sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Meu epitáfio

Morta... serei árvore
Serei tronco, serei fronde
E minhas raízes
Enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes
A pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.

Autor : Cora Coralina
In"Meu livro de cordel"
Imagem :Gina Vasquez

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Curva


Antes não nos pesava
o passado, colhíamos os dias
ainda verdes, a frescura da sua polpa
na vontade dos nossos dedos.

Depois vieram os sinais
dos primeiros cansaços sem remédio,
a noite fincou-se nas pedras,
fez-se de estorvos.

Aquilo que sobrou de ti
cabe-me nos bolsos
e é pouco para as minhas mãos.

Autor : Rui Pires Cabral
Imagem : Omar Ortiz

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A Canção Possível


Poderei ainda, amor, cantar
o exercício da insuportável ternura
sem que a vida sucumba
às cicatrizes do passado?

Por mais que digamos,
as nossas bocas morrendo uma na outra,
entre espasmos,
ainda a rosa é pálida
e os nossos dedos não passarão de mendigos
que se tocam na espuma dos dias.

Por mais que digamos,
as palavras jamais saberão o caminho
que lhes é devido,
o caminho das flores do silêncio
esse o único que salva o amor,
cravando-o na boca de Deus.

É noite, ainda, meu amor,
e a lua vem beijar-te os ombros
o teu corpo procura o lugar do meu,
como se nenhum outro coubesse dentro dele
antigo como a noite.

E os dedos serão ainda em torno da luz,
buscando a chama, o fruto,
a ferida que as tuas palavras
rasgaram no meu corpo
em volta dessa insuportável ternura.

Autor : Maria João Cantinho
Imagem : ali jardine

terça-feira, 27 de setembro de 2022

De um só trago

De todas as maneiras que a solidão
escolhe para nos derrotar
nenhuma tão lenta e cruel
como a que nos faz acreditar
de novo no amor, ao mesmo tempo
que nos retira as forças para injuriá-lo
quando as promessas se revelam vãs
e percebemos que a chama que nos alenta
é a mesma que nos extingue.

E de nada serve pelos restantes dias
mostrarmo-nos compassivos
de nós mesmos, com a certeza de que
em todas as praças há um corpo apedrejado,
em todas as casas uma janela opaca,
em todos os quartos uma boca sem voz,
em todas as palavras a lembrança de outras
mais amadas e que um dia nos pertencerão.

A dor deve ser bebida em silêncio
de um só trago, ao balcão de um bar,
depois de todos haverem já partido.

Autor : Jorge Gomes Miranda
Imagem :Fabian Perez

domingo, 25 de setembro de 2022

O livro

 Cris Ferreira

O livro foi arrumado,para ser esquecido 
na  prateleira mais alta da estante,
da biblioteca.

Inacessível, assim ficou 
olvidado à espera de ser lido,
e deslindado.

E assim ficou anos e anos,
à mercê,
das gerações que se sucederam.

Muito tempo depois,
recebi-o como herança,
e só hoje  eu o descobri.

O livro é meu,
e foi escrito por mim,
há muitos, muitos anos, atrás.

Autor : BeatriceM 2014-09-21
.

sábado, 24 de setembro de 2022

Perdi-me por amor


Perdi-me por amor,
fui aquele que procurava a casa do coração e
a luz, mas agora,
prisioneiro da bruma, junto ao altar,
penso
nas manhãs em que voava para longe,
ao lado dos irmãos.

Penso em quase todas as flores que vi nos
canteiros do céu,
penso nas mãos que estendiam as formas do
centeio e do trigo
para a minha boca.

E os meus olhos que viram os deslumbrantes
cristais do mundo
baixaram as suas pálpebras sobre a noite da
terra,
sobre os sepulcros abertos.

Não sei onde sepultarão os meus ossos,
onde soltarão ao vento as minhas cinzas.
Sei apenas que perdurarei no murmúrio dos
teus lábios
e nas pedras onde me sentei e chorei.

Pouco tempo me resta para contar aos filhos
que não tive
o fulminante desejo das viagens.
E hoje,
entre estas quatro paredes de cal mutilada,
quando chove por dentro, para sempre,
só te posso dizer adeus.

Autor : José Agostinho Baptista,
'Esta voz é quase o vento'
Imagem: adam andrearczyk (alcove)

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

nem todos os homens que


nem todos os homens que
saem de minha casa saem da minha cama
nem todos aqueles que
saem da minha cama saem de dentro de mim
nem todos os que
saem de dentro de mim chegaram sequer a lá entrar
não, nada é tão líquido assim


Autor: Bénédicte Houart
Imagem : laura zankoul

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

quando a ternura for a única regra da manhã

 


um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.


Autor José Luis Peixoto
Imagem : Maria Magdalena Oosthuizen

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Era a Terra

era a terra
ou era apenas a data das vindimas
da colheita das sombras na superfície do vinho.
as tarefas buliçosas moviam-se miúdas
dum lado a outro dos dias.

era a vida
ou era apenas uma imagem dos pássaros
irremediáveis que habitavam em nós.
setembro morno convincente memorável
setembro solto à tuna dum lento desvario.

Autor : Irene Lucília Andrade
In Ilha 3
Imagem Alexei Antonov

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Oração

Eu queria cantar para dentro de alguém,
sentar-me junto de alguém e estar aí.
Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente
e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres.
Queria ser o único na casa
a saber: a noite estava fria.
E queria escutar dentro e fora
de ti, do mundo, da floresta.
Os relógios chamam-se anunciando as horas
e vê-se o fundo o tempo.
E em baixo ainda passa um estranho
e acirra um cão desconhecido.
Depois regressa o silêncio. Os meus olhos,
muito abertos, pousaram em ti;
e prendem-te docemente e libertam-te
quando algo se move na escuridão.

Autor : Rainer Maria Rilke
Imagem Diggie Vitt

domingo, 18 de setembro de 2022

Linhas



Ainda persigo linhas que delineei
Em minha vida
Linhas que achava íntegras
Que aprovava
Admirava
Combatia
Ainda persigo certos pontos de vista
Ou apenas de feitios
Linhas homogéneas
Linhas que se tornaram tortas
Outras tortuosas
Outras apenas e só desilusão

Autor : BeatriceM 2022-09-17
Imagem : Oleg Oprisco

sábado, 17 de setembro de 2022

Exercício Espiritual



É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

Autor: Mário Cesariny
Imagem : anka zhuravleva

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Penélope

Encontrava-a aos domingos
com a teia de crochet, perto
do estádio. Ulisses regressava
a Ítaca, no fim de mais uma
jornada de águias, dragões
e outros monstros. Argos
no banco de trás, abanava a cauda
para não morrer de velho.

Autor : Inês Lourenço

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Testamento Vital


estou tão cansado de andar a ir morrendo,
à espera que o tempo saia do meu nome.

trepar paredes não é risco a que dê gasto de alma,
e não tenho caligrafia
para cancelar o endereço.

ponho uma faca entre os dentes?
masco tília?
ou desenho a primeira sílaba de uma asa?

não faço nada.
não sou capaz de trair a minha morte.

Autor : Emanuel Jorge Botelho 
Imagem David Talley

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Última Hora


Sempre tive o pressentimento
de que morreria alvejada
por uma bala perdida.

Aconteceu hoje numa cidade
onde nem sequer estava,
num tiroteio que não vi.

Autor : Marta Chaves
Imagem : Andrea Hubner

terça-feira, 13 de setembro de 2022

memória 2

devo-te o diálogo de todas as gerações
desde as pontas do silêncio às profundezas
da alma do mar. devo-te
saber de mim como a folha branca
sabe da palpitação do traço da palavra
do sangue.

e devo-te a demora com que espero
que a poesia adormeça.

Autor : Álamo Oliveira
 in " andanças de pedra e cal"

domingo, 11 de setembro de 2022

Hoje

O dia entornou-se em murmúrios
Cheio de brumas
Como as ilhas
E o céu fingiu-se de cinzentos
Desejando derramar-se em chuva

Mas esquecendo o acinzentado
É preciso pensar que amanhã
Talvez o dia se entorne em ternura
Mesmo que não esteja sol
Nem brumas

Autor : BeatriceM 2022-09-10
Imagem : amy haslehurst

sábado, 10 de setembro de 2022

Preso ao meu destino

 

E preso ao meu destino eu principio
onde um pequeno sol por entre as árvores
perscruta o chão.
Ávido enfim de azul,
meu grito vive a ponte que o abismo
há muito conquistou.
O lume é ténue,
a chama é quase ausente e quase extinta.

Autor : António Salvado
Imagem :Michelle Ellis

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

...

 


Meu amigo perdoa-me
se espantei as gazelas
para um canto do sotão
se me cresceram músculos neste olhar-te
neste cuidar que dá cuidado.

Mas do alto dos seios
no ruir das lamparinas
vale a pena olhar-te. Daqui
da mais sincera pobreza
onde permaneces apenas tu
adão e erva
e o céu manchado pelas libelinhas.

Autor : Catarina Nunes de Almeida

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O jogo que jogamos

Se me dessem para escolher, eu escolheria
Esta saúde de saber que estamos muito enfermos,
Esta dita de andar tão infelizes.

Se me dessem para escolher, eu escolheria
Esta inocência de não ser um inocente,
Esta pureza em que ando por ser impuro.

Se me dessem para escolher, eu escolheria
este amor com o qual odeio,
esta esperança que come pães desesperados.

Acontece, senhores, que aqui
aposto a minha morte

Autor : Juan Gelman
Imagem Ben Zank

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

despedida

 

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão
que está onde as outras coisas nunca estão,

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.

Autor : Cecília Meireles
Imagem : Brooke Shaden

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Mulher

 

nos momentos de incerteza
quando apetece fugir
e desistir da viagem

quando cansado de tudo
me sento à beira da estrada
e adormeço a coragem
são os teus gestos
mulher
que me chamam
para a vida

e sinto de novo a fúria
de desenhar um país
.
autor : Vieira da  Silva
imagem : Richard Davis

domingo, 4 de setembro de 2022

fragmentos

deixa ficar ... a lembrança das ternuras
mesmo que ténue
que o tempo não a leve de mim...
                                                                                                 nem de nós....

Autor: BeatriceM 2017-09-03
Imagem : Rodney Smith

sábado, 3 de setembro de 2022

Segundo Poema de Setembro


Tens quase um poema escrito
numa página
que se abre na tua vida. Versos
sem importância que te fizeram ágil
a sentir o que o mundo desde sempre te deu.

Tens quase um poema escrito
no espelho do teu sangue,
e há uma criança lenta que te atravessa a tarde.
Mas a cegueira impede que vejas de entre as sombras
o que uma luz demasiada ali escreveu para ti.

Autor : Bernardo Pinto de Almeida

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Da Resistência

 

Cantarei versos de pedras.

Não quero palavras débeis
para falar do combate.
Só peço palavras duras,
uma linguagem que queime.

Pretendo a verdade pura:
a faca que dilacere,
o tiro que nos perfure,
o raio que nos arrase.

Prefiro o punhal ou foice
às palavras arredias.
Não darei a outra face.
.
Autor : Lara Lemos

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A memória dos dias

Penso na morte
mas sei que continuarei vivo no epicentro das flores
no abdómen ensanguentado doutros-corpos-meus
na concha húmida de tua boca em cima dos números mágicos
anunciando o ciclo das águas e o estado do tempo

a memória dos dias resiste no olhar de um retrato
continuo só
e sinto o peso do sorriso que não me cabe no rosto
improviso um voo de alma sem rumo mas nada me consola

é imprevista a meteorologia das paixões
pássaros minerais afastam-se suspensos
vislumbro um corpo de chuva cintilando na areia

até que tudo se perde na sombra da noite... além
junto à salgada pele de longínquos ventos

Autor : Al Berto, Doze Moradas de Silêncio,
in, O Medo,
Imagem :Taylor Ryburn