domingo, 30 de outubro de 2022

Segredos

 

Ontem falaram-me
de segredos
meus
eram segredos que só o vento sabia
fiquei perplexa e sem feedback.

Já não posso confiar em ninguém
nem sequer no vento.

Autor : BeatriceM 29-10-2022
Imagem : Clare Elsaesser

sábado, 29 de outubro de 2022

Poesia

Se outras preferiam os tecidos de seda
do desejo
ela dava-se à ganga coçada
do amor
depois de noites mal dormidas.

Derivava pelas ruas perdidas
de uma cidade de luzes aquosas
opostas ao comércio
livre jogando a não ser vista
senão nos inquietantes interlúdios
das árvores.

Pautávamos os nosso sonhos
pelos seus inaudíveis passos,
toques insistentes à porta
a desoras e sem avisar.

Nunca fomos tão felizes
como quando arrancados
literalmente da cama
a seguíamos pelas alamedas
até a um mar sem dano.

Porque de praias e luz
era feito o nosso corpo,
essa espécie de fome.

Autor : Jorge Gomes Miranda
Imagem : Natalie Karpushenko

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Vinha dizer adeus

Vinha dizer adeus, mas reparei
Que na faia do pátio era Setembro
Vinha dizer adeus, mas encontrei
Um livro na cadeira do alpendre

Vinha dizer adeus, mas as maçãs
Estavam no forno a assar e esse cheiro
Fez-me parar na porta das manhãs
A relembrar o nosso amor inteiro

Vinha dizer adeus, mas o teu cão
Veio lamber-me os dedos hesitantes
Vinha dizer adeus, mas vi no chão
A manta, ao pé do lume, como dantes

Vinha dizer adeus, mas senti fome
Ao ver a mesa posta para dois
Dálias e o guardanapo com o meu nome
Sem ter havido antes nem depois

Vinha dizer adeus, mas que surpresa
Apassionata… o último andamento
Como se tu tivesses a certeza
Que eu ia chegar nesse momento

Vinha dizer adeus, mas nesse olhar
Vi tanta solidão, tantos abraços
Tantas amendoeiras ao luar
Que me escondi, chorando nos teus braços

Vinha dizer que já não estou contigo
Que este amor singular já não é nosso
Vinha dizer adeus, mas já não digo
Vinha dizer adeus, mas já não posso!

Autor : Rosa Lobato Faria.
Imagem :Duong Quoc Dinh

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Dia de Aguaceiros


Dia de aguaceiros. Sei que os jardins
não são os de Academos. Mas vou pelos passeios
entre a escrita das chuvadas no saibro e a discreta
disposição do Logos na murta dos canteiros.

Dia de amentilhos, gravetos, muros verdes:
as alamedas param e os cedros repousam
a terra tão porosa que facilmente encanta
- e eu cedo e levo ao chão a mão inteira, a medo.

Retiro-a manchada por um líquen de areia.
Aprendo por contacto que o Verbo nos irmana
baixando intelecções a corpos indefesos.
E um século à volta abre guarda-chuvas negros.

Autor : Carlos Poças Falcão
Imagem :Paolo Barzman

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

portanto ...

portanto por vezes os afogados
voltam à tona de água
pois desejam de novo atirar-se
ainda não esgotaram o desespero
ainda não esperam completamente
ainda temem que nada chegue
não sabem ainda que já ninguém virá
que mesmo o mergulho foi em vão
que tudo a água lava, só a vida não

autor : Bénédicte Houart
Imagem : Katarina Smuraga

terça-feira, 25 de outubro de 2022

o mar em chamas


todos os livros que leio me falam da tua morte
mas não se pode acreditar em tudo o que se lê
e sabendo embora que a tristeza não existe
não posso deixar de me sentar com a cara apoiada numa das mãos

a vida é uma doença de que alguns se curaram
passo os dias sentado num café à distância
e entre mim e mim existe já uma intimidade insuportável
(como dar de novo ouvidos aos meus mestres de outrora?)

fui dos que julgaram ter nascido para tornar grande o mundo
mas atrasei-me de propósito num quarto cheio de homens
– procuro perceber que tempo é que me cabe –

uma noite fui visto a lançar fogo ao mar

Autor : Bernardo Pinto de Almeida

domingo, 23 de outubro de 2022

às vezes

Ás vezes
Gosto de esculpir
Não em gesso
Nem em pedra
Apenas lavrar palavras
Que vou largando por aí.

Autor : BeatriceM 22-10-2022
Imagem : Amélie Berton

sábado, 22 de outubro de 2022

Fragmento do Livro da Sabedoria

A tua seta atirada ao alvo
fende o céu
e este logo se une

Poeira levada pelo vento
espuma dispersa pela tempestade
lembrança do viajante
que se demora apenas um dia
tudo é sombra que passa

Autor :  José Tolentino Mendonça
Imagem : eric rubens

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Anjos ....

Anjos amortalhados nas vértebras da noite
abrigados no enigmático sorriso
com que me afrontam. Esse um exercício
de exactidão numérica, rasando
o fogo na navalha da escuridão.

Anjos amortalhados no véu das asas
de olhos vazios, aves escuras desorbitadas,
pendurados como casacos amarrotados
nas luminosas entranhas de um animal.

Anjos amortalhados no redobrar do vazio
onde o tempo se enrola sobre si próprio
e se fecha numa pedra ou estrela coagulada.

Ouve. Toca a finados, o tempo todo
é por ti ainda, este requiem
sem que o reconheças, no inumerável
reflexo dos espelhos. Anjos espreitam-te.

E é onde não estou que se ergue, intangível
o canto puro, a voz que te enlaça
e te arrasta nas coxas da luxúria.


Autor :  Maria João Cantinho
Imagem :Alexander Vakovlev

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

onde estás agora

Onde estás agora
Oh meu amigo?
Nem dentro
Nem fora

Nem muito longe
Nem muito perto
Talvez nos primeiros

Raios da aurora
Talvez no deserto
No mais incerto
E improvável
Lugar

Onde estás agora
Oh meu amigo
Que não te oiço?
Talvez no fim
Da estrada
Envolto em poeira
Numa cadeira
De baloiço
Em frente ao grande
Tudo
Ou ao grande
Nada
.
Autor : Jorge Sousa Braga

(poema inédito dedicado a Manuel António Pina escrito e lido por Jorge Sousa Braga.)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Se escrevesse o que sente a minha alma


Se escrevesse o que sente a minha alma
Escreveria certamente um livro extenso
Um livro aberto de vogais em suspenso
Com virgulas e pontos finais em calma

Se eu escrevesse a minha vontade de ler
Tal como é a minha vontade de vaguear
Seria, talvez, a aventura do verbo amar
Mesmo que tivesse, de alguém, descrever

Mesmo que fosse em folhas amareladas
Importava, era, o verdadeiro sentimento
Que transportasse a escrita do momento
Numa tarde de outono, letras timbradas

Escreveria o livro da minha vida, talvez
As coisas que amaciassem o meu coração
E são tantas, as vezes, que sinto emoção
Por extensas lembranças, também altivez.

Autor : Cidália Ferreira
https://coisasdeumavida172.blogspot.com/

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Fica

 






























Fica ao menos o tempo de um cigarro, evita
comigo que este tempo ande. Lá fora
são as casas, vive gente à luz de um candeeiro,
o som que nos chega apagado pela distância
só denuncia o nosso silêncio interrompido.
Ajuda-me, faremos o inventário das coisas
menos úteis, mágoas na mágoa maior do tempo.
Fica, não te aproximes, nenhum dia
é menos sombrio, quando anoitecer vamos ver
as árvores cercando a casa.

Autor : Helder Moura Pereira
In Entre o Deserto e a Vertigem

domingo, 16 de outubro de 2022

Curvas


Caminho entre precipícios
Que me levam ao fundo dos abismos
Mas o medo não me deixa
Que os fantasmas que me perseguem
Consigam desviar-me do caminho certo
Simulo que vou
Mas fico na curva
A ver … só a ver e a imaginar
Perigos que não correrei.

Autor : BeatriceM 15-10-2022
Imagem : Karyn Teno

sábado, 15 de outubro de 2022

Saudade do Teu Corpo


Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?...

Anda a saudade do teu corpo (sentes?...)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que não mentes
quando me escreves: «vem, meu todo amado...»

É o teu corpo em sombra esta saudade...
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar é escuridade...

Fecho os olhos ao sol para estar contigo.
É de noite este corpo que me assombra...
Vês?! A saudade é um escultor antigo!

Autor : António Patrício, in 'Antologia Poética'
imagem : mary parker

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

bardo

tal qual um menino

procura brinquedos
lá vai o poeta
a tinta as letras

tal qual passarinho
no uso das asas
lá vai o poeta
o voo as palavras

tal qual a canoa
por cima do rio
lá vai o poeta
o remo a rima

tal qual marinheiro
no rumo do mar
lá vai o poeta
a bússola a poesia

tal qual lavra_dor
na lida da terra
lá vai o poeta
:
lavai o sangue

Autor : Líria Porto
Imagem : david freske

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Silêncio



Uma noite,
quando o mundo já era muito triste,
veio um pássaro da chuva e entrou no 
teu peito,
e aí, como um queixume,
ouviu-se essa voz de dor que já era a tua
voz,
como um metal fino,
uma lâmina no coração dos pássaros.

Agora,
nem o vento move as cortinas desta casa.
O silêncio é como uma pedra imensa,
encostada à garganta.
.
Autor : José Agostinho Baptista

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Mulher de Arame

A não-mulher, antes de chegar a manhã, vai amassar o pão nasgamelas do contrato, com a barriga a parir anilhas e parafusos, em
ritmo acelerado e com os tímpanos a libertarem leitescondensados e açucarados, antes que chegue o sol, porque o sol
pode abrir as janelas.

No dia seguinte, são as espumas encarquilhadas, a passar debaixodos pés, sobre os mosaicos dos pátios com desenhos de rotação etranslação, que convergem para a extremidade da belezainvoluntária, mais o perfume do sabão, aberto, no pântano dasestátuas de arame.

Por isso, não me parece que esta mulher seja realmente mulher,mas antes asa peneireira das torres e, só, durante um instanteantes da morte (o tempo que dura a maquilhagem).Anseia que passe o inverno, por causa da inquietação que é secar aroupa no varal. E vai correndo sempre, enganada pelo horóscopo,

quase em estanho, nunca mulher.É o saiote, o toque do adufe, a menstruação, o pelourinho, a

grinalda, o fermento.

Sem orgasmos, sem lágrimas, sem pérolas, sem nunca ser quase

estátua.

É uma silhueta atrás do avental, que se assume ao sonho daevasão.

Extenua num idílio que é insustentável.

A pastora do imenso.

Morre todos os dias, na escuridão do jardim.

.

 autor : Alice Caetano, in Antologia da Moderna Poética Portuguesa
Imagem : Mikeila Borgia

 

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Quando eu partir

Quando eu partir, quando eu partir de novo
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir...
Como se um outro ser nascesse
De uma crisália prestes a morrer sobre um muro estéril,
E sem que o milagre se abrisse
As janelas da vida...
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
E eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levará para sempre.
Mas ali
Hei de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente...
Para sempre.

Autor : Ruy Cinatti
Imagem : Erwan Atwood

domingo, 9 de outubro de 2022

Fui . . .


Fui ao aeroporto,
e sem que me presenciasses,
permaneci ao longe a observar-te,
a subir as escadas rolantes,
até te perder da minha óptica de visualização..

Deixas-te algo de ti,
levaste muito de mim.

Autor : BeatriceM 08-10-2022

sábado, 8 de outubro de 2022

epitáfio

 Um pássaro vivia em mim.
Uma flor viajava em meu sangue.
Meu coração era um violino.

Quis ou não quis. Mas às vezes
me quiseram. Também me
alegravam: a primavera,
as mãos juntas, o feliz.

Digo que o homem deve sê-lo!

Aqui jaz um pássaro.
Uma flor.
Um violino.

Autor : Juan Gelman

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Cortina


Peço-te que feches
a cortina
e à sua sombra já estremeço nua.

Vens-me cobrir o frio
com o teu calor
e à nossa roda já tudo flutua.

Autor : Maria Teresa Horta

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Desilusão

 

não
não te vi

a noite não teve lua
( para quê ? )

andei sem ti
caía chuva na rua.

Autor : Vieira da Silva
Imagem : Gennadi Blckin

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

---.

o vento
uiva
em meu medo
a cortina
deixa nua
a janela
as paredes
se fecham
sobre mim
numa noite
que parece,
não vai ter fim..
sinto o corpo
tão nu
como minha alma
a vida
tão fria quanto a morte
a espera
tão sozinha
como a sorte
a lágrima
tão inútil
como ser forte..

Autor : joanna.franko
Imagem : Ron Di Scenza

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Na palma da tua mão

 


e na palma da tua mão
busco ternura
sem contar meses,
anos,dias,
sem saber dizer
se já te chorei
por inteiro
o suficiente
para não voltar
a perder-te

Autor : Vasco Gato
Imagem : David Talley

domingo, 2 de outubro de 2022

Procuro . . .

 

Procuro o racional para algumas coisas,
que não compreendo,
ou não quero perceber.

Procuro a paz no silêncio do dia,
quando o horizonte me fala,
sobre o racional de algumas coisas.

Que eu entendo,
e ouso entender,
mesmo que por vezes seja irracional.

Autor : BeatriceM 01-10-2022
Imagem : 

sábado, 1 de outubro de 2022

Todas as ruas


Todas as ruas me falam de ti. A minha saudade é urbanismo e geografia. Por vezes, sem vezes desço a cidade até ao cais mais antigo, fito o mar no promontório do farol e digo coisas que não escrevo. Virando para a marginal, cumprimento as estátuas e os barcos e as árvores e vejo o rio a correr, a saltar de brilhos e de espelhos. Ao atravessar a ponte a sombra de ferro fica-me tatuada nos ombros. Vento gelado, gaivotas evanescentes, nuvens copiosas. Todas as ruas me falam de ti. Tapo os ouvidos a esse rumor insistente, não é nada comigo. Por vezes, cem vezes subo a cidade pelas escadas mais altas até à praça do entardecer. Teatros, luzes, cafés pomposos, candeeiros frágeis. Exausto me examino e detenho. A luz fala de ti, cinzenta e fria como o mar que a dissolve.

Autor :Bernardino Guimarães