quarta-feira, 30 de março de 2022

Sem amor

 

Viver sem amor
É como não ter para onde ir
Em nenhum lugar
Encontrar casa ou mundo

É contemplar o não-acontecer
O lugar onde tudo já não é
Onde tudo se transforma
No recinto
De onde tudo se mudou

Sem amor andamos errantes
De nós mesmos desconhecidos

Descobrimos que nunca se tem ninguém
Além de nós próprios
E nem isso se tem

Autor Ana Hatherly
(in A Neo-Penélope, & Etc, 2007) Ver menos
Imagem : Andrew Wyeth

domingo, 27 de março de 2022

A noite desponta


A noite desponta
Carente das estrelas
Que em simbiose despontam

Em silêncio prolongo a esperança
Deitada nos lençóis
Lavados e frescos

Sonho o tempo em que
Tu rodavas a chave na porta
E chegavas das tuas viagens

E o mundo ressurgia
Para mim, e para ti
No pico das manhãs

Autor :BeatriceM  27-03-2022
Imagem : Karen Hollingsworth

sábado, 26 de março de 2022

Adormecer

O barco parte em silêncio

                           a alma é aventura

         navegar

                      sem cartas          sem rumo

e desta viagem nocturna

                         que notícias não direi sequer a mim

                                                       [mesmo?

.

Autor : José Paulo Moreira da Fonseca, in 'Palavra e Silêncio'

Imagem :Maria Kaimaki

sexta-feira, 25 de março de 2022

qualquer dia


 qualquer dia a morte apanha-te
desprevenido
sem o teu fato
imbuído de alfazema
traz sempre uma camisa branca
um lenço de seda
uma marca
— não tem de ser especial —
porque qualquer dia a morte apanha-te
e quem te transportará a casa
nu e frio
quem te cobrirá com um lençol?
um fruto é um fruto
um fruto cai
é de quem o apanha
mas se a morte
não te devolve a casa
faz um desenho,
pequeno, no braço,
e quando a folha maior da árvore
não se mexer
prepara-te
tudo o que pára
pode ser um sinal

Autor : Ana Paula Inácio

quinta-feira, 24 de março de 2022

A sombra sou eu

 

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.

Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.

Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.

Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

Autor : José de Almada Negreiros
Imagem : Jaroslaw Blaminsky

quarta-feira, 23 de março de 2022

Desalinho


Nenhum destes poemas
fará parte de um livro
adoptado nas escolas. Há
muito tempo que não escrevo
azul mar e barcos ou outras
palavras para alívio de almas
homéricas.

Prefiro – ou preferem-me
aquelas como: desalinho
alinhavo ou logro ou outra
qualquer. Nunca o arremedo
de uma palavra única esgota
o muito ou nenhum sentido
de um verso.

Autor Inês Lourenço

terça-feira, 22 de março de 2022

Barco



Gastão Santana Franco da Cruz
Faro, 20 de Julho de 1941
Lisboa, 20 de Março de 2022
.
Vou hoje começar a recordar-te
embora a luz entrando sob o arco
escasso da realidade possa dar-te
a ilusão ainda de que o barco

simplesmente balouça mas não parte
Já partiu afinal do porto parco
onde vieste perceber a arte
de nada ser; no mesmo barco marco

lugar como num ventre: igual escala
é a perda da vida que ganhá-la

Autor : Gastão Cruz
In “Repercussão”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

domingo, 20 de março de 2022

Todos os dias


Todos os dias,
te espero e sei que é dispensável.

Há partidas ou afastamentos que são para sempre.
Sei! Num horizonte interminável,
todos os dias a esperança falece.

Mas gosto de pensar em ti,
e reinvento esperas,
sem sentido nenhum.

Autor : BeatriceM 20-3-2022
Imagem : Cristina Coral

sábado, 19 de março de 2022

Arte de gritar

 

Quisera dizer coisas
que ninguém tivesse dito antes de mim.

Deixar uma pegada sobre a areia intacta,
não sobre outras pegadas que já houvesse lá.

Mas cheguei tarde; os que me precederam
no exercício desta dura arte de gritar
amavam a minúcia, a completude,
nunca deixavam uma tarefa a meio.

Disseram tudo. Deixaram só migalhas susceptíveis
de glosas rasteiras, para eu me entreter

como uma criança pobre brinca com destroços
de brinquedos recuperados do lixo.

E eu digo essas migalhas como quem
escreve a terra em laudas rasuradas.

E escrevê-las-ei mesmo quando
não tenha língua já para as dizer.

(Os poetas entendem estes mansos
trocadilhos. Os outros, não importa.)

Autor : A.M. Pires Cabral
(in Gaveta do Fundo, Tinta da China, 2013)

sexta-feira, 18 de março de 2022

Cântico das Nervuras

 

São tão largas as noites
para a concisão de um corpo.
Tão escuro o sorriso que as pernas abrem
ao mundo.
E no entanto animal que passe
aloira-se nas águas e geme
de uma alegria que tem flores e frutos.
 
Autor : Catarina Nunes de Almeida
Imagem : Ilya Kisaradov

quinta-feira, 17 de março de 2022

Acredito que um dia


Acredito que o mar um dia
chegará à minha casa e que
as sereias vistas nos mares do norte
se revelarão aos incrédulos
Acredito que virão com as suas
grinaldas e uma mensagem florida
de tanta pureza que hoje
só as crianças acreditam nela
Quando o mar um dia
chegar à minha casa
estaremos ainda todos
naquele tempo em que dávamos
as mãos às nossas mães
antes de entrar no mar.

Autor : Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Maria Kaimaki

quarta-feira, 16 de março de 2022

Gaveta

 

Da gaveta que tudo cabe
às vezes vaza
um monte de coisas
da alma
da lama
na mala

vaza acaso
vaza atraso
vaza caso
às vezes vaza
tanta coisa
que a gaveta parece rasa

Autor :|Mariana Teixeira

terça-feira, 15 de março de 2022

Love Story

 

Nunca encontrámos
o lugar onde o amor se forma.
Tentámos, aceitando os desencontros,
dançámos em torno,
arrepiámos uma breve carícia,
separámos-nos
sem descobrir o que haveria a descobrir,
o que haveria a atravessar:
uma montanha, um túnel,
ou mina ou arco
de uma ponte.
Agora contemplo uma cama
vazia
flutuando numa barragem
longe do lugar
que poderíamos ser.
Muitas coisas se partilharam,
as palavras não eram pedras,
o vento alguma vez
nos juntou os cabelos.
Nunca encontrámos
o lugar onde o amor se arma.
Foram pedaços de muita coisa:
quando os queria colar
sempre algum era arrastado pela chuva,
sempre algum se perdia em lençóis de sombra.
A imagem de cada um de nós
nunca foi suficiente
para criar no outro o relâmpago,
o pássaro ígneo, delirante.
Nunca encontrámos
o percurso das águas,
o lugar onde o amor se firma.
 
Autor : Egito Gonçalves

domingo, 13 de março de 2022

olho as minhas mãos

 

olho as minhas mãos vazias
tão vazias que sinto pena de mim

outrora eram tão cheias
tão cheias de tudo

hoje guardam apenas resquícios
de outras eras.

Autor : BeatriceM 13-03-2022
Imagem: Cristina Coral

sábado, 12 de março de 2022

Pássaro Impossível

Há o lume, uma rosa revelada pela lava no rumor
da manhã. Nos percursos da memória, há esse roedor
de brumas, o coração, onde reside o motivo do voo:
Toda a música é voo, over dose de sons ou silêncios.

Como invencível fábrica de paixões fechadas,
tu conheces as variantes do sonho. O intervalo,
o compasso da vida, nem sempre musical.

Tu conheces a palavra metrónomo,
o voo impossível dos pássaros no fogo das ravinas.

Autor : José Laurindo Leal de Góis
Imagem : Desconheço o autor

sexta-feira, 11 de março de 2022

Pediu um café

 
Pediu um café
com a voz rugosa
de quem contornou a noite
pelo lado da insónia.
Tremem-lhe as mãos.
Sente-se marginal.
O seu perfil, deslizando sozinho
através da chuva,
parece querer purificar-se.
Da janela do quarto
pode ver o mar.
A porta entreaberta enche
de ausência as pedras do cais.
Tão cruel, a solidão de um náufrago!

Autor : Graça Pires In A Solidão é Como o Vento
Imagem : Autor Desconhecido

quinta-feira, 10 de março de 2022

Este silêncio de já não termos palavras


Cheguei a ter medo de te perder,
tu não chegaste sequer a ter medo.
Este silêncio de já não termos palavras
ouve-se nas outras palavras que trocamos.

Miserável mundo nosso e alheio,
igual ao que todos disseram da sua época,
e pior, porque este vivemos nós
e conhecemos nós, cada um conforme pode.

Já morrerem os ídolos todos da infância
e os da adolescência vão a caminho,
sobrevivente é o teu olhar cego
(hoje há já só um dos Righteous Brothers).

Na feira de velharias uma caixa
para tabaco com uma rosa verde.
Tem o preço ainda em escudos, uma falha
num dos cantos, uma pequena cruz de cal.

Permaneces aí, à lareira, lendo livros vivos
e o seu turbilhão de palavras profundas.
Nunca mais chega o medo de nos perdermos,
eco um do outro em ricochete de silêncios.

Autor : Helder Moura Pereira
Imagem : Aykut Aydogdu

quarta-feira, 9 de março de 2022

Como Cortar Relações



Às vezes tesoura cega basta
noutros casos é preciso usar os dentes
o fio de uma peixeira a minúcia
de um canivete suíço
às vezes a substância é tão frágil que
com a ideia de um corte se desmancha
noutros casos há que cortar os mares

Autor : Adriana Lisboa
Imagem: Autor Desconhecido

terça-feira, 8 de março de 2022

Redes Sociais

 


Lá nas redes sociais
o mundo é bem diferente,
dá pra ter milhões de amigos
e mesmo assim ser carente.

Tem like, a tal curtida,
tem todo tipo de vida
pra todo tipo de gente.

Tem gente que é tão feliz
que a vontade é de excluir
Tem gente que você segue
mas nunca vai lhe seguir,

Tem gente que nem disfarça,
diz que a vida só tem graça
com mais gente pra assistir.

Autor : Bráulio Bessa
Imagem : Ilya Kisaradov

domingo, 6 de março de 2022

Momentos

Tento adormecer,
sobre o eco das palavras,
que não dizes,
e eu não sei porquê.
.
Autor : BeatriceM 2022-02-27
Imagem :António Macedo

sábado, 5 de março de 2022

Há muito tempo que não vens

 


no tempo em que éramos felizes não chovia.
levantávamo-nos juntos, abraçados ao sol.
as manhãs eram um céu infinito. o nosso amor
era as manhãs. no tempo em que éramos felizes
o horizonte tocava-se com a ponta dos dedos.
as marés traziam o fim da tarde e não víamos
mais do que o olhar um do outro. brincávamos
e éramos crianças felizes. às vezes ainda
te espero como te esperava quando tu chegavas
com o uniforme lindo da tua inocência. há muito
tempo que te espero. há muito tempo que não vens.

Autor :José Luis Peixoto
Imagem : Daniel Del-Orfan

sexta-feira, 4 de março de 2022

Ao Rimar Dor com Pensamento

Ao rimar dor com pensamento
escrevo ternura, afecto,
apenas quem me conceda
um gesto, mínimo gesto

um poeta não se assassina
ia dizer mas disto não entendes
é a superfície que pretendes
da coisa leve, pequenina

Isto é lama, são entranhas, é lixo,
chama, horror, precipício
que consome, enaltece, aflige
em tom maior, menor, e a verdade
capriche. Que em verdade digo:
de aqui em diante - apenas sigo

Autor : Helga Moreira, in 'Tumulto'
Imagem : Maria Magdalena Russocka

quinta-feira, 3 de março de 2022

Porque tudo se escreve com a tua letra


Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.

Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.

Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia mais
acordado. Porque este amor não pára.

E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Autor : Fernando Assis Pacheco

quarta-feira, 2 de março de 2022

As casas vieram de noite


As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas

Autor  Luiza Neto Jorge

terça-feira, 1 de março de 2022

Haverá talvez um poema

Haverá talvez um modo de amanhecer
que revele nos olhos o secreto ardor
com que se levanta o trigo enorme.

Haverá talvez um lago que a noite não toque
e de dia em dia, como ontem, como amanhã,
cante a mulher que ali foi ver nascer o filho.

Haverá talvez um suor que não o do sacrifício
e com o qual a pele cintile como uma borboleta
que vem descendo o céu até à flor dos teus lábios.

Haverá talvez uma fala onde nos poderemos encontrar
sem que a tua mão esqueça a minha, sem que o sorriso
esconda o vazio, uma fala que só possa e saiba dizer nós.

Haverá talvez um poema em que o soluço aperte as veias
como o rio aperta o mar, um poema em que eu e tu
dormimos sobre o luminoso esplendor do universo.

Autor : Vasco Gato in ‘Um Mover de Mão)