quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Desde Sempre em Mim

Dorina Costras

Contente. Contente do instante
Da ressurreição, das insônias heróicas

Contente da assombrada canção
Que no meu peito agora se entrelaça.
Sabes? O fogo iluminou a casa.
E sobre a claridade do capim
Um expandir-se de asa, um trinado

Uma garganta aguda, vitoriosa.

Desde sempre em mim. Desde
Sempre estiveste. Nas arcadas do Tempo
Nas ermas biografias, neste adro solar
No meu mudo momento
Desde sempre, amor, redescoberto em mim.

Autor : Hilda Hilst
in 'Preludios-Intensos para os Desmemoriados do Amor'

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Quando já não há nada

Mikael Aldo

Quando já não há nada
absolutamente nada pra dizer
e cada dia te parece apenas
uma longa e inútil sequência
de vinte e quatro horas vazias

Quando uma folha de papel
é um deserto branco já sem rosto
um firmamento sem constelação
uma página nua, uma página
muda
há dois rápidos olhos que te falam
desde sempre da terra prometida

Consegues fixá-los Não tens medo?
Vê como arde súbito o seu gelo
no fundo das pupilas
e não hesites – rouba essa vertigem
ao coração da noite
porque às vezes não há outra saída
para algumas palavras que ainda podem
ser um arco uma flecha
perto do alvo que ninguém conhece

Autor : Fernando Pinto do Amaral

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Na noite

Mikael Aldo

Na noite existem estrelas mágicas
Que me levam a alumiar o caminho
Entre o céu e o destino

Em archotes de luz ávida
E esplendorosa
Semeio pirilampos

E percorro mansamente
Os trilhos proibidos que me levam a ti
.
Autor :BeatriceM 2012-02-12

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Podes Ter os Amores que Quiseres...

barry ross smith

Podes dizer que me não amas,
sim, podes dizê-lo,
e o mundo acreditar,
porque só eu saberei
que mentes!

Eu estou na tua alma
como a flama
que devora sob a cinza
as brasas dormentes...

Não creias no remorso
- o remorso não existe!
O que tu sentes
e o que em ti subsiste,
são o rubor da minha ternura
e a chama do meu amor
que em ti
nunca foram ausentes!...

Não julgues, não, que me esqueceste,
porque mentes a ti mesmo
se o disseres…
Podes ter os amores que quiseres,
que o teu amor por mim,
como uma dor latente e compungida,
há-de acompanhar sempre
a tua e a minha vida!

Autor : Judith Teixeira
in 'Fevereiro - Sol Posto'

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

É o poema de quem rasga os versos

Katharina Jung

É o poema de quem rasga os versos
porque os sentiu demais para os dizer
e os ouve nas ondas tão dispersos
como os sonhos que teve e viu morrer

Autor : António Patrício

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Existe a noite

Francesca Woodman

Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Esse da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.

autor : Hilda Hilst
in 'Do Desejo'

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Perfilados de medo

Dorina Costras

Perfilados de medo,agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos,do que não seremos.

Perfilados de medo,sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos,os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Autor :  Alexandre O'Neill

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Quadras da minha Solidão

Victor Bauer

Fica longe o sol que vi,
aquecer meu corpo outrora...
Como é breve o sol daqui!
E como é longa esta hora...

Donde estou vejo partir
quem parte certo e feliz.
Só eu fico. E sonho ir,
rumo ao sol do meu país...

Por isso as asas dormentes,
suspiram por outro céu.
Mas ai delas! tão doentes,
não podem voar mais eu...

que comigo, preso a mim,
tudo quanto sei de cor...
Chamem-lhe nomes sem fim,
por todos responde a dor.

Mas dor de quê? dor de quem,
se nada tenho a sofrer?...
Saudade?...Amor?...Sei lá bem!
É qualquer coisa a morrer...

E assim, no pulso dos dias,
sinto chegar outro Outono...
passam as horas esguias,
levando o meu abandono...

Autor : Alda Lara

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

My Funny Valentine

Fabian Perez

Cheguei a casa há pouco e amanhã
celebrarei contigo pla primeira vez
esse dia que alguém convencionou
ser para os namorados: eu e tu,
dois seres quase sonâmbulos,
afogados em histórias mal cicatrizadas
que extravasam ao longo de conversas
plas estradas nocturnas por onde fugimos
da vida que nos dói: velhos amores
refulgindo na tua memória,
na minha fantasia que os volta a viver
em ti, por ti, como se também eu
ressentisse na pele o sabor desses beijos
esvaindo-se no tempo, que lhes toca
ao d eleve, com lábios de veludo,
e os arrasta num caudal de espectros,
de vagas silhuetas, na penumbra
que foi a minha vida até chegar a ti.

Autor : Fernando Pinto do Amaral

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Gostava

Katharina Jung

Gostava de lavar em mim todas,
as agruras que se preservam ainda,
nítidas e expectantes,
gostava de apagar com água fresca,
as  contusões que o destino fomentou,
e poder voar mesmo que seja exclusivamente,
no pensamento.
 .
Autor : BeatriceM 2014-02-09 (reeditado)

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Gumes de Névoa

DUYGU SIZINTILARI - Pavel Guzenko

Lágrimas?

Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?

Autor : José Craveirinha

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

A vida num sonho



Victor Bauer

Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
a saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

Autor : Rosa Lobato Faria

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Exorcismo

Sabine Liebchen

Levanta-te, não chores.
Tens de saber que às vezes é difícil
matar o que nos mata,
ir aguçando o gume do cutelo
e movê-lo depois, logo em relâmpago,
até que o monstro seja degolado
e não fique sequer uma gota de sangue,
da cicuta voraz que lhe corria
pelas veias tão geladas, sob a pele
que terias beijado quase a medo
em busca de um sabor que fosse o fogo
e o ar e a água,
mas era só veneno adocicado,
daquele que vicia sem parecer viciar
e nos deixa sem cura a vida inteira.

Levanta-te, bem sabes,
desde o tempo dos contos infantis,
que todo o mal procura disfarçar-se
em rostos como aquele,
na perfeição volátil desse abismo
a que chamam beleza e vai ardendo
em lânguidos sorrisos e olhares
feitos de pura seda, seduzindo
espíritos como o teu,
demasiado inocentes ou perversos
para desconfiar da eternidade
ou para resistir à luz fosforescente
que, obedecendo às leis da natureza,
sempre soube atrair até à morte
o alucinado voo das borboletas.

Levanta-te, vá lá, não tenhas medo
de apertar o gatilho as vezes necessárias
para que tudo morra - os estertores
da tua alma ou do teu corpo
mesmo assim doem menos, acredita,
que o travo torvo dos piores remorsos.
E se vires que é preciso
rasgar dentro de ti, antes de serem escritos,
os mil e um poemas
que haverias de ler, talvez sem esforço,
à flor daquela face, não hesites,
porque a felicidade tem um preço
e os versos, quaisquer versos, são apenas
a memória infiel deste vento que move
as árvores lá fora enquanto é noite,
mas que às primeiras horas da manhã
deixará elevar-se um nevoeiro
tão espesso e esbranquiçado, que o amor
será nesse momento uma palavra baça
que nada te dirá, a ti ou a ninguém

Autor : Fernando Pinto do Amaral

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Auto Retrato

damian drewniak

Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;

E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato.

Autor : Ana Hatherly

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Fonte

Ashraful Arefin

Meu amor diz-me o teu nome
— Nome que desaprendi...
Diz-me apenas o teu nome.
Nada mais quero de ti.
Diz-me apenas se em teus olhos
Minhas lágrimas não vi,
Se era noite nos teus olhos,
Só por que passei por ti!
Depois, calaram-se os versos
— Versos que desaprendi...
E nasceram outros versos
Que me afastaram de ti.
Meu amor, diz-me o teu nome.
Alumia o meu ouvido.
Diz-me apenas o teu nome,
Antes que eu rasgue estes versos,
Como quem rasga um vestido!

Autor : Pedro Homem de Mello
in "Grande, Grande Era a Cidade..."

domingo, 4 de fevereiro de 2018

apenas um poema no olhar

anna o.photograf

desejava escrever um poema,
não um poema escrito com palavras,
apenas um poema, onde no olhar
tu soubesses que era,
para ti.
.
Autor : BeatriceMar 2014-02-02 (reeditado)

sábado, 3 de fevereiro de 2018

palavras que não sei

diggie vitt

as palavras que já rasguei
foram tantas que não sei
se algum dia um poema eu serei.

Autor : LuísMCastanheira
https://nagavea.blogspot.pt/

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

12

Barbara Cole

até pode ser que nem gostes muito destas palavras
nem de mim  agora que os meus gestos
são tão diferentes
agora que recordas tanta coisa que eu esqueci
e ainda bem ninguém pode viver
com o peso do que ficou para trás
agora que os livros as canções as laranjeiras
ficaram para sempre naquele cenário de primavera
que fazia de nós todos o garantiam
presas tão fáceis

pressinto que hás-de culpar-me sempre
pelos anos que perdemos por becos ruas avenidas
esquecendo à toa aquilo
que só um ao outro deveríamos ter ensinado

talvez até tenhas razão mas eu chegara
àquele lugar da vida onde só se pode
amar para sempre e sem remédio
e de um dia para o outro a minha boca

desaprendeu disciplinadamente o sabor da tua
e os teus passos   a tua voz   o céu de paris
a janela sobre os telhados   os domingos de sol
atravessaram as mais arrastadas fronteiras
e estabeleceram os seus limites do lado de lá
de todas as madrugadas que eram nossas

houve mesmo um tempo desculpa em que esqueci
as cartas os cigarros as fugas os recados
as canções as camélias o jardim
onde me esperavas às nove da manhã
a velha que nos olhava abanando a cabeça
entre estátuas decepadas e gatos vadios

talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras

tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra

talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti

Autor : Alice Vieira
In Dois corpos tombando na água

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Troco-me por ti

ira zhuyka dzhul

Troco-me por ti 
Na brasa da fogueira mal ardida
renovo o fogo que perdi,
acendo, ascendo, ao lume, ao leme, à vida.

E só trocado, parece, por não ser
na verdade conjugo o velho verbo
e sou, remido esquartejado,
o retrato perfeito em que exacerbo
os passos recolhidos pelo tempo andado.

Autor : Pedro Tamen
in “Rua de Nenhures”