quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Outras Viagens


aproxima-te do fundo. Da enxada a bater na pedra.
Ou da lama pastosa onde se enterram os pés.
No que não encontrares estará a verdade:
quanto mais fundo, mais nada: uma descida completa.
O fundo é o sítio que os mortos não frequentam com a sua
exactidão.
É a exactidão de um sítio.
Um sítio exacto nem os mortos acolhe.

Autor : Rui Nunes
Imagem : Nicolas Bruno

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Êxtase


Não sofras mais, amor, não digas nada!
Vem comigo; eu te levo. A noite é densa
e agora a voz do mar ficou suspensa,
dolorida, vibrante, apaixonada!

Não tarda muito a luz da madrugada...
Vem comigo! Não penses! Não se pensa!
Vem à conquista da aventura imensa,
vê, como eu vou, feliz e deslumbrada!

Um grande sonho me enlouquece e invade!
Vem procurar comigo a Eternidade
esse país tão vago, tão distante...

Vem, que eu busco o palácio da quimera
lá, onde seja eterna a primavera,
e a voz divina das estrelas cante!

Autor :Virgínia Victorino
Imagem : Steve Hanks

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Retrato de uma sombra

Os teus olhos, rasto de luz dos meus passos;
a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;

as tuas sobrancelhas, orla do caminho da tragédia;
as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
os teus cabelos, corvos, corvos, corvos;
as tuas faces, campo de armas da madrugada;
os teus lábios, hóspedes tardios;
os teus ombros, estátua do esquecimento;
os teus seios, amigos das minhas serpentes;
os teus braços, álamos à porta do castelo;
as tuas mãos, tábuas de juras mortas;
as tuas ancas, pão e esperança;
o teu sexo, lei do fogo na floresta;
as tuas coxas, asas no abismo;
os teus joelhos, máscaras da tua altivez;
os teus pés, campo de batalha dos pensamentos;
as tuas solas, criptas em chamas;
as tuas pegadas, olho da nossa despedida.

Autor : Paul Celan
Imagem : Rosie Anne Prosser

domingo, 27 de agosto de 2023

Lamento ...

 

Sempre foi tarde, e cada vez o tempo se esvazia mais,
doem-me os dias em silêncio, mas também me doem as palavras agressivas ,
e este tempo sem norte, nem estações, apenas um desnorteio integral,
todas as margens estão além de nós,
todos os apeadeiros foram ignorados ou abandonados,
num tempo onde todos tem muita pressa de chegar,
e eu ainda não sei onde habita a pressa, quando já tudo é tarde demais,
ainda não entendi, nem quero entender se alguma vez o amor já não tem mais espaço,
e concluo lamentavelmente que ,
é tarde até para este amor que ainda guardo em mim e que cada vez é mais inútil.

Autor : Beatrice M 2023-08-26
Imagem : Janelle Pietrzak

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Sintese e Remorso


Acerca da fragilidade
De uma criança
Nada diremos.
Acerca da sua força e das imagens
Nocturnas que se espelham
Como o adversário se espelha
Na polida solidez do escudo,
Sobre isso talvez nos seja dado
Dizer o que não merece mais
Do que síntese e remorso.

Autor : Luís Quintais
In Eufeme, magazine de poesia, n.º 0 (julho/setembro de 2016) Edição e coordenação: Sérgio Ninguém
Imagem : Jessica Drossin

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

apetece-lhe responder que morreu e ressuscitou



Amanhã vou pintar o cabelo, decide. Porque no amanhã de certos dias pinta sempre o cabelo ou compra um bâton diferente, mais claro, mais escuro, incolor, pinta os olhos ou ignora-os, usa ou não óculos escuros. Há ocasiões em que a encontram, hesitam, será ela?, devem pensar. “Meu Deus, estás diferente, que te aconteceu, mulher?” Apetece-lhe responder que morreu e ressuscitou, que estava na idade dos peixes e houve um cataclismo e se encontra agora na dos lagartos, mas ninguém iria compreender as suas palavras. Nem ela própria. Porque além da cor do cabelo, ou do lápis com que pintou os olhos, tudo está absolutamente igual.

Autor : Maria Judite de Carvalho

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Metade Maior

TJ Scott

A metade que me abraça
à lua desalinhada
e ao mar nascente,
pode ser um poema ao vento
ou um barco esquecido
num mar pequeno.
A metade que me abraça
no vento que fustiga as areias
na transladação dos céus,
pode ser um recital de sorrisos
ou uma caixa de cinzas
em ventania e temporal.
A metade que me abraça
no silêncio das minhas mãos
é a ilusão da certeza
e o início sem retorno.
A metade que me abraça
é a metade maior
é a metade sonhada
e a eterna poesia.


 Autor © António Carlos Santos

domingo, 20 de agosto de 2023

desperdiçámos...


desperdiçámos o rasto, deixámos que o medo amedrontasse
a ideologia que comungávamos
e fugimos por caminhos opostos.

hoje, ainda guardo numa velha caixa de sapatos
fotos e papéis, que já não servem para nada
mas que me ajudam a ressuscitar, o que se escapou nos ventos da vida.

Autor : BeatriceM 2023-08-19
Imagem : Rob Woodcox

sábado, 19 de agosto de 2023

A definição do amor

 

dantes escrevia poemas de amor. para viver com o amor nos poemas, sempre. depois disseram-me que já toda a gente o fez, que nada mais havia a escrever sobre o amor. que o amor já estava em demasiados poemas. eu aceitei o conselho e passei a escrever poemas de morte. escrevi muitos poemas sobre o meu pai, até ao dia em que percebi que a morte é sinónimo de amor, como tudo é sinónimo do amor. e voltei a escrever o que nada havia a dizer. porque até o poema é sinónimo de amor.

Autor : Jorge Reis-Sá
em 'biologia do homem
Imagem : Natalie Kapushenko

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Quando vieres

Quando vieres

Encontrarás tudo como quando partiste.
A mãe bordará a um canto da sala...
Apenas os cabelos mais brancos
E o olhar mais cansado.
O pai fumará o seu cigarro depois do jantar
E lerá o jornal.

Quando vieres

Só não encontrarás aquela menina de saias curtas
E cabelos entrançados
Que deixaste um dia.
Mas os meus filhos brincarão nos teus joelhos
Como se te tivessem sempre conhecido.

Quando vieres

Nenhum de nós dirá nada
Mas a mãe largará o bordado
O pai largará o jornal
As crianças os brinquedos
E abriremos para ti os nossos corações,

Pois quando vieres
Não és só tu que vens
É todo um mundo novo que despontará lá fora

Quando vieres.

Autor : Maria Eugénia Cunhal (1927 - 2015)

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A casa Iluminada


Olhai honestamente para o vosso passado
escondido da rua pelos arbustos
oferecendo-se aos pedaços
naquilo que o rasurado quis extirpar
nos trechos sem relação que vos assaltam no sono
no desabamento, na estranheza
outro nome possível se transcreve.
.
Considerai as vossas memórias pré-históricas
as primeiras declarações de amor pronunciadas
com lábios de sangue
a inervação magnética do vosso coração
dentro da caixa anatómica
dentro de uma caverna
na jangada que vos leva
.
Aprendei a observar com delicadeza
a terra inóspita antes de passar
a face molhada por uma chuva repentina
e o seu invencível sentido
.
Somos ainda os nativos, os mais remotos
.
Assim que chegarmos ao mar alto
e perguntarmos por que razão
seremos baixados por cordas
à casa demolida ainda iluminada

Autor : José Tolentino Mendonça.
 Introdução à pintura rupestre. Porto: Assírio & Alvim, 2021, pp 50-51.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Nomeio-te em segredo

momeio-te em segredo
e não te digo
retenho-te nos olhos
e tudo acende
cicias-me ao ouvido
e alvoroçada
recolho-te na boca
e tudo queima.

Ardo sozinha
a mão convulsionada
a desenhar-te em mim
Nomeio-te em segredo

Autor : Aurora Carvalho Homem, que usou o pseudónimo literário Maria Aurora
Imagem : Anna Heimkreiter

terça-feira, 15 de agosto de 2023

O teu ombro sabe a nudez

O teu ombro sabe que a sua nudez
é objecto de poema.
Quando tiras o vestido
- pelo ombro -
o teu corpo sabe que as palavras
acorrem
ao arrepio da pele.

E o meu corpo sabe
que as palavras lhe pertencem,
esbarram no desejo,
apresentam a incoerência do delírio
que desce do teu ombro
para a música
do silêncio que fará o poema.

Dedico-te palavras: apenas
marcos de uma intensidade,
uma ligeira pele do que nunca
poderia descrever, da porta
que se abre quando o ombro
se solta do vestido
que desenha no chão
um gemido de amor: o som
da alegria, o seu
visível reflexo que capta
e expande
toda a luz secreta do poema.

Autor : José Egito de Oliveira Gonçalves 
Imagem : Tatyana Mironova

domingo, 13 de agosto de 2023

cinzas

estiveste em todos os meus sonhos
foste a foz
por onde desaguava o desejo

hoje quando me dispo
já não regresso ao primórdio do fogo
e apenas existem cinzas dispersas

Autor ; BeatriceM 12-08-2023
Imagem : Erwin Blumenfeld

sábado, 12 de agosto de 2023

O quarto

eric zener

II

fogem-me as palavras, meu amor.
as palavras que em tempo foram nossas
e agora se colam ao tempo, às memórias.
o que fazer com o tempo que me cresce nas mãos?
o tempo que agora me percorre o corpo
e que antes nos fugia quando estávamos juntos.
o que fazer com o tempo
que me trouxe a tua ausência
e me envelhece, lentamente, a cada hora?

Autor : Paulo Eduardo Campos
in A casa dos Archotes

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Garras dos Sentidos

Anna Razumovskaya´

Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos.
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.

São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas.
Não quero cantar amores.

paraísos proibidos,
contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.

São demência dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.

Da má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.

Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos.
Autor Agustina  Bessa-Luís
In Garra dos Sentidos 98

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

meia-noite todo o dia



Herdo de ti o que nunca tiveste
nunca eu to pediria se o houvesse
assim está tudo bem como as mágoas
essas não preciso que as deixes e
os rancores ficam para outros talvez
a passagem se faça sem sobressaltos
a escuridão dizias veio para ficar.

Autor : Carlos Alberto Machado
In A Realidade Inclinada, Lisboa: Averno, 2003, p. 70

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Mãe, oxalá eu nunca tivesse largado a tua mão

 

Mãe, oxalá eu nunca tivesse largado a tua mão:
com o menino ao colo, fez-se a estrada maior do
que o meu desespero, amarrotou-se de velho meu
coração tao claro. Eu tinha catorze anos antes
do estrondo, catorze anos e meio antes do teu
grito, quinze anos cumpridos quando afastei o
véu dos teus cabelos: se me dizias sempre que não
fosse para longe, porque pediam o contrário os
teus olhos parados? Ainda por cima, mãe, chegar
ao campo foi como bater a uma porta cansada -
mil tendas que eram velas remendadas, barcos para
ficar de novo pelo caminho. Trouxeram-nos mantas
cheias de perguntas; tentaram-me com doces
para me pôr no lugar; mudaram ao meu irmão
a fralda com as mãos frias. Mãe, eu disse-lhes que
o menino era meu; e agora, quando ele procura os
teus seios no meu corpo sem formas, cubro com
teu véu os meus cabelos e canto-lhe baixinho
canções de açúcar. Não sei que idade tenho, mãe,
mas oxalá eu nunca tivesse largado a tua mão.
*
Autor : Maria do Rosário Pedreira
 in O Meu Corpo Humano

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Agora vai ser assim

Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Este facto simples, que todos me dizem ser simples, trivial,
e humano, como um destino orgânico e sensato,
fica em mim como um muro imóvel, um aspecto esquecido
e altivo de todas as coisas, de todas as palavras.
Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência
mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores
me esquecia de pensar, e o ar passava
por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar
a vida sem imagens da paisagem. Marcávamos férias
em meses diferentes. O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre
em outros dias. Tesouras surdas
rompiam o cordão dos telefones, e por engano
urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam
anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade,
a tua, não poderiam nunca encontrar se no mundo.

Autor : António Franco Alexandre 

domingo, 6 de agosto de 2023

momentos

 

no pensamento que registo,
a inércia do momento, olho enlevada,
um barco à vela que mareia,
em vagas pachorrentas e salinas,
onde sopram ventos de bonança,
e organizo um mapa com asas de gaivota,
para sobrevoar onde as palavras se apartam,
em memórias futuras.

Autor : BeatriceM 2023-07-30

sábado, 5 de agosto de 2023

Não me peças sorrisos

Não me exijas glórias
que ainda transpiro
os ais
dos feridos nas batalhas

Não me exijas glórias
que sou eu o soldado desconhecido
da humanidade

As honras cabem aos generais

A minha glória
é tudo o que padeço
e que sofri
Os meus sorrisos
tudo o que chorei

Nem sorrisos nem glória

Apenas um rosto duro
de quem constrói a estrada
pedra após pedra
em terreno difícil

Um rosto triste
pelo tanto esforço perdido
- o esforço dos tenazes que se cansam
á tarde
depois do trabalho

Uma cabeça sem louros
porque não me encontro por ora
no catálogo das glórias humanas

Não me descobri na vida
e selvas desbravadas
escondem os caminhos
por que hei-de passar

Mas hei-de encontrá-los
e segui-los
seja qual for o preço

Então
num novo catálogo
mostrar-te-ei o meu rosto
coroado de ramos de palmeira

E terei para ti
os sorrisos que me pedes.

Autor :António Agostinho Neto
Imagem : David Talley

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

O medo

 

imaginamos sinais de orvalho nas manhãs que emergem
das noites mais quentes e secas
do estio da nossa alma
antecipamos caminhos largos e floridos
nas placas cimentadas do chão
onde nos pregamos aos pés
e pedimos ao sol que trespasse
as densas nuvens do nosso inverno
interno

a cada tempo queremos um outro tempo
em cada espaço suspiramos por outro espaço
e nas mãos de hoje vemos apenas
a saudade dos toques de ontem
a ânsia pelos gestos de amanhã
e as marcas dos momentos que não vimos passar

fechamos as janelas ao medo como se ele tivesse saído
para passear os cães que nos guardam as portas

na recusa de vermos que moramos numa casa
feita de pele
sem portas nem janelas
inalamos o ar rarefeito no conforto aveludado de todas as coisas
exteriores a nós
e exteriores ao nosso medo

mas o medo é um gato preto e manso
que se deita no nosso ombro esquerdo
à espera de um afago
para se poder cumprir

e quando o medo se cumpre
o medo
não mete medo algum

temos por baixo da pele uma vida feita de instantes
ausências esperas
dores angústias
risos prazeres
instantes de corpo de alma

e de afagos
ao nosso medo preto
no olhar branco do nosso gato
manso

Autor : Rosário Ferreira Alves
imagem : Rob Woodcox

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Cala


o rio escorre
(um nascer sem saber de onde)
a sua própria memória
(um morrer sem saber para onde)
o seu tempo é o de um contínuo dizer
calando
a liquescência da pedra.

Autor  : Pedro Teixeira Neves
Imagem :Michelle Elis