sábado, 31 de agosto de 2019

Relâmpago

Rompe-se a escuridão quando ao olhar 
para uma face o mundo se ilumina 
com uma claridade repentina 
capaz de, só por si, fazer brilhar 

a substância tão irregular 
de tudo o que se acende na retina 
e através da luz se dissemina 
por entre imagens vãs, até formar 

um fluido movimento, uma paisagem 
a que estes olhos quase não reagem 
salvo se nesse instante o rosto for 

transfigurado pela fantasia. 
E às vezes é só isso que anuncia 
aquilo a que chamamos o amor. 

Autor : Fernando Pinto do Amaral
in 'Às Cegas' 
Imagem : Joan Carol

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Sedução

Dentro de mim mora o animal
indômito e selvagem
que talvez te faça mal

talvez uma faísca
relâmpago no olhar
depressa como um susto
me desmascare o rosto
e de repente deixe exposto
o meu pior

em mim germina
uma força perigosa
que contamina
uma paixão vulgar
que corta o ar e que
nenhum poder domina

explode em mim
uma liberdade que te fascina
sopro de vida
brilho que se descortina
luz que cintila, lantejoula
purpurina
fugaz como um desejo
talvez te mate
talvez te salve
o veneno do meu beijo.

Autor : Bruna Lombardi
Imagem : Marta Bevacqua

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

A um jovem Poeta


Procura a rosa. 
onde ela estiver 
estás tu fora 
de ti. Procura-a em prosa, pode ser 

que em prosa ela floresça 
ainda, sob tanta 
metáfora; pode ser, e que quando 
nela te vires te reconheças 

como diante de uma infância 
inicial não embaciada 
de nenhuma palavra 
e nenhuma lembrança. 

Talvez possas então 
escrever sem porquê, 
evidência de novo da Razão 
e passagem para o que não se vê. 

Autor : Manuel António Pina
 in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"
Imagem : laura makabresku

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Tomara ...


Tomara que a gente não desista de ser quem é por nada nem ninguém deste mundo. Que a gente reconheça o poder do outro sem esquecer do nosso. Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades, mesmo que as mentiras e as verdades não sejam permanentes. Que friagem nenhuma seja capaz de encabular o nosso calor mais bonito. Que, mesmo quando estivermos doendo, não percamos de vista nem de sonho a ideia da alegria. Tomara que apesar dos apesares todos, a gente continue tendo valentia suficiente para não abrir mão de se sentir feliz. 

Autor : Ana Jácomo
Imagem : Josephine Cardin

terça-feira, 27 de agosto de 2019

O Sangue das Horas

Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a Noite me trouxe a lua…
Você tem sede, não é?
E a Noite me deu café.

São verdes como a esperança
as horas em que sou triste:
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.

Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura
bebo a esperança, remédio
para as feridas sem cura…

Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar?
É a Noite que, de tão velha,
tão velha,
criou cabelos de luar…

A insônia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras…
Meus olhos são duas feridas
por onde
escorre o sangue das horas.

Entre o passado e o porvir
aqueles peixes de prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos…
Criei cabelos de luar.

Autor : Cassiano Ricardo
 (São José de Campos, Brasil, 26/6/1895 – Rio de Janeiro, 14/1/1974)
Poeta, ensaísta, jornalista, licenciado em Direito
Imagem : Joel Robison

domingo, 25 de agosto de 2019

Reflexões


Voltei a pintar.
Não que isso seja muito relevante, e ainda nem sei o motivo,porque o voltei a fazer.
Ando novamente às voltas com tintas, pincéis e a urdir cores, embora ache que há sempre algo incorrecto, e o que consigo pintar, leva-me a supor, que nunca deveria ter retomado.
Mas também que importa?!
Por vezes questiono-me.
Será que ainda tens aquela tela no hall de entrada?
Também isso não tem qualquer importância, porque já foi há tanto tempo que talvez a humidade já a tenha corroído, e precise de ser restaurada.
Só queria que soubesses...

Autor : BeatriceM 2019-08-22
Imagem : antoine renault

sábado, 24 de agosto de 2019

Colho-te uma flor

Colho-te uma flor
de manhã e extasio-me
com o teu sorriso

Autor: José Félix
Imagem : Ezig Polat

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Pelo Fogo da Fala

pelo fogo das palavras 
pela sarça ardente das palavras 
pisando por rugas de telhas 
enquanto o coração crescia 

pelo fogo da fala 
pelo pavio secreto da língua 
pela fagulha ardente 
crescia meu coração 
como crescem as folhas 
que o vento arrasta no ardor da combustão 

Autor : Vera Lucia de Oliveira
(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006) 
Imagem: Joel Robison


quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Debaixo de minha mesa


Debaixo de minha mesa 
tem sempre um cão faminto 
-que me alimenta a tristeza... 

Debaixo de minha pele 
alguém me olha esquisito 
-pensando que sou ele. 

Debaixo de minha escrita 
há sangue em lugar de tinta 
-e alguém calado que grita. 

Autor : Affonso Romano de Sant'Anna
Imagem: Karen Hollingsworth

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Tem gente


Tem gente que entra na nossa vida de forma providencial e se encaixa naquela história que gosto de imaginar: surpresas que Deus embrulha pra presente e nos envia no anonimato. 


Surpresas que só sabemos de onde vêm porque chegam com o cheiro dele no papel. 

Autor : Ana Jácomo

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Quando a gente Ama


Quem vai dizer ao coração, 
Que a paixão não é loucura 
Mesmo que pareça 
Insano acreditar 

Me apaixonei por um olhar 
Por um gesto de ternura 
Mesmo sem palavra 
Alguma pra falar 

Meu amor, a vida passa num instante 
E um instante é muito pouco pra sonhar 

Quando a gente ama, 
Simplesmente ama 
É impossível explicar 
Quando a gente ama 
Simplesmente ama! 

Autor : Oswaldo Montenegro
Imagem: Ildiko Neer

sábado, 17 de agosto de 2019

Explicaçao da Eternidade


devagar, o tempo transforma tudo em tempo. 
o ódio transforma-se em tempo, o amor 
transforma-se em tempo, a dor transforma-se 
em tempo. 

os assuntos que julgámos mais profundos, 
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, 
transformam-se devagar em tempo. 

por si só, o tempo não é nada. 
a idade de nada é nada. 
a eternidade não existe. 
no entanto, a eternidade existe. 

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos. 
os instantes do teu sorriso eram eternos. 
os instantes do teu corpo de luz eram eternos. 

foste eterna até ao fim.

Autor : José Luís Peixoto
in A Casa, A Escuridão
Imagem : Elena Dudina

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O coração é como um fruto


O coração é como um fruto
cresce
amadurece
mas não cai:
Se alguém o quiser
não morre

Autor : Ana Hatherly

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Arranca metade do meu corpo


Arranca metade do meu corpo
Do meu coração,
Dos meus sonhos.
Tira um pedaço de mim, 
qualquer coisa que me desfaça.
Me recria,
porque eu não suporto mais pertencer a tudo,
mas não caber em lugar algum.

Autor : José Saramago

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Dias melhores


A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.

Autor : Rosa Alice Branco
In Da Alma e dos Espíritos Animais
Imagem : Marius Markowski

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Sombras



A meio desta vida continua a ser
difícil, tão difícil
atravessar o medo, olhar de frente
a cegueira dos rostos debitando
palavras destinadas a morrer
no lume impaciente de outras bocas
anunciando o mel ou o vinho ou
o fel.

Calmamente sentado num sofá,
começas a entender, de vez em quando,
os condenados a prisão perpétua
entre as quatro paredes do espírito
e um esquife negro onde vão desfilando
imagens, só imagens
de canal em canal, sintonizadas
com toda a angústia e estupidez do mundo.

As pessoas - tu sabes - as pessoas são feitas
de vento
e deixam-se arrastar pela mais bela
respiração das sombras,
pela morte que repete os mesmos gestos
quando o crepúsculo fica a sós connosco
e a noite se redime com uma estrela
a prometer salvar-nos.

A meio desta vida os versos abrem
paisagens virtuais onde se perdem
as intenções que alguma vez tivemos,
o recorte obscuro de perfis
desenhados a fogo há muitos anos
numa alma forrada de espelhos
mas sempre tão vazia, sem abrigo
para corpo nenhum.

Autor : Fernando Pinto do Amaral
in 'Pena Suspensa'
Imagem :Cyril Rolando

domingo, 11 de agosto de 2019

as horas


as horas que perdi a esperar-te, não foram perdidas.  sempre foram compensadas, pelo brilho dos teus olhos ao chegar.

desde Junho que não te espero mais  e sobra-me as horas que perdia.

sem perder.

não sei que faço com elas, nem sei que faço da solidão em mim.

Autor: BeatriceM 11/08/2013 (reeditado)

sábado, 10 de agosto de 2019

Flor da Paixão


Sei agora 
que a paixão 
é azul e coroada 
como o sangue e a cabeça 
das rainhas. Que tem 
nome de flor 
e é ímpar. Porque, 
se o não fosse, 
não seria paixão. 

Autor : Albano Martins
in "Castália e Outros Poemas"
Imagem : Melina Holloway

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Prece

Na vida, 
aprendi os salmos perdidos; 

são eles que me pegam
quando o continente 
cobre os meus olhos 
de deserto. 

Autor : Clarissa Macedo 

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Infinita conversa com as nuvens

Antes de partir para as montanhas espalharei os 
poemas pelo chão como quem abre um mapa pela 
última vez. Como quem relembra o extenso areal dos 
dias, a incansável rotina dos comboios, a infinita 
conversa com as nuvens. 

Quando partir para as montanhas deixarei os poemas 
pelo chão como quem renega todos os mapas. Levarei 
apenas o meu corpo para que ele me fale do teu. 

Autor: - Rui Miguel Fragas
O Nome das Árvores. Poética Edições, 2014.
Imagem:-Joan Carol

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Sim

Os livros, sim. 

A escola, sim. 

E a pele, e o ouvido, e o cheiro, e o olhar, e o paladar, sim, sim. 

Olhar quem passa, ouvir o amigo e o inimigo, cheirar o pão, o ferro, o suor, o vinho, a maresia, sentir o frio, o calor, a macieza da pele, do pelo, sentir o corte, o empurrão, a dor, o aperto, o abraço, saber o amargo até ao fel, o doce até ao mel.

Se o tempo chegar, estudar a filosofia dos gatos, das magnólias, do xisto, dos velhos sábios, dos velhos ignorantes, da lua nova e da orion. 

Depois dormir, com um livro inacabado sobre peito.

Autor : Licínia Quitério
http://sitiopoema.blogspot.com/

terça-feira, 6 de agosto de 2019

....


É em ti que moro
e vivo
que visito os horizontes
águas
serras 
montes
que trazes no teu olhar
Se tu és fogo
tempo
e luz
Eu sou o mar

Autor: Edgardo Xavier

sábado, 3 de agosto de 2019

As palavras têm rosto: ou de silêncio ou de sangue


As palavras têm rosto: ou de silêncio ou de sangue. 
O cavalo que nos domina é uma sombra apenas. 
Sem sílabas de água, avança até ao outono. 
Uma árvore estende os ramos. As nuvens subsistem. 

O cavalo é uma hipótese, uma paixão constante 
Na rede das suas veias corre um sangue de tempo, 
uma árvore se desloca com a alegria das folhas. 
Árvore e cavalo transformam-se num só ente real.

Eu que acaricio a árvore sinto a força tenaz 
da testa do cavalo, a eternidade férrea, 
o ser em explosão e eu tão leve folha 

na sombra deste ser animal vegetal 
busco a razão perfeita, a humildade estática, 
a força vertical de ser quem sou e o ar.

Autor : Antonio Ramos Rosa
"Círculo Aberto ", Lisboa, Ed. Caminho
Imagem: Andre Kohn

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

DEPOIS DE TUDO


Mas tudo passou tão depressa.
Não consigo dormir agora.

Nunca o silêncio gritou tanto
nas ruas da minha memória.

Como agarrar líquido o tempo
que pelos vãos dos dedos flui?

Meu coração é hoje um pássaro
pousado na árvore que eu fui.

Autor:Cassiano Ricardo
De A Difícil Manhã (1960)
Imagem : laura makabresku