quinta-feira, 31 de outubro de 2019

a gente se mata todos os dias


a gente se mata todos os dias
em doses conta-gotas
de suicídios não violentos

morremos um pouco
quando deixamos de ser quem gostaríamos
quando silenciamos as nossas verdades
quando amamos e não somos amados
quando os vícios se tornam nossos melhores momentos
quando fazemos coisas por obrigação e não por vontade

morremos.

Autor : kaio bruno dias
Imagem : Joel Robinson

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Outra margem de mim


É muito tempo a desejar o tempo
De mudar ventos, levantar marés
É muita vida a desejar o alento
Que faz saber ao certo quem és

É funda a toca onde te escondes tanto
Tem a distância entre o silêncio e a voz
A vida rasga bocadinhos gastos do mundo
Vai descascando até chegar a nós

E tu que sabes tanto de mim
Tu que sentes quem eu sou
Dá-me o teu corpo como ponte que me salva
Do que o medo fechou

São muitos dias a perder em vão
Sem nunca entrar dentro do labirinto
É muita vida a não ser o que tu sentes
A planar sobre o que eu sinto

É quase noite, não te escondas mais
Vai desatando até entrar o ar
Dá-me um gesto que me diga o teu fundo
Uma palavra para te tocar

Tu que sabes tanto de mim
Tu que sentes quem eu sou
Dá-me o teu corpo como ponte que me salve
Do que o medo fechou

Tu que sabes tanto do sol
És uma espécie de outra margem de mim
Olha-me dentro como chão que me agarre

Pode ser esta noite quente
A estrada aberta mesmo à nossa frente
E tu e eu a descobrir o ar
Não é preciso correr
Não é urgente chegar
O que é preciso é viver

Autor : Mafalda Veiga

terça-feira, 29 de outubro de 2019

....


O mais terrível dos sentimentos é o sentimento de ter a esperança perdida.

Autor : Federico García Lorca
Imagem : Brooke Shaden's

domingo, 27 de outubro de 2019

Recuo no tempo


Recuo no tempo e no espaço
E sei que ando à deriva
Como barco em tormenta
Sem bússola
Águas amotinadas impedem
A minha chegada
A algum porto de abrigo
Estou completamente só
Aqui
Agora
E para sempre

A escuridão tomou conta de mim
E nem o azul do céu me sorri
Mas
Deixo-me ir ao sabor do vento
E se calhar
Algum porto haverá
À minha espera

Autor : BeatriceM  2012-10-07
Imagem : shawrus

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

[As gaivotas desta tarde…]



As gaivotas desta tarde
cravaram dentes
repetindo o sinal da cruz

de tanta tristeza,
não andam mais juntas
em busca do sol:
guardam a dureza
de quem surfa a morte como os abutres.

Autor : Clarissa Macedo

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Por vezes


"Por vezes sentado sozinho na sala, apenas com o cão por companhia, pensava que, contrariamente ao que ele supunha, não eram precisas palavras para entendermos o essencial: que tudo é uma breve passagem e que não há outra eternidade senão a da solidão partilhada.
Ou no amor, ou na camaradagem das grandes batalhas, ou no silêncio de uma sala entre um leitor e um cão. Talvez estivéssemos a ficar parecidos e até nos imitássemos um ao outro."
Autor : Manuel Alegre
In 'Cão como Nós'
Imagem: Mãrcio Camargo

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Mãe, agora que guardaste na arca


Mãe, agora que guardaste na arca
as blusas pretas e os teus olhos
voltaram a ser azuis; que os meus
irmãos dormem no seu quarto um
sono de poderem ser felizes, que

já conseguimos dizer uma à outra
o nome dele no meio de um sorriso
porque a morte, afinal, é uma coisa
tão longe – deixa-me perguntar-te

porque não há retratos do meu pai
comigo ao colo, como os dos meus
irmãos que ele trazia sempre junto
ao peito e tu depois dividiste pela
casa para ele poder saber que ainda

te lembravas; ou então debruçado
no meu berço – que tu escondeste
no sótão ainda eu era pequena e te
sentavas a embalar vazio quando ele
não entendia porque estavas tão
triste. Mãe, eram tão azuis os olhos

do meu pai no dia em que levou os
meus irmãos à escola e tinham tanto
medo do que pudesse acontecer-lhes;
são tão azuis também os olhos deles
debaixo do seu sono, e os meus tão

negros de dúvidas – porque foste
sempre tu que me levaste sozinha
para as coisas difíceis da minha vida,
que o meu pai nem nunca quis saber
que coisas eram. Mãe, estão hoje tão

azuis os teus olhos com essas roupas
claras, e eu ainda tenho o nome do
meu pai entre as minhas lágrimas, mas
agora, que os meus irmãos descansam

no seu quarto, que já todos podemos
dizer o nome dele sem nos cortar os
lábios, diz-me a verdade: esse homem
que chorámos era mesmo meu pai?

Autor : Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Para ser feliz


Leva-me para onde os dias florescem
semeando maresia
e as noites se entretecem
de mistério e poesia.

Diz-me as palavras que tens no olhar
e nem precisas de me dizer
porque as sei adivinhar
mesmo sem querer.

Deixa-me desvendar o paraíso
no teu corpo. Algo me diz
que de nada mais preciso
para ser feliz.

Autor : Torquato da Luz
Imagem: antoine renault

domingo, 20 de outubro de 2019

Crepúsculo

Uma lágrima insolente
Teimou em cair
Soprei-a para longe
Cansada do seu  sabor a sal
.
Caiu desprotegida
E perdeu-se na suavidade
Da pele sem maquilhagem
.
Transformei-a num sorriso
E abraçei a saudade de ti
Na tarde incandescente de sangue
.
Autor : BeatriceM 2012-09-09 (reeditado)
Foto: anna o. photography

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Chamamento


Da margem do sonho
e do outro lado do mar
alguém me estremece
sem me alcançar.

Um bafo de desejo
chega, vago, até mim.
Perfume delido
de impossivel jasmim.

É ele que me sonha?
Sou eu a sonhar?
Sabê-lo seria
desfazer, no vento,
tranças de luar.

Nuvens,
barcos,
espumas
desmancham-se na noite.

E a vida lateja, longe,
num outro lugar.

Autor : Luísa Dacosta
Imagem: Vladimir Volegov

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O que não escrevi,calou-me.

O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se.

Autor : Affonso Romano de Sant'Anna
Imagem: Logan Zilmer

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Memória é Medo


                                                           memória é medo
que se entreva
entre as teias
do corpo
memória é osso
sem carne
que cobrimos
da melhor forma
possível
para que não
sangre

Autor : Vera Lúcia de Oliveira

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Pedras

Eu canto estas pedras de fio,
Este areal de aves esquecidas.
Passo por ti sem ver as rosas, a flor que pelos olho esvoaça.

Eu canto como se aqui fosse uma praça,
Uma praça coberta de cadáveres
E o teu rasgado pelo ventre
Fosse um cadáver mais por entre os dedos.

Por isso é que esta dor não pode ser poema.
Por isso é que não pode ser uma palavra.

Autor : Mário Contumélias
In Sou deste mar Lisboa, Litexa, 1983
Imagem: Jaroslaw Datta

domingo, 13 de outubro de 2019

Esta dor


Não sei desenlaçar-me 
desta dor 
que se hospedou em mim 
e que aqui fez pousio 
e se demora. 

Eu sei 
esta dor é 
exclusivamente minha 
e só minha 
e se calhar para sempre. 

Autor : BeatriceM 2019-09-02
Imagem : Cristina Coral

sábado, 12 de outubro de 2019

Gosto quando me falas de ti...

Gosto quando me falas de ti... e vou te percorrendo
e vou descortinando a tua vida
na paisagem sem nuvens, cenário de meus desejos
[tranqüilos

Gosto quando me falas de ti... e então percebo
que antes mesmo de chegar, me adivinhavas,
que ninguém te tocou, senão o vento
que não deixa vestígios, e se vai
desfeito em carícias vãs...

Gosto quando me falas de ti... quando aos poucos a luz
vasculha todos os cantos de sombra, e eu só te encontro
e te reencontro em teus lábios, apenas pintados,
maduros,
mas nunca mordidos antes da minha audácia.

Gosto quando me falas de ti... e muito mais adiantas
em teus olhos descampados, sem emboscadas,
e acenas a tua alma, sem dobras, como um lençol
distendido,
e descortino o teu destino, como um caminho certo, cuja
primeira curva
foi o nosso encontro.

Gosto quando me falas de ti... porque percebo que te
[desnudas
como uma criança, sem maldade,
e que eu cheguei justamente para acordar tua vida
que se desenrola inútil como um novelo
que nos cai no chão..."

Autor : J. G. de Araújo Jorge
(Do livro "Quatro Damas" 1ª Edição, 1965)
Imagem  : rosie hardy

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Os dedos de meu pai

os dedos de meu pai pulavam na guitarra
como crianças correndo no jardim...
Vinham os trinados de encontro a mim
cotovias... rouxinóis... uma cigarra?

Os dedos de meu pai longos, delgados,
dançavam na guitarra com leveza...
Era harmonia... música... beleza...
Baladas... canções... duetos... fados.

Ficava muda ouvindo as guitarradas,
com elas vinham duendes, magos, fadas
e na noite, bailados de luar...

Os dedos de meu pai eram sereias,
cometas, estrelados, luas cheias,
que corriam sobre mim, para me encantar...

Autor : Maria Helena Amaro  8/01/2014
Imagem : Tela de José Malhoa (O Fado)