sábado, 31 de dezembro de 2022

Agradecimento



Agradecimento

Venho por este meio agradecer a todos os amigos , leitores e aos anónimos que visitaram este espaço, deixando o meu sincero obrigada.

Mais um ano que finda, e outro que começa.

Desejo que o novo ano que se inicia seja mais afável e que nos traga a PAZ no mundo inteiro.

Feliz Ano Novo de 2023 para todos nós

31-12-2022

BeatriceM 
Imagem :Zack Alan

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Por tudo que fomos.


Por tudo que fomos.
Por tudo o que não conseguimos ser.
Por tudo que se perdeu.
Por termos nos perdido.
Pelo que queríamos que fosse e não foi.
Pela renúncia.
Por valores não dados.
Por erros cometidos.
Acertos não comemorados.
Palavras dissipadas.
Versos brancos.
Chorei pela guerra cotidiana.
Pelas tentativas de sobrevivência.
Pelos apelos de paz não atendidos.
Pelo amor derramado.
Pelo amor ofendido e aprisionado.
Pelo amor perdido.
Pelo respeito empoeirado em cima da estante.
Pelo carinho esquecido junto das cartas envelhecidas no guarda- roupa.
Pelos sonhos desafinados, estremecidos e adiados.
Pela culpa. Toda a culpa. Minha. Sua. Nossa culpa.
Por tudo que foi e voou.
E não volta mais, pois que hoje é já outro dia.
Chorei.
Apronto agora os meus pés na estrada.
Ponho-me a caminhar sob sol e vento.
Vou ali ser feliz e já volto.

Autor : Caio Fernando Abreu
Imagem : anna derzhakaya

domingo, 25 de dezembro de 2022

Feliz Natal


Hoje é um dia que se celebra no mundo o nascimento de Cristo.

Porque este mundo anda desavindo e angustiado, oremos e que em nossos corações a esperança a fé na paz no mundo seja uma realidade.

Por este meio desejo a todos os amigos e leitores deste espaço um Feliz Natal abençoado com saúde e muita harmonia, junto de todos os seus familiares.

Feliz Natal para todos!

BeatriceM 25-12-2022

sábado, 24 de dezembro de 2022

Natal: uma Alegria que vem de dentro

Não recorras ao que já sabes do Natal,
mas coloca-te à espera
daquilo que de repente em teu coração
se pode revelar
Não reduzas o Natal ao enredo dos símbolos
tornando-o um fragmento trémulo sem lugar
no concreto da vida
Não repitas apenas as frases que te sentes obrigado a dizer
como se o Natal devesse preencher um vazio
em vez de o desocultar
Não confundas os embrulhos com o dom
nem a acumulação de coisas com a possibilidade da festa:
o que recebes de graça
só gratuitamente poderás partilhar
Cuida do exterior sabendo que ele é verdadeiro
quando movido por uma alegria que vem de dentro
Uma só coisa merece ser buscada e celebrada, uma só:
o despertar de uma Presença no fundo da alma
Por isso o Natal que é teu não te pertence
Só a outro o poderás pedir.

Autor : José Tolentino Mendonça
in Agência Ecclesia 19-12-2013 Paulinas Editora Portugal.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Culpabilidade


O que é o perdão?

Vivi na esperança
de o ter entre os dedos.
Quem diz que o alcança
só vive de enredos...

Fiz mal? Mas a quem?
Que venham contar-me
as mágoas geradas
por meu vil desdém
e as feridas mostrar-me
na carne rasgadas.

Fiz mal? Mas a quem?
Fui pedra lançada
no vosso caminho?
Barrei-vos a estrada
com traves de pinho?

Só sei que

há vozes gritando
a culpa que sinto
pesar-me na alma,
há ecos cavando
a dor que pressinto
em noites de calma...

Só sei que

suspensos enredos
da minha agonia,
urdida ao serão
em grande segredo,
tornaram vazia
a minha intuição.

Fiz mal? Sim ou não?
Onde e quando?
Dizei-mo, dizei-mo!

Eu sou como a rocha
virada prò norte,
que acolhe a rajada
em concha bem forte
e a atira prò nada...

Fiz mal? Sim ou não?
Até os duendes,
escondidos e aduncos,
me negam razão.

O que é que vós tendes?
Tremeis como os juncos
nas bordas do rio.
Escondeis-vos de mim,
do meu poderio?

Do meu poderio!
Ah! Ah! Ah!
Tesouros saídos
de cofre guardado
em cave nojenta,
demónios roídos
de querer aturado
em bolsa sangrenta?

Fiz mal? Mas a quem?
Àqueles que ainda
não viram a luz
das coisas imundas?
De ideias fecundas
fiz braços em cruz?

A treva gerada
em dúvida vã
que cobre a minha alma
andou apressada;
a todos levou
a ânsia e a calma
em Deus embarcou?

Fiz mal? Como e onde?
E quando? E quando?

Autor : Isabel Gouveia
Imagem : Sina  Domke

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Asas e Azares


Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não doi.

Autor :Paulo  Leminski
Imagem : Shelby Robinson

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Chuva Adiada

Se a chuva viesse e lavasse
As tristezas da alma,
E as mágoas que lá encontrasse
fossem só da saudade que acalma,
e as gotas tão brancas tão leves
deslizassem livres, assim delicadas
no corpo despido, esperando breves
chuvas adiadas!

Autor : Alcina Viegas
Imagem : Eduard Gordeev

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A Nocturna Vigilia do Pranto Oculto das Sombras

 


As sombras invadem um mundo como hordas semblantes
Povoam abandonados espaços
Apossam-se na escuridão da escuridão da luz errante

Em taciturno caos avultam-se decrépitas figuras
Silhuetas de destituídos contornos
Esbatidas no retraçar de um símbolo inscrito em infinitos círculos

Cingidas, as sombras agigantam-se, inclinam-se sobre o corpo, abatem-se sobre a face
É íngreme o caminho conducente à ascensão
A nocturna vigília do pranto oculto das sombras

As sombras apoderam-se da razão como hordas errantes
Avolumam-se no obscurecimento da memória
Apartam da luz a luz semblante da escuridão

Iluminadas, as sombras são labaredas insanas
Silhuetas esparsas de um fogo
Incêndios ocultos no corpo

É inquieta a noite que se estende num sibilar de vento infame
É débil o desígnio ocluso que se sente silêncio impronunciado
Silenciadas, as sombras arrastam-se, contraem o rosto, desabam sobre o corpo

Árdua é a crisálida do monocromo de uma lágrima
A nocturna vigília do pranto oculto das sombras

Autor : Filipe Campos Melo
Imagem :Michelle Ellis

domingo, 18 de dezembro de 2022

A noite

A noite é um caminho por onde navego,
os meus sonhos que se vão derretendo,
quando o sono me vence.

.Autor : BeatriceM 2022-12-17
Imagem : Amy Spanos

sábado, 17 de dezembro de 2022

Paisagens

São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida.

Autor : Luís Miguel Nava,
Imagem: evan atwood

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O tu e o eu na paisagem


Não é o restolhar do vento.
É a tua lembrança
que se ergue em mim.

Não é a rosa do sol a esfolhar-se.
É a minha boca -sede e romã-
que sangra na tarde.

Não é a noite que desce.
É a sombra dos teus olhos
a fechar o horizonte.

Autor : Luísa Dacosta
 in A Maresia e o sargaço dos dias

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Nesta última tarde em que respiro

 


Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.

Autor : António Franco Alexandre
Imagem : desconheco o autor

domingo, 11 de dezembro de 2022

Nome de Gato


Por vezes ainda vislumbro a cor dos teus olhos
Em anónimos por quem me cruzo
Nas caminhadas do dia e das ruas
Quase sempre iguais ou aparentadas

Já com o teu nome é diferente
Chamo diversas vezes ao dia
E as pessoas questionam-me
Porque é que o meu gato
Tem nome de gente

Eu sorrio e digo sempre
-É só um nome
que condiz muito bem com ele..

Autor : BeatriceM 2022-12-10
Imagem : füsun ürkün

sábado, 10 de dezembro de 2022

Regresso À Fuga

a noite de escuros voos apanhou-me
com a cabeça acesa numa teia de tinta
é sempre uma mentira existir
fora daquilo que está no fundo de mim
abro
o livro das visões
e uma cidade são todas as cidades trituradas
na memória calcinada do homem nómada


canto
ó resplandecentes águas ó murmúrio quieto
das areias
um pulso que se abre e estremece violento
ó dor da árvore ó surdo ruído do coração
onde a seiva das bocas brilha derramando-se
sobre o corpo
que na asa do migrante pássaro navega
ávido de mundo e desolação.

Autor : AL BERTO
imagem :Karyn Teno

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

O gesto da criação


Na trama das melodias que calam
dos versos que fogem no bando
crava-se a flecha de um sintoma.
Ao romper signos, penetrar espantos,
longe de escrever as núpcias,
engasgo num rio de dúvidas
e pereço… só a palavra é cúmplice
do que enlouqueço.

Autor : Clarissa Macedo
Imagem :Marta Bevacqua

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Mãe


Mãe
Não consigo adormecer
Já experimentei tudo. Até contar carneirinhos
Não consigo adormecer
Nem chorar
(Que maior tragédia poderá acontecer a um homem do
que a de já não ser
capaz de chorar?)

Mãe
Sabias que o cordão umbilical pode funcionar
como uma corda num enforcamento?
— tenho aprendido coisas bem singulares neste
convívio com os deuses —
Um dia destes regressarei a Tebas para ser coroado 
Reservei hoje mesmo um lugar num avião das Linhas Aéreas Gregas
gostaria de brindar contigo com uma taça de orvalho antes de partir

Mãe
Detesto coberturas de açúcar mesmo que levem limão
Isto é tão certo como o é tu não me compreenderes 
Estava a sonhar que estava a sonhar e assim por aí adiante até ao infinito.
Depois acordei. E fui descendo vertiginosamente de sonho para sonho 
Ainda não parei de acordar. E de sonhar

Mãe
Tenho uma surpresa para ti
um caramanchão para que te possas sentar todas as
tardes a catar estrelas na minha cabeça

Mãe
Abriu um concurso para preencher uma vaga de
ascensorista no Paraíso e eu concorri
Achas que tenho alguma hipótese de ser admitido?
— tenho a boca cheia de formigas —

Mãe
um dia hei-de subir contigo
degrau
a degrau
o arco-íris

Autor : Jorge de Sousa Braga
(in Antologia Poética)
Imagem : Boyana Petkova

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Quando não sei


Há-de chegar o dia
em que a minha tristeza há-de acabar…
Tudo finda,.. renasce e recomeça…
E esta tristeza há-de ter fim!
E então minha alegria
há-de voltar!…


Só tenho medo
que, quando ela regressar
eu esteja tão cansada de viver,
que não chegue a festejar
esta ânsia enorme de vencer!,..

Sim, porque da tristeza sempre fica
um jeito desolado…
Mas não! Eu hei-de ser alegre,
e endoidecer cá dentro
toda a amargura do passado!

Mas não tardes
a realidade
do meu sonho!…
Porque há quem morra de saudade
e dor!
E eu não sei se terei vida
que chegue
se a tua demora
for mais longa, meu amor!

Autor : Judith Teixeira
Imagem : Amy Spanos

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Como se fosse o mar


Antigamente
era assim: bastava
o voo duma ave
para te arrepiar a pele. Agora
os navios cortam
a linha de água e nem
um leve sobressalto
te percorre os rins.

Autor : Albano Martins
(Do livro Escrito a vermelho, 1999)
Imagem : vaggelis fragkakis

domingo, 4 de dezembro de 2022

Em dias inóspitos

Em dias inóspitos
Gasto as recordações
Em prenúncios que expiraram
E que apenas
São fugas dentro de mim

Pequenos ápices
Ínfimos pormenores
Que ninguém refez
E eu depois de tanto tempo
Ainda continuo a dobar a meada

Custa por vezes, saber em que caos
Ou aridez se transformou este
Ou aquele dia
Quando se torna inóspito
E desaguam em mim apenas fiapos
De momentos que não regressam jamais

Autor : BeatriceM 2022-12-03
Imagem : Katarina Smuraga

sábado, 3 de dezembro de 2022

A Terceira Via

Do alto deste monte, numa manhã assim,
só há duas coisas a fazer:
chatear deus ou deixar deus em paz.

Minto.
É claro que há uma terceira via
(mas dá muito trabalho):

fingir que não o vejo nem o oiço
do alto deste monte
na luz da manhã.

Autor : A.M.Pires Cabral
Imagem :Gareth Pon


sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Minha casa




Minha casa hoje, tem janelas abertas
para o nascente, para o poente,
e,
também para a larga estrada,
aquela que conduz ao limite, pela
frente.


Minha casa solitária, Branca e alta, embora
esteja plantada em estéril campo, é toda
circundada de verde, paz e silêncio. Nova e
antiga casa, onde o Amor e a Esperança,
ainda são uma constante.

Autor - Ada Ciocci Curado
Imagem : Autor desconhecido

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

sem título

 


Dentro
de mim
os Lobos furiosos
e cinzentos
nunca triunfarão
embora
eu seja
apenas um menino
magro de olheiras fundas
e os Cordeiros
ainda dominem
o meu terreno plano.

Autor :delmar maia gonçalves
Imagem : Alex Currie

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Quimera

Eu quis um violino no telhado
e uma arara exótica no banho.
Eu quis todos os cheiros do pecado
e toda a santidade que não tenho.
Eu quis uma pintura aos pés da cama
infinita de azul e perspectiva.
Eu quis ouvir ouvir a história de Mira Burana
na hora da orgia prometida.
Eu quis uma opulência de sultana
e a miséria amarga da mendiga.
Eu quis um vinho feito de medronho
de veneno, de beijos, de suspiros.
Eu quis a morte de viver dum sonho
eu quis a sorte de morrer dum tiro.
Eu quis chorar por ti durante o sono
eu quis ao acordar fugir contigo.
Mas tudo o que é excessivo é muito pouco.
Por isso fiquei só, com o meu corpo.
Eu quis uma toalha de brocado
e um pavão real do meu tamanho.

Autor : Rosa Lobato de Faria

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Ele Teme Não Ter Amor Para o Tanto que Ama


O que te faço desta alegria com que te olho?
Perder-te seria inglório, cuidar-te parece pouco.
Que faço, o que te faço,
se ultrapasso o que me sinto,
da transfusão me transbordando,
e mais temo o fracasso
de não saber chamar o nome
ao que desamo de tanto amar?

Talvez que eu em mim já não exista...
Que vivas, provas que há vida
p'ra lá de mim;
porém não podes tu apenas ser quem sejas
e seres, resplendente,
a sombra de perdão.
O que fazer às coisas que eram antes...
Que te olho de lá de mim!

Que a alegria tomou conta das alegrias,
esboroou a crosta ao pão da noite
e deu a ver o miolo azul do dia
e um girassol de luz por entre as nuvens!
Que o pouco de mim que eu era
entornou-se e se fez grande
e a baleias quis pulmões no lento mar
p’ra respirar-se em se afundar de si...

Não sei o que me faça deste tanto que me apouca.
Que fazer? Que as montanhas são tão altas!
Como dançar com gigantes?
Que loucura de se ter!
Quando me esqueceres, por Deus, não me esqueças!
O espelho fez-me novo já tão velho...
Desliga a máquina a este sonho.
O meu coração mais puro do que eu!

Autor : Daniel Jonas
Imagem : Colin Roberts

domingo, 27 de novembro de 2022

Escureço


Escureço comigo

e sei que não verás a minha escuridão
quando digo escureço, quero dizer envelheço
e não sei se é bom ou não
escurecer sem ti,


e hoje é apenas um dia…mas, é mais um dia,
e está frio.


Autor : BeatriceMar 22-11-2015
Imagem : Zhong Lin

sábado, 26 de novembro de 2022

A Eterna Ausência

 

Eu aguardei com lágrimas e o vento
suavizando o meu instinto aberto
no fumo do cigarro ou na alegria das aves
o surgimento anónimo
no grande cais da vida
desse navio noturno
que me trazia aquela com lábios evidentes
e possuindo um perfil indubitável,
mulher com dedos religiosos
e braços espirituais...

Aquela mulher-pirâmide
com chamas pelo corpo
e gritos silenciosos nas pupilas.

Amante que não veio como a noite prometera
numa suspensa nuvem acordar
meu coração de carne e alguma cinza...

Amante que ficou não sei aonde
a castigar meus dias involúveis
ou a afogar meu sexo na caveira
deste carnal desespero!...

Autor : António Salvado,
in "A Flor e a Noite"
Imagem : Richard Davis


[António Forte Salvado (Castelo Branco, 20 de Fevereiro de 1936) é um poeta e escritor português. Além de ser autor de uma extensa obra poética, é também autor de ensaios e antologias, tendo sido a sua obra reconhecida várias vezes com prémios nacionais e internacionais.]

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Tema Livre


Há uma parte de ti
presa às linhas férreas
aos rios e seus afluentes
e às capitais de distrito.

Há ainda em ti
quem peça
uma redacção dirigida
como aquela no alternar das estações.
Escrevíamos: os dias ficam mais curtos
e do armário retiramos as roupas de lã.

Ou
vice-versando:
os dias prolongam-se
proporcionalmente aos decotes
inversamente à altura dos vestidos.

Mas agora já não atravessas armários
como em C. S. Lewis.
Neles só encontras espectros em redenção.

Cega de liberdade
esperas, apenas,
por uma bengala.

Do outro lado da rua
a sombra
de um cão.

Autor : Ana Paula Inácio
(in Piolho, revista de poesia n.º 18)
Imagem : Karyn Teno

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

...

 

Quando me perguntaste estás bom eu
desencadeou uma conversa que ainda hoje
perdura, acontece que a conversa
não adiantou nada e nunca mais
voltei a dizer que não estava bom.
decidi dizer a verdade e disse não, o que


Mesmo dizer conversa é uma maneira
de falar, uma vez que, salvo raras
excepções, imperam mais os passos
e o silêncio. Repara, eu sou uma espécie
de legenda a passar em rodapé, com pontapés
na gramática e erros de português, deito-me
tão cedo, tão cedo, tão cedo que
quando acordo não sei se é ontem
ou amanhã, ouvi alguém, ao pequeno
almoço (ou seria o jantar?), rir-se de mim
e dizer que eu era muito bem caçado.

Também um poema mau pode romper
como qualquer bela flor espontaneamente.
Tem uma vida, é uma frágil vida
com palavras que podem ser baratas
e caras, podem ser tudo e não significam
nada, um poema mau pode representar
uma vida. Mas será que tu sabes medir
o seu valor? Tu que já nem sequer
conversas comigo, apenas me vês.

A tua marcação exacta, todavia, não era
programa, actuação premeditada, militância,
mas resultado de uma indiferença activa: cola
de sobreiro que se agarra e descola, agarra
e descola, nunca se afasta de mais, nunca
se aproxima muito, nunca se agarra de vez.

Uma conversa que ainda hoje dura, só
porque te quis explicar os defeitos
de perguntas que não são bem perguntas.
Perturbei a ordem dos cumprimentos,
sinceramente desde logo percebi o que me
esperava, não consegui contrariar a fatalidade
da atracção e por isso, quase sem querer,
mal dei por mim estava moribundo.

Autor : Helder Moura Pereira,
Imagem : Oleg Oprisco

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

...

 a Daniel Faria

caminhar sobre as palavras
com os pulsos amarrados à vida,
ainda o medo, o tempo alucinado.

vem, repara na ternura
aqui sangra o silêncio da pedra
por entre os alvéolos da luz
respirando nos pulmões
de antigos afogados.

esta é a luz que nasce de ti. Do poema.
Azul, essa luz que se ergue dos mortos
e irradia em terra de ninguém.

Autor : Maria João Cantinho
Imagem :Elizabeth Gadds

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Se Perguntas Onde Fui


Se perguntas onde fui,
devo dizer: o mar.
Estive sempre ali,
mesmo estando a mudar.

Foi ali que escrevi
tua pele, teu suor.
Ao tempo, seus faróis.
Não mudei de mudar.
2
O que mudou em mim,
senão andar mudando
sem nunca mais mudar?

Quem mudará em mim,
se não sei mudar?
3

Ou me mudei. Sou outro.
Outra ventura, outra
virtude, cadência,
remota criatura.

Então que se apresente.
Seja tenaz, plausível
esse rosto invisível
e áspero.

Mudei. Soprava o mar.
Mudei de não mudar.

Autor : Carlos Nejar, in 'Árvore do Mundo'
Imagem : Griffin Lamb

domingo, 20 de novembro de 2022

Até Sempre


como se o presente estivesse em manutenção,
esta chuva que se alaga no interior de mim,
o meu corpo seco,
seco e a amparar memórias,
que descambam em sensibilidades,
e em lágrimas (secas) que nunca ninguém verá

Os olhos que se despedem,
amedrontados,
as mãos vazias, ocupadas com nada,
vazias, apenas vazias de nós.

Autor : BeatriceM 2022-11-19
Imagem :Cristina Coral

sábado, 19 de novembro de 2022

 


Venha o sol que vier, é uma promessa
O que a manhã nos traz na sua alvura.
É outra vez a vida que começa
Abertura de inocência e de frescura.

Cipreste frio a noite, a noite! Cor impura.
Triste alegria a tinta negra impressa.
Venha o sol que vier, tem mais altura.
O sonho que se veja e que meça.

Claro como a verdade _ diz o povo.
Doce como um começo, o fruto novo
Onde reluz o laivo que o pintou.

Venha o sol que vier, é um outro dia
No límpído da fantasia.
Que a nossa escuridão iluminou.

Autor : Miguel Torga
Imagem : David Tomek