É Outono mas também é Maio

Já é Outono ___ eu sei

mas escondo de ti o calendário

digo-te que é Maio

que há flores por todo o campo

poupo-te à minha angústia

e à tua dúvida

falo-te

da nossa aldeia

como se fosse uma grande cidade

concordo

quando dizes que gostas da nossa casa

e falas ternamente do jardim

digo-te

que a roupa está lavada e engomada

___ toda nova e perfumada

confirmo

que os netos virão neste Verão ___

___ todos juntos e saudosos de ti

sossego-te

pelo futuro que me parece

esperançoso e azul

ameaço-te

que te alcançarei num voo se fugires

e que aterraremos abraçados

peço-te

que não te canses e que ouças em silêncio

a música que escolhi para nós

É Outono mas digo-te que é Maio

poupo-te à minha angústia

e à tua dúvida

não posso impedir que adormeças ___

___ devagar ___ mas

digo-te

que sim ___ que acordarás

e que eu estarei aqui

como sempre.

Autor : Luís Rodrigues

https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/

Imagem :Kelly Tan

Eu quero

 

Eu quero fazer parte do teu barco

Quero ser o teu porto

Onde descansas depois da viagem

Quero ser o momento do final do dia

Onde as tuas mãos se juntam às minhas

E vamos até o final da praia

Quero ser de um lugar onde o sol brilhe

E estar a ver o amanhecer

Onde dois lábios se tocam

Autor : BeatriceM 2023-06-25

Imagem : melissa vincent

sabes, pai

 

o cachecol bege nos muros da foz

cobria as árvores com o seu pêlo, ao vento

o boné azul, marinheiro nos cabelos louros

sussurrava pequenas frases às silentes águas

o teu sorriso tão leve, enternecia o rosto

esses óculos, teu cabelo nas tardes de sol

ou o barco encalhado na areia breve

junto ao castelo onde nos passeávamos

eu tu a mãe, duas ou três falas e o meu corpo

que se chegava a vós junto à estrada

nestes muros da foz, abertos ao mar

que voava

Autor  : Jorge Reis-Sá

Imagem : Hayley Roberts

Secretamente

o último mergulho tornava imperioso o regresso

à varanda, onde o paraíso se fundia.

crepusculava e eu, absorta, nem percebia

que as estrelas eram cúmplices de todos os luares.

o mar era um rumor

de tanto que segredava!

Autor : Tereza Brinco Oliveira,

 in "O Riso rasgado do tempo", 2011, Edita-Me Edições Lda.

Imagem : Albulena Panduri

Pó

Nas estantes os livros ficam

(até se dispersarem ou desfazerem)

enquanto tudo

passa. O pó acumula-se

e depois de limpo

torna a acumular-se

no cimo das lombadas.

Quando a cidade está suja

(obras, carros, poeiras)

o pó é mais negro e por vezes

espesso. Os livros ficam,

valem mais que tudo,

mas apesar do amor

(amor das coisas mudas

que sussurram)

e do cuidado doméstico

fica sempre, em baixo,

do lado oposto à lombada,

uma pequena marca negra

do pó nas páginas.

A marca faz parte dos livros.

Estão marcados. Nós também.

Autor :Pedro Mexia

Imgem : Nicole Burton

sou ...

sou uma página em branco

desprezada, num livro por finalizar

deixada na estante da biblioteca

austeramente ordenada por disposição alfabética

pelo nome dos seus autores

sou a página marcada, porque está vazia

não tem utilidade para ninguém

nem para nada

esta página em branco, é apenas uma utopia

necessita que alguém lhe toque

e contemple a beleza que lhe falta concluir

a obra incompleta

que o autor não soube, ou não quer acabar.

Autor : BeatriceM 2023-06-18

Imagem : nicole burton

Explosão

Um dia quis a dor

Alojar-se em meu coração.

Ela tentou, se maquiou,

Insistiu, reagiu, e conseguiu!

A dor que parecia maior

Que o meu poema,

A dor, como um ardor,

Como verdade serena,

Sim, ela veio e se aconchegou,

E dominou os meus dias,

E cantou, sorriu, limpou-me

As lágrimas, as chagas,

Cuidou de mim,

Para sempre está ali,

Como uma confissão,

E por mais que eu acredite

Em conspiração, a dor não!

Ela é presente, onipotente,

Não me faz doente,

Pelo contrário, me faz forte,

E mesmo que me perca na vida,

E me ganhe sem medida, a morte,

Não importa se vazio eu esteja,

Ou até cheio, derramado, imerso,

Que a minha pena ou condenação,

Antes de qualquer crime seja,

A alma repleta de versos,

Como num atentado, explosão!

Autor * Paulo Carvalho – jornalista, poeta e escritor.(brasil)

https://pretonobranco.org/2017/03/08/explosao-paulo-carvalho/

Imagem : Geert Weggen

A uma Calça Jeans

Eu te peço desculpas pela

lambança da bainha

pesquisei o passo

a passo mas a agulha é muito

pequena a linha é muito fina

e minhas mãos se impacientam demais

outras calças que tive no passado

desfrutaram da costura contemplativa

que minha mãe lograva — talento que não

herdei embora tenha tentado (agulhas

de tricô aos dez anos inclusive)

minha destreza não passa

de um emaranhado de linhas

para a emergência de um botão

sinto muito calça jeans

parece que seguiremos

tropeçando juntas em nossas

costuras mal-ajambradas

enquanto ainda coubermos uma na outra

e o tempo

condoído

ainda couber em nós

Autor : Adriana Lisboa

Imagem : Anil Saxena

No centro da cidade,

 

No centro da cidade, um grito. Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar e sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado. Tem a dimensão de um túmulo e todos os teus gestos são uma sinalização em direcção à morte.

Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso.

Possuo para sempre tudo o que perdi, e uma abelha pousa-me no azul do lírio e no cardo que sobreviveu à geada. Bebo, fumo, mantenho-me atento, absorto - aqui sentado, junto à janela fechada. oiço-te ciciar: amo-te, pela primeira vez, e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte, acaba o corpo. Recolho o mel, guardo a alegria, e digo-te baixinho:

Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge.

Autor : Al Berto

 in LUNÁRIO (1988; Assírio & Alvim, 2017)

Imagem Alex Robciuc

Talvez amanhã

Hoje, mais um dia a fechar

O sol dará lugar à lua

E amanhã será tudo igual a hoje

Apenas mais um dia

Ou não!

Talvez que amanhã um passarinho

Me acorde e eu sinta que ainda há vida

Para além de mim

Autor : BeatriceM 2023-06-11

Imagem :Melissa Vincent

silêncio que me abraça

 

Só quando fiquei só

o silêncio me abraçou.

Só quando fiquei só

iniciei uma conversa comigo mesmo

e descobri que tinha saudades minhas.

Gosto do silêncio que me abraça

da mesma forma que gostei de me reencontrar.

Agora tenho ciúmes de mim próprio.

Não me quero perder para ninguém.

Só voltarei a abrir a porta

a alguém que converse comigo

sem me quebrar o silêncio

sem me roubar de mim.

Autor : João Morgado

in: Para Ti, Kreamus, 2014

Imagem : david talley

Olha-me de novo. Com menos altivez

 

Se te pareço noturna e imperfeita

Olha-me de novo.

Porque esta noite

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.

E era como se a água

Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio

E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo

Entendo que sou terra. Há tanto tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.

Autor : Hilda Hilst

Imagem :Natalie Kapushenko

...

 

terrível beleza

amo essa terrível beleza

que me pede a alma

em troca de um poema.

Autor : João de Mancelos,

In Coração de aluguer. Lisboa: Colibri, 2023.

Senhor

Toma e recebe a minha liberdade

Toma e recebe a minha alegria

Toma e recebe a minha tristeza

Toma e recebe as minhas angústias

Toma e recebe os meus medos

Toma e recebe os meus fracassos

Toma e recebe os meus sucessos

Toma e recebe os meus pensamentos

Toma e recebe a minha memória

Toma e recebe a minha vontade

Toma e recebe a minha fraqueza

Toma e recebe a minha força

Toma e recebe os filhos e netos que me deste

Toma e recebe tudo o que possuo

Porém, foi de Ti, Senhor, que tudo recebi

E é a Ti, Senhor, que tudo devolvo.

Toma e recebe as dores que por eles passei

Dispõe de mim, Pai,

Dá-me apenas amor e graça

Pois será tudo o que me basta!

Autor : HSC

(Helena Sacadura Cabral - No livro - Caminhos para Deus)

Variação

 

Depois da morte que realidade
é a de termos existido? Há

porventura um passado para a morte?

O que é ter existido quando o real

se moveu para o mundo seu contrário?

Vive ainda a linguagem

quando os órgãos da fala que produzem

o canto se perderam e os lábios

vivem só na memória de por eles

passarem as palavras?

Autor : Gastão Cruz

In Existência, Assírio & Alvim, 2017

Imagem  Taylor Rayburn

desencontros

 

Eu nunca me cansei dos nossos passeios à beira mar,

eram pequenos nadas, que encaixavas no teu tempo comigo,

e nas palavras que comungávamos, como se não houvesse amanhã,

e nem os abraços frutíferos nem os beijos apaixonados,

ficaram descurados, nas cinzas do tempo e do vento,

apenas outras directivas se alteraram

e não mais se cruzaram em nossos destinos.

 

Autor : BeatriceM 2023-06-04

Adoração

Brincou a madrugada com teu rosto

Na luz que introduziu em nosso quarto,

Sem nunca imaginar que já me há posto

Um hábito em silêncio, este gosto

De vê-lo adormecido... e adorar-to.

Silêncio, madrugada, tu... e eu;

Dirão: a singeleza de uma tela...

Já não se viam estrelas pelo Céu

A luz a pouco e pouco lhes morreu

Mas eu tinha comigo a minha estrela.

Autor : Joaquim M. A. Sustelo 19/05/2006