quarta-feira, 29 de junho de 2016

Respira. O oxigénio espera da tua esfera

Julie Waroquier


Respira. O oxigénio espera da tua esfera
de cor o teu afago a tudo.
O oxigénio é meigo. Ele às vezes consegue
sair das folhas verdes sem ruído no escuro.

Como um ladrão que rouba o próprio sangue
e o leva ao inimigo assim ele anda
à procura de casa onde se aqueça
vendo que em pedra e telha a traz consigo

Respira. O oxigénio espera o teu relógio
de luz o teu sorriso claro.
O oxigénio é meigo. Ele às vezes constrói
Uma impossível casa à beira do teu lábio

Autor : Maria Alberta Meneresin Cem Poema Portugueses no Feminino

terça-feira, 28 de junho de 2016

Mímica




Maciej Kurkiewicz

Pode a noite doer
se as mãos tocarem a sua própria pureza
e houver um ponto negro ao centro

Quando no pulso
parece crescer uma pequena solidão
como se o espaço se afastasse e de repente
um véu cobrisse
todas as memórias futuras

Pode a noite tremer assim
para que os muros se abram ao meio

Para que a transparência dos gestos
publique essa mímica oculta
antiga intimidade

Autor : Vasco Gato
in IMO(Quasi,2003)

domingo, 26 de junho de 2016

hoje

Mira Nedyalkova

hoje vesti as palavras com sorrisos
desvendei-me para ti
libertei os medos
esvoacei nos limites do sonho.

hoje renasci no momento
em que o amor chegou sem
se fazer anunciado.

Autor:BeatriceMar

sábado, 25 de junho de 2016

"Boa Noite Solidão"


Boa noite solidão
Vi entrar pela janela
O teu corpo de negrura

Quero dar-te a minha mão
como a chama duma vela
Dá a mão à noite escura

Só tu sabes, solidão
A angústia que traz a dor
Quando o amor, a gente nega

Os teus dedos, solidão
Despenteiam a saudade
Que ficou no lugar dela

Espalhas saudades pro chão
E contra a minha vontade
Lembras-me a vida com ela

Com o coração na mão
Vou pedir-te, sem fingir
Que não me fales mais dela

Boa noite solidão
Agora quero dormir
Porque vou sonhar com ela

Boa noite solidão
Agora quero dormir
Porque vou sonhar com ela

Autor : Jorge Fernando 

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Solidão

Sarah Jarret

Cai chuva, chora.
Chora, chora.
Solidão, solidão!

Já não canta o pássaro.
Calou-se a voz, a alegre, a rara.
A que se ouvia solitária.
Cai chuva.

Não sou freira e estou num convento.
A paz, o silêncio, a chuva, os claustros...
Ser freira!

O sequestro, cantar, rezar.
Cai chuva, rude e sem dor.
Tu não choras.
Sou eu que choro.

Que é do pássaro, como cantava?
Voltou, voltou. Pia!
Bendito pássaro, onde estás?
Acompanha-me, já não chove.
Solidão, melancolia.

Autor : Irene Lisboa
in 'Outono Havias de Vir'

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Amor como em casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Autor : Manuel António Pina

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Encostei-me a ti

danielle kwaaitaal

Encostei-me a ti,
sabendo que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem
depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso,
e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar,
quando caí.

Autor : Cecília Meirelles

domingo, 19 de junho de 2016

no presente


Andrew Wyeth

de que me serve saber o caminho,
e não o querer percorrer.
para que existem nuvens?
se estamos em Junho e é quase verão.
não quero ir,
não vou,
deixo-me ficar a ver  o presente,
a diluir-se na brisa da tarde,
e na janela entreaberta,
do meu quarto  em desalinho.

Autor : BeatriceM

sábado, 18 de junho de 2016

Poema Melancólico a não sei que Mulher

John Vistaunet

Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Autor : Miguel Torga
in 'Diário VII'

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Paraíso

christian schloer

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.

Autor : David Mourão-Ferreira
in "Infinito Pessoal"

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Eu te prometo

Liu Yuanshou


Eu te prometo meu corpo vivo
Eu te prometo minha centelha
minha candura meu paraíso
minha loucura meu mel de abelha
eu te prometo meu corpo vivo

Eu te prometo meu corpo branco
meu corpo brando meu corpo louco
minha inventiva meu grito rouco
tudo o que é muito tudo o que é pouco
meu corpo casto meu corpo santo

Eu te prometo meu corpo lasso
mar de aventura mar de sargaço
vaga de náufrago onda de espanto
orla de espuma do meu cansaço
eu te prometo meu doce pranto

Eu te prometo todo o meu corpo
ardendo eterno na nossa cama
como um abraço como um conforto

P´ra que me lembres além da chama
eu te prometo meu corpo morto

Autor : Rosa Lobato de Faria,
In a noite inteira já não chega

quarta-feira, 15 de junho de 2016

...


A maior aventura de um ser humano é viajar,
E a maior viagem que alguém pode empreender
É para dentro de si mesmo.
E o modo mais emocionante de realizá-la é ler um livro,
Pois um livro revela que a vida é o maior de todos os livros,
Mas é pouco útil para quem não souber ler nas entrelinhas
E descobrir o que as palavras não disseram...

Autor : Augusto Cury

domingo, 12 de junho de 2016

Porque insisto

parvana photography

Porque insisto em desenhar-te em mim
Em pequenos e grandes nadas
Em utopias
Em espirais de fumo
E frio seco

Porque insisto em sonhar
Na minha solidão
Um sonho que era nosso

E já não é

Autor : BeatriceM

sábado, 11 de junho de 2016

Personagem

Ezgi Polzt

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto já me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo - o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.


Autor : Cecília Meireles
in 'Viagem'

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Quantas vezes

Michael Hudec

Quantas vezes te esperei neste lugar
quantas vezes pensei que não chegavas
quantas vezes senti a rebentar
o coração se ao longe te avistava.

Quantas vezes depois de teres chegado
nos colámos no beijo que tardava
quantas vezes trementes e calados
nos entregámos logo sem palavras.

Quantas vezes te quis e te inventei
quantas vezes morri e já não sei.

Autor : Torquato da Luz

quarta-feira, 8 de junho de 2016

O traidor

paolo barzman

Tomaste o chá de folhas negras da melancolia?
Porque fugiste às palavras que te deixaram?
Espera-te o mais amargo fruto e depois vão-te sorrir.
E tu? Porque não disseste simplesmente quem eras?
Sabes que é tarde e já nada podemos fazer.
Como um médico na sala de operações, a tua alma encolhe os ombros,
porque tu renunciaste às palavras
e escolheste o silêncio das convicções.

Autor : Luís Filipe Castro Mendes
in Lendas da Ìndia

domingo, 5 de junho de 2016

estações


na primavera recolhi as pétalas das flores
escrevi no verão, e nunca me leste
no outono serenei
queimei no Inverno todos os esboços que pintei

o que haverá depois das telas e dos livros ?

dos meus.

dos teus.

Autor: BeatriceMar
Foto: desconheço o autor

sábado, 4 de junho de 2016

Os Lugares do Medo

paolo barzman

Silencia os murmúrios da memória.
Enterra para sempre os brinquedos
que espalhaste pela infância que tiveste.
A tua casa há de ser um sepulcro vazio

se ao saíres deixares a porta aberta.

Autor : José Rui Teixeira
in Para Morrer

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Acho que é isso...


Alyssa Monks

tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado

Ator : Alice Ruiz

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Nudez



E era a terra
vastamente seca,
longamente nua,
que a ti se abria.
E eras tu, amor,
por mim despida,
o único verde
que a cobria.

Autor : Gonçalo Salvado

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Meus brinquedos

steve hanks

De repente
Ao lembrar dos brinquedos queridos
Que ficaram esquecidos
Dentro do armário
Me bate uma saudade
Me bate uma vontade
De voltar no tempo
De voltar ao passado
Mas nada acontece
Nada parece acontecer
E eu choro
Choro como o bebê que fui
E a criança que quero voltar a ser
Não quero crescer!

Autor : Clarice Pacheco