domingo, 30 de abril de 2023

Outrora

 

Outrora, o dia não dava para nada

Era diminuto
E não se podia distender
Hoje o dia é longo, e dá para tudo
E o tudo já é quase nada
E fico escrevendo pela noite dentro
Frases que ninguém vai ler
E pinto aguarelas que se desmoronam nas cores
Pálidas e frágeis
Assim a solidão é menos dolorosa
E os medos ficam menores
 
Autor: BeatriceM 30-04-2023
Imagem : anna heimkreiter

sábado, 29 de abril de 2023

Amar

Amar não deve ser desfortuna.
O cio transfunde
a lagartixa e o homem
na criação tenaz.

E o buxo, o pólen
e as primeiras folhas
da vinha virgem. Amor
não tem quaresma,
nela impetuoso regressa e copula.


Autor : António Osório, in 'O Lugar do Amor'
Imagem : Richard Blunt

António Osório, nascido António Gabriel Maranca Osório de Castro[1] (Setúbal, 1 de agosto de 1933 – 18 de novembro de 2021), foi um escritor e poeta português, com antepassados galegos e italianos (com raízes corsas e florentinas).

quinta-feira, 27 de abril de 2023

escrevo como quem quer ser escrito

uma árvore ou uma pena no centro da frase
um espelho branco onde observo a palavra

e dos seus troncos brotam folhas, letras
inundações de verde no lago azul do céu
que caem, voando, asas de papel

como tu, também eu sussurro
lentas sílabas à leve melancolia que nos abraça

Autor : Jorge Reis-Sá
Imagem Nicolas Bruno

quarta-feira, 26 de abril de 2023

..

Aprendi que ninguém precisa saber que estamos tristes ou como anda a nossa vida. Aprendi que, qualquer que seja o problema que tenhamos, ele pertence só a nós.

Aprendi a guardar as dores e os momentos difíceis só pra mim. Aprendi também que os melhores textos saem sempre das mãos de quem sabe isolar-se e tem como companhia apenas o silêncio.

Aprendi igualmente que ninguém se importa como estamos, nem como foi o nosso dia. Aprendi que poucos dão valor ao que fazemos por eles, e poucos sabem valorizar a nossa companhia.

Aprendi a não me importar com a forma como agem comigo e a não guardar mágoas no coração. E, por isso, sou diferente de muitos. Aprendi a não me importar com os pensamentos de fulano ou sicrano, que não conheço, nem sabem quem sou.

E, hoje, só me importo com o bem-estar que posso proporcionar aos que amo e a viver com a felicidade no meu sorriso.

Autor : HSC (Helena Sacadura Cabral )
Imagem :Erika Hopper

terça-feira, 25 de abril de 2023

Explicação do País de Abril

País de Abril é o sítio do poema.
Não fica nos terraços da saudade
não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui
tão perto que parece longe.

Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.

Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência.

País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos
viaja-se por dentro e tem caminhos veias
– os carris infinitos dos comboios da vida.

País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.

Não procurem na História que não ven na História.
País de Abril fica no sol interior das uvas
fica à distância de um só gesto os ventos dizem
que basta apenas estender a mão.

País de Abril tem gente que não sabe ler
os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos
para falar aos homens do País de Abril.

Mais aprende que o mundo é do tamanho
que os homens queiram que o mundo tenha:
o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.

Autor : Manuel Alegre

domingo, 23 de abril de 2023

São as memórias

São as memórias que me conduzem
A ressurgir em cada dia
Que nasce no horizonte

São os aromas das flores
Na varanda da cozinha
Que me fazem purificar o olfacto

Há uma vontade descomunal
De não te deixar morrer
Mesmo que o teu caminho
Já não se cruze com o meu

Autor :BeatriceM 23-04-2023
Imagem : anna derzhanovskeya

sábado, 22 de abril de 2023

Escrevo

 

Escrevo,
só porque me apetece
e escrevo para todos
e para ninguém,
que me importa que não gostem
do que o momento me ditou
e transformei em estrofes
se há em mim um desejo ardente
de incendiar as palavras com versos
de sentimentos por vezes controversos

Assim, escrevo eu
sem pensar em quem me vai ler,
escrevo porque quero que saibam
que as minhas palavras brotam
da fonte dos meus instantes
e que a cristalinidade dos meus sentidos
é a corrente que me leva a navegar
até ao mar da minha imaginação...

Por isso, que culpa tenho eu
se não me acompanham
neste meu solitário navegar
onde a minha fome de palavras
invade-me a alma
gritando ansiosas por se soltarem
da âncora do meu peito
que por segundos as aprisionou…

É por tudo isto que eu…
teimosa e febrilmente escrevo.

Autor : José Carlos Moutinho
Imagem : Boyana Petkova

sexta-feira, 21 de abril de 2023

não

Não sei dizer do silêncio.
A noite fechou-se
e ainda nem tínhamos calado os olhos.
Sem dar por nada, já não nos ouvíamos
Tu?

Galho de outra ave.

Autor : Maria Isabel Fidalgo in Não Esqueças o Meu Nome
Imagem:Adam Bird

quinta-feira, 20 de abril de 2023

já não tenho mão

já não tenho mão com que escreva nem lâmpada,
pois se me fundiu a alma,
já nada em mim sabe quanto não sei
da noite atrás da luz: livros, frutas na mesa, o relógio
que mede
minha turva eternidade
e o tempo da terra monstruosa,
já nada tenho com que morrer depressa,
excepto
tanta hora somada a nada:
acautela a tua dor que se não torne académica .

Autor :Herberto Helder, in Servidões
Imagem : Evan Atwood

quarta-feira, 19 de abril de 2023

  

Não há desespero algum neste estar só. Se permaneço imóvel é porque o silêncio é mais simples do que a voz de alguém. Na fala dos outros há sempre a rouquidão das coisas. O gemido latente das mãos a quererem mais. E no chão fora de mim há estilhaços onde corro o risco de ferir os pés. Corações que se partiram contra as manhãs de vidro dos sonhos.

Aqui estou a salvo. Neste estar só onde é impossível enlouquecer. Onde não há janelas que me atirem tempestadas. Nem sol que me arda no peito.

Autor : Virgínia do Carmo in Relevos
Imagem : Agnieszka Lorek

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Abraça-me

 


Joaquim Maria Pessoa
Barreiro 22 de Fevereiro de 1948
Lisboa 17 de Abril de 2023



Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

Autor :Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'


domingo, 16 de abril de 2023

um poema

um poema é apenas um sentimento,
encharcado de palavras sensíveis,
que eu coloco nos teus lábios com carinho.
 
Autor : BeatriceM 16-04-2023
Imagem : Holly Florenceé


sábado, 15 de abril de 2023

Trazias

Trazias lindas flores no regaço
envoltas num poema de cetim.

Que lindo! Declamavas para mim
enquanto pela estrada passo a passo,
te ouvia embevecido... E num abraço
olhávamos à volta outro jardim;
Seguíamos felizes, era assim,
apenas nós os dois, naquele espaço.
Chegava uma suave melodia
que acompanhava a tua poesia
porém sem se saber donde é que vinha...
Foi um momente breve... aconteceu...
Depois ao acordar, sabes... doeu
quando ao abrir os olhos não te tinha.

Autor : Joaquim M. A. Sustelo 06/03/2006
© Todos os direitos reservados

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Espelho Meu


Não sei de quem a marca
que embaça o espelho
essa cicatriz em formato de mão
essa intromissão essa gafe não sei
quem espalmou ali
seu traço
não sei de quem a mão
fantasma que esfuma
o meu rosto o meu tempo o reflexo
que me habituei
a confirmar aqui
não sei quem plantou
na minha cara uma outra
biografia

.. não sei ao certo
mas desconfio que essa neblina
no espelho
seja eu.

Autor : Adriana Lisboa
Imagem :Michelle Ellis

quinta-feira, 13 de abril de 2023

indicação do lugar


chegamos a uma página em branco atravessada por
um súbito silêncio uníssono
o rio é uma dobra do olhar onde sempre estivemos em surdina

é o exacto lugar
indiciador dos músculos

quem ousa escancarar as portas à cidade

Autor : Carlos Nogueira Fino
Imagem :Katharina Jung

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Voltar



Quero tanto voltar ao sul…
Mas o corpo não me deixa,
A tristeza tolhe-me a saudade,
É mais forte que a minha vontade…
Neste abrigo onde me enfado,
Cada dia é uma queixa,
E falta-me o meu azul…
Todos os dias te sonho
Em cada dia me ausento
Do sonho que me proponho…
Dispo a minha alma, confesso,
Luz no olhar,
Meu sul, como te desejo,
E logo quero voltar!

Autor : Alcina Viegas
Imagem Jenna Martin

terça-feira, 11 de abril de 2023

Não é Preciso

Não é preciso que a realidade exista
para acreditarmos nela. Na verdade,
se não existir tudo é mais luminoso.
Mundo, evidência submissa e soberana.

Autor : Pedro Mexia
Imagem :Oscar Kerserci

domingo, 9 de abril de 2023

deixaste

deixaste (me) como um livro que leste
e não arriscaste entender
pela sua complexidade
para interpretares
terias de sublinhar várias palavras
para fazerem conformidade na tua visão .

seria mais confortável que,
não o recordasses mais,
e assim seria apenas mais um livro,
que nem decifraste,
arrumado na estante da vida,
sem precisar mais ser lido ou sequer folheado.

e o tempo passou, gravitou, rodopiou.

tantos anos depois, tantos,
a memória inundou o teu espírito, e com surpresa para ti
deste conta que adorarias voltar,
a folhear e reler aquele livro,
que um dia, desprezaste.

Autor : BeatriceM 09-04-2023
Imagem :Vincent Bourilhon

sábado, 8 de abril de 2023

Eco

 

É mais fácil partir quando o silêncio
transpõe a tua voz.

Mais simples celebrar a tão efémera
certeza de estares vivo.

A música do ar esvai-se nas sombras,
tu sabes que é assim,
que os dias correm céleres, não tentes
perseguir o seu rasto – repara
como em abril as aves são felizes.

Sê como elas: não perguntes nada,
deixa que o sol responda à flor da tarde
e esquece-te do mundo.

Autor : Fernando Pinto do Amaral (Lisboa, 12/5/1960)
Imagem _Annegien Schilling

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Ode à palavra


Ode à palavra

O tempo jamais conseguirá desfazer a

essência de tua fortaleza, já que

és do cosmo absoluto

 

e da troca de idéias entre os homens,

o fundamento.

               E, ainda que,

                  bastando-se,

e,

                  infinitamente sendo tu,

                    realidade,

verdade,           ciência,

alma,

corpo,

dogma,

mito,      e,

         não tendo infinito,

ocupas    lugar primeiro,

na VIDA


Autor - Ada Ciocci Curado
, no livro "Acalanto". Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1991.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Piquenique

Sobre o meu ventre:
a branca flor das tuas mãos.

(A luz escorre pelos flancos
da tarde gritando oiro.)

O corpo inunda-se
de cada vogar lento
desse outro que é fruto
sem à terra o pedir.

(Tão clara a maciez dos seios,
tão iminente o íntimo perfume.)

Prova destes espelhos o mel
da gloriosa morte dos poentes,
e desta porta ao estio aberta
saboreia a frescura imensa
da palavra rarefeita.

Nenhum outro trevo saciará
o lume das rosas quietas.

Autor : Pedro Belo Clara 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Ossos

 

Quando estou mais triste
costumo conversar com a
terra,
        mas digo-lhe que não:
que, apesar de tudo, prefiro
o fogo
           a ter de dar- lhe a roer,
no fim de tudo os meus ossos.

Autor : Maria do Rosário Pedreira
In o meu corpo humano pág. 32

terça-feira, 4 de abril de 2023

Canto incivil


Basta estar vivo
pra ser subversivo.
(Ou subservivo).
Basta não figurar
no registro civil
pra ser incivil.
(Ou vil, pra encurtar a palavra).

Basta ser incivil
pra não ser ninguém.
Basta não ser ninguém
pra ter o apelido
que a polícia dá
a quem não é ninguém.

Tinha eu dois nomes:
Zebedeu,
que a miséria me deu.
E “elemento subversivo”
que a polícia me deu.

E apenas uma dor:
a que a vida me deu.

E eis-me aqui, incivil
(ou vil, pra encurtar a palavra).

Uma patada de cavalo
em meio do comício
e eis-me aqui, estendido em decúbito
dorsal.
 
(Ou já cortado ao meio,
sem dor, nem sal).

Autor : Cassiano Ricardo
Montanha-russa (1960)
Imagem : Mariusz Lewandowski

domingo, 2 de abril de 2023

há coisas


há coisas simples de dizer, mas, talvez por serem simples, tornam-se mais difíceis. podia telefonar e dizer que me tinha enganado. era tão simples,e no entanto tão difícil. tu no meio das reuniões e dos números. o meu coração descompassado. a tua voz. o teu riso e depois. pedir desculpa e desligar. e a saudade a dilacerar, o corpo e a alma.  talvez até já nem tenhas o mesmo número. e há coisas simples que me trazem alegria. hoje tudo me lembra, vento. um mar escuro. uma chuva prestes a cair. e eu fecho os olhos. tento sorrir. afinal é primavera. as flores crescem em todo o lado. e dói. não saber nada de ti.

Autor : BeatriceM 02-04-2023
Imagem : Shelby Robinson

sábado, 1 de abril de 2023

Rezar a quaresma

Ajuda-nos, Senhor,
a viver a quaresma
que agora começa como um tempo favorável,
como uma chamada a renascer.

Ajuda-nos a olhar a quaresma
como uma primavera interior
que desencadeia em nós
uma verdadeira revitalização
e rompe o oceano gelado
que, tantas vezes, é a nossa vida.

Ajuda-nos a recordar
que um orante
não é apenas uma árvore de palavras,
mas é também uma árvore de gestos.

Que este tempo que principia
nos reaproxime de Ti, Senhor.

Que Te busquemos
com o desejo dos peregrinos,
com a urgência dos sedentos,
com a humildade dos mendigos.

Que soletremos o Teu Nome no silêncio,
sentindo que o Teu Nome
acende dentro da nossa noite uma luz.

Que a oração seja o fio discreto
que liga todas as coisas e lhes revela o sentido.

Que o jejum, voluntariamente assumido,
constitua para nós
uma escola de esvaziamento de si
para que possamos escutar e acolher
aquela plenitude
que vem de Ti, Senhor.

Que na renúncia e na privação
nos abramos à arte do dom,
ao artesanato da paz.

Ensina-nos a repartir com os necessitados
o nosso tempo, a nossa humanidade,
os nossos bens,
recordando-nos que devemos distribuir gratuitamente
o que gratuitamente recebemos.

Que esta quaresma, Senhor,
nos torne sensíveis à lição de Jesus,
assumindo a audácia e a alegria
de uma vida vivida segundo o Seu estilo.

Autor Cardeal D. José Tolentino Mendonça.