

É tarde, meu amor
É muito tarde.
O tempo implacável me consome
E destrói o vigor do corpo moço:
Apagou o fulgor do meu olhar
Roubou a altivez do seio cheio
Secou o rio manso do meu ventre
Cobriu de pergaminho a minha mão
É tarde, muito tarde
Mas… por dentro
Ainda bate, por ti, o coração.

Autor : Maria Aurora
(in Discurso Amoroso, Porto 2006)
Imagem: desconheço o autor

terça-feira, 28 de novembro de 2023

XI

arrumo os livros e deixo que se percam
pela estante
que lutem entre si
para encontrar um lugar de destaque
não posso educá-los. sobreviverá o mais forte,
esse irá agarrar um dia a minha mão,
forçá-la a desfolhá-lo a percorrer o seu corpo
de palavras vestidas de negro
e eu educadamente obedeço
fecho todas as janelas
acendo as lâmpadas da solidão
e arrasto-me por dentro dos versos da noite.

Autor : Paulo Eduardo Campos
 in A Casa dos  Archotes
Imagem : Giann  Enid

domingo, 26 de novembro de 2023

quero


quero gritar a mágoa, que me despedaça o corpo
quero encerrar definitivamente esta sensação de vazio
mas asfixiada na garganta fica apenas um ténue fio.

Autor : Beatrice 2023-11-26
Imagem : Giann Enid

sábado, 25 de novembro de 2023

Ofício

Apagas uma palavra como o vendo árido a pegada.
Sem piedade, limpas do branco o balbucio ténue
como quem arranca do chão a erva daninha.

Fica entre os dedos um cheiro a terra fresca., húmida

e fértil.

Lavrador de música, pegas noutra.
Esperas que nesse passe um barco, os cântaros se encham
de vinho para a festa, ou uma maçã amadureça
nos tristes galhos do inverno.

Nunca sabes: as palavras são bailarinas imprevisíveis,
ou te levam para um campo de águas bravas
ou fogem de ti rindo, por seres tão pobre.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto
Imagem : Karrah Kobus

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Despeito

Digo o que noutro tempo não diria:
Foi tudo um grande sonho enganador.
Nego o passado, e juro que esse amor
só existiu na tua fantasia.
 
Sinto a volúpia da mentira. A dor
não transparece. Nego. Que alegria!
Fiz crer ao mundo inteiro, por magia,
que és de todos os homens o pior...

Nunca me entonteceu esse sorriso
e, vê lá tu! se tanto for preciso,
nego também as cartas que escrevi.

Quero humilhar-te, enfim! Mas não compreendo
porque me exalto e choro e te defendo,
se alguém, a não ser eu, diz mal de ti

Autor : Virgínia Victorino
Imagem: Ive Freya

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O Naufrago

Vagueio
pela imensidão do mar
entre visões fascinantes
de ondas entorpecidas
navego nos escarpados
de meus pensamentos
não sei como chegar
ao cais seguro
de teu coração.

a ilusão de meus desejos
trai-me!...
a visão de trevas
persiste e ilude-me
na incerteza
deste mar que trilho
o Luar
foi-se...
a angustia em mim
permanece.

queria esquecer -te
mas não consigo.
a tua silhueta no horizonte
provoca-me!...
turva-me o olhar
no receio de naufragar
mantenho
as velas enfunadas
para que, na viagem do vento
me reboque
sinto que perco forças
para chegar aquela praia
onde um dia
fizemos juras de amor.
chama-me!
alaga-te!
neste meu mar estéril
sim!
eu te ouvirei e direi
Estou aqui

Autor: Fernando Jorge Benevides 05/11/2012
in O Gesto e o Olhar
Imagem : David Talley

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

recado


Se eu morrer longe
sepulta-me no mar
dentro das algas ignorantes
e lúcidas.

Cobre o meu rosto de palavras
antigas
e de música.

Deixa em meus dedos
a memória mais recente
de outras coisas inúmeras

e nos meus cabelos
o incerto movimento
do vento e da chuva.

Eu vogarei sob as estrelas
com pálidas luzes entre os cílios
e pequenos caramujos
entrarão nos meus ouvidos.

Estarei assim idêntica
a todos os motivos.

Autor : Glória de Sant'Anna
in 'Música Ausente'
Imagem : Amy Spanos

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Vésperas Portuguesas

o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante

no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências


Autor : Rui  Nunes,
in Ofício de Vésperas
Imagem :Silena Lambertini

domingo, 19 de novembro de 2023

Passos em desalinho


Em cada passo que dou
Seja leve ou atarantado
Seja na estrada da vida
Ou nos trilhos do destino
Há sempre um comboio,
Que já passou
Um avião que não chegou
E a hora que excedeu
Sem eu dar por isso a não ser estes passos
Que não sabem por onde vão
E por atalhos e desfiladeiros
Perco-me e só me restam despenhadeiros
Que me indicam um outono em desalinho.

Autor : BeatriceM 2023-11-19
Imagem : Andrea Hubner

sábado, 18 de novembro de 2023

Este é o papel singular da alegria


Este é o papel singular da alegria
a lei errante do país
é o maior dos silêncios.

Caminhei por entre rios pontos de água
estações de novembro
pequena razão dos ventos da manhã.

Não trafiquei não porque seja forte
mas porque falo da alegria do estar sobre vós
nestes pontos de água
na acidez da flor
neste país frequentado

algumas coisas nunca mudarão. O rigor
da luz torna invulnerável o desejo de perder
esta pressa de verão.

Algumas coisas serão sempre as mesmas: manhã
encosta o teu ouvido sobre a porta escuta
era a voz os cavaleiros roubados a Ucello
longínquos.

(Profanamos a casa não o corpo
esta forma desenhada ruga a ruga
esta cor amarela sobre a praia.)

Autor : João Miguel Fernandes Jorge
Imagem : Alessio Albi

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Vesti-me de vento


Vesti-me de vento
Para ser
Sopro
Roçando-te
Os lábios

E espalhada
Nos teus dedos
Fui brisa
Precisa
E rasa

Devolvi-me ao chão
Mas sei que sou
Ainda
Um tempo

Teu

- Urgente -

- Aflito -

Em que sublevado
O desejo
Se delonga

- Infinito -

Autor : Virgínia do Carmo
in... Sou, e sinto - Temas Originais
Imagem :Shelby Robinson 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Na noite da minha morte


Na noite da minha morte
Tudo voltará silenciosamente ao encanto antigo…
E os campos libertos enfim da sua mágoa
Serão tão surdos como o menino acabado de esquecer.
Na noite da minha morte
Ninguém sentirá o encanto antigo
Que voltou e anda no ar como um perfume…
Há-de haver velas pela casa
E chalés negros e um silêncio que eu
Poderia entender.
Mãe: talvez os teus olhos cansados de chorar
Vejam subitamente…
Talvez os teus ouvidos, só eles ouçam, no silêncio da casa velando,
Uma voz serena de infância, tão clara e tão longínqua…
E mesmo que não saibas de onde vem nem porque vem

Talvez só tu a não esqueças.

Autor : Cristovam Pavia

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

depende dos dias dizem


depende dos dias dizem
um dia mais e outro menos e
embora a dor nunca me abandone
a alegria também não e
embora eu já não saiba distingui-las e

embora outras coisas
poucas ou nenhumas
que um dia destes descreverei
ou muito certamente não

Autor : Bénédicte Houart
Imagem : Andrea Hubner

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Cardiologia


Talvez na sua vida o maior estímulo
fosse a curiosidade.
Era o motor de tudo: aproximava-se
de todas as mulheres que conhecia,
mas só lhe interessavam os seus corações.

Cultivava com método essa obsessão
e tal como as crianças costumam fazer
aos brinquedos preferidos,
também ele queria vê-los por dentro,
saber ao certo como funcionavam,
desfíbrar lentamente cada esperança,
dissecar com um rigor quase científico
cada angústia ou desejo inconfessável
até saborear o gosto sempre novo
de cada uma dessas células

Após cada experiência, observava
aqueles corações já desmontados
e, por não conseguir juntar as peças
guardava-as uma a uma no seu peito.
Era um lugar seguro
e com tantos pedaços de outras vidas
na sua pulsação descompassada
podia enfim acreditar
que tinha também ele um coração.

Autor : Fernando Pinto do Amaral
Imagem : Aneel Neupan

domingo, 12 de novembro de 2023

amar...


amar, é saber construir alicerces
sem pressa e com esperança
que tudo fique em segurança.

amar, não é prender
por vezes é preciso deixar voar
para não asfixiar.

amar, é por vezes calar
para não magoar
e também saber perdoar.

e talvez por isso amar
seja tão trabalhoso e seja preciso ter precaução
porque está sempre em construção.

Autor : Beatrice 2023-11-11
Imagem : Keiko Kosaka

sábado, 11 de novembro de 2023

Canção porque (não) Morres


Manuel Mendes Nobre de Gusmão
Évora 11-12-1945
Lisboa 09-11-2023

Este é o último livro, prometia
como alguém que tivesse esquecido
que assim sempre tinha sido - aquele
era o último e depois que alguém viesse
fechar a porta contra o som do mar.
- Pagava por jogar no escuro
e por aqueles ardis já gastos
com que pensava e não pensava
enganar a morte branca e vermelha.
- Ah e não esqueças: - deitar fora a chave

Canção como não morres
se é a morte que em ti sobe até à fonte
do sangue, até à flor do sal queimando
os dedos; até à boca que por te cantar
se acende negra; até à copa
das árvores que distribuem o sol
sobre o corpo morto do amor
amante e desamado?

Ou antes: de que morres, por que morres
tu, canção já sem voz, já
sem o canto,
- já sem outro assunto
de momento, me despeço de todos vós-
quem falou agora? - Que importa quem falou?
- Que importa? Nada e nonada. E, sim, tudo
é tudo o que importa, para quem veio
mandado a que chamasses quem
tivesse chamado.

Canção, o teu sopro é quente
e têm sede os teus ventos, esses animais
do ar que por mil tubos sopram no corpo-músico
a verdade que calcinou os amantes que já o veneno
beijara até à flor do sangue.
depois, as palavras em que te perderas serão
cinzas sobre o mar e espuma suja
entre as rochas. Que atraso ou afecto
te prende ainda a esta margem
Por quem esperas tu
canção ainda
agora
que já por todo o céu
a terra nos esqueceu

Morresses, agora, canção
enquanto corres ainda pelo sangue
de quem escuta - e
morrerias no fulgor último
que ao fundo, no horizonte
da linguagem,
da própria linguagem
se afasta já, e abandonando vai
os seus bairros periféricos, despedindo-se
da tristeza dos migrantes derradeiros;
queimando página a
página
os últimos barcos.

Autor : Manuel Gusmão
in 'Migrações do Fogo'

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

damos as mãos


Damos as mãos, em simultâneo,
nem sequer nos olhamos,
basta o tacto, e esse calor
húmido que me inebria.

Quero sentir-te,
fervilhar no afago da tua mão,
e derreter-me nas mãos do nosso amor.

Não me deixes,
segura-me ainda,
aperta-me, enlouquece-me;
desliza pelo meu corpo
que te espera, entra em mim.

Deixa que eu me entregue
pelo tempo que o tempo dura,
vive por mim, em mim,

Autor : Paula Raposo
In “Canela e erva doce”
Imagem : Lara Zankoul

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Basalto


Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
mas pouco há a dizer acerca disso.

Autor : Luís Miguel Nava
Imagem : Mika Suutari

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Somos um País


Somos um país do sim
o da tristeza em azul,
tudo o que existe é assim
neste sul.

Mostramos o sol e o mar
e vendemo-lo a quem tem,
para podermos aguentar
o que vem.

Ah, país do fato preto,
meu país engravatado
do grande amor em soneto
da grande desgraça em fado.

Autor : Maria Judite de Carvalho
In -Cem Poemas Portugueses sobre Portugal e o Mar(Antologia Terramar)

terça-feira, 7 de novembro de 2023

O Velho

Não envelheço. Torno-me antigo.
O velho sempre viveu em mim,
sempre o pressenti no olhar
magoado demorando-se nas coisas,
em certa lentidão não premeditada
dos gestos e nas lembranças confusas
de uma outra recuada idade.
Sempre aflorou na mão e na estima
triste que se estende aos amigos,
na aresta de desconsolo que espreita
as minhas horas de amor.
O velho sempre viveu em mim.
Eis que, enfim, o reboco
se lhe começa a assemelhar.

Autor : Rui Knopfli
Imagem : Vaggelis Fragkakis

domingo, 5 de novembro de 2023

Não estou triste...

Não estou triste, estou desmoralizada. Não quero ficar triste, mas não estou a conseguir. Acho que o mundo não anda bem, e sem querer ser estúpida, acabo por compreender a agonia com que se debatem muitos seres anónimos e inocentes por esse mundo além.

Antes, por esta altura sentia o outono a galgar e o verão a dar os seus ais. Mas algo se quebrou e até as estações mudaram o seu ritmo e nem sabemos quando é que as conseguimos classificar, e saber ao certo em que estação estamos.

Tenho meditado muito e nem sei se é bom ou mau.

Acho que é mais penoso do que bom.

Aprendi a orar a implorar a um Deus que deve haver, que necessitamos de paz entre todos os povos, que a paz devia existir e ser irreversível, em todo o mundo.

Autor : BeatriceM 2023-11-04
Imagem : Gregory Woodman

sábado, 4 de novembro de 2023

Medo


Estratos assentam uns sobre outros.
São o vestígio submerso da tua vida.
Em certos momentos
um deslocamento, uma torção, uma força
que reconhecerás pelos efeitos, denuncia
a iminente ruína.

Consagra o que te resta do porvir
ao reforço desta casa.
Consagra-lhe a tua vigília e a tua aflição.
Consagra-lhe a inteligência do teu medo.

Autor :Luís Quintais
Imagem : Adam Bird

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Antecipação


espera. não vás.
deixa-me acordar-me
para que te diga que há palavras
que não têm a cor das flores
nem dos sóis.
há palavras que têm a cor da minha mão
do meu sorriso
do olhar que te espreita de soslaio
e que na cumplicidade nos une
com um laço cuja morte não desata.
antes que seja tarde
e que a noite ensombre as páginas do teu rosto
deixa-me despertar
e espera que a palavra Amor
apareça sibilada no teu ouvido.

Autor :Teresa Brinco Oliveira
 in "O Riso Rasgado do Tempo"
magem :Sarah Ann Loreth

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

As Palavras


 São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparados, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Autor :Eugénio de Andrade
Imagem : Vaggelis Fragkakis

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Não fora o mar

 

Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.

Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.

Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.

Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.

Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.

Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.

Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.

Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo, indomável coração,

Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.

Autor : Fernanda de Castro
In "Trinta e Nove Poemas"