quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Cronica do pescador da marginal

Que história é essa de quereres ser feliz comigo, ninguém é feliz comigo, sou um chato. Não gosto de conviver, não gosto de sair, não gosto de cinema, não gosto de praia, nem sequer gosto de jantar fora, gosto de estar no meu canto e que não falem comigo. Que raio de felicidade te podia dar? Ficares num canto também, a aborreceres-te? Além disso não reparo nas datas: nos teus anos, nos meus, no dia em que nos conhecemos e portanto não ofereço flores, não dou beijinhos, não abraço, não comemoro, não te deixo de lágrima no olho, comovida, a pôr rosas nas jarras. Gosto de pescar. À sexta-feira à noite saio com a tralha para a marginal e fico ali até de madrugada. E ao sábado. E ao domingo. Não dou pelos faróis dos carros. Não dou pelo cheiro do rio. Acho que não dou pelos peixes. Calculando bem talvez nem goste de pescar: gosto de me sentar na muralha e ver as luzes de Almada reflectidas na água preta, a tremerem. Isto sem pensar em nada. Apenas sentado na muralha a ver as luzes de Almada a tremerem. Como podiam interessar-te as luzes de Almada a tremerem? Fazem-me lembrar olhos exactamente no instante das lágrimas, que vacilam. Se calhar as luzes interessam-me porque nunca choro. E não percebo que história é essa de quereres ser feliz comigo. Trabalhamos no mesmo sítio. Vês-me todos os dias. Almoçamos com os colegas na cantina. Quase nunca falo. Digo:-Pois éde vez em quando para que não julguem que sou mal-criado. O jantar é em casa com o meu pai. O meu pai também quase nunca fala: se o silêncio se prolonga demasiado tempo dizemos:-Pois éum ao outro e continuamos a descascar a fruta. O meu pai não tira o cachimbo mesmo quando mastiga: mete a comida pelo outro canto da boca, soltando argolinhas de tabaco. Se por acaso faleceu aposto que não conseguem arrancar aquela coisa do queixo. Disse-lhe:-Não há quem feche a urna com você assimele achou que um buraquito na tampa, ao pé do crucifixo, resolvia a questão, e de tempos a tempos uma argolinha de tabaco subiria da lápide. Só tenho que lhe deixar dois ou três pacotes nos bolsos para quando o fornilho não tiver mais que cinza dentro. De qualquer maneira, na data em que isso acontecer o reflexo das luzes de Almada vai tremer na água.
Para ser sincero acho que é por causa do reflexo que não quero ser feliz contigo. Imagina, se tu te fores embora, eu sentado na muralha com os olhos exactamente no instante das lágrimas, a vacilarem: mil vezes estar num canto e que não falem comigo, mil vezes o cachimbo do meu pai
-Pois é
e eu
-Pois é
de volta. Há coisas que a partir de uma certa idade a gente não aguenta e fiz quarenta e três anos em Março. Quarenta e três, mesmo que a gente o negue, é uma porção deles. Foi-se a minha mãe, foi-se a minha tia do lado da minha mãe que morava connosco, o meu irmão na semana seguinte à esposa deixá-lo, abraçou-se a um comboio em Algés: sobrou um sapato, um bocadinho de calça, a camisola com sangue a vinte metros da linha, uma das hastes dos óculos. (Era míope, esbarrava na mobília sem querer.) Ter-se-á abraçado de propósito ao comboio? Durante semanas, depois disso, o cachimbo do meu pai mais rápido e nenhum de nós
-Pois é
a descascarmos a fruta mudos, com a maldita da faca a falhar, a falhar. Demorou a conseguir cortar o pêssego de novo. Temos a haste dos óculos na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas, que serviam ignoro em que portas. Talvez que se pudesse abrir o
-Pois é
com elas e dentro
-Pois é
o meu irmão a sair para o comboio explicando
-Já venho
e veio em pedaços (alguns pedaços) como um modeo de armar a que faltavam metade das peças, á medida que o cachimbo ia soltando argolinhas. Foi o único momento em que me apeteceu fumar. A minha cunhada refez a vida, desapareceu. Mora em Espanha, contaram-me, com um caixa de banco. Ao regressar da pesca não trago peixe na cesta, deito-o de regresso ao Tejo. Isto antes da manhã, minutos antes da manhã, no receio que as luzes de Almada se apaguem. Não me abraço ao comboio para Lisboa, venho dentro dele com a tralha ao meu lado. Nem um cão na rua excepto um desses cachorros vadios que se não interessam por mim, de focinho rente ao passeio, a murmurar. Percebo que o meu pai se volta na cama. Que a torneira de um primeiro vizinho principia a verter, o que acorda mais cedo para correr no parque numa expressão á beira do enfarte ou do orgasmo. Ao ver-me no espelho a minha expressão muda num estalinho como os números dos relógios digitais onde sou um monte de zeros. Não acredito que tu feliz com um monte de zeros, a aborreceres-te num canto também. Se me perguntares se gosto de ti digo que sim. Ou seja diria que sim no caso de a haste dos óculos não estar na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas. Mas está. Portanto o mais que posso é declarar
-Pois é
e pensar noutra coisa. Tenho pena. Palavra de honra que tenho imensa pena e a faca volta a falhar o pêssego, desajeitada. Apetece-me, calcula, oferecer-te flores. Não ofereço. Abraçar-te. Não abraço. Reparar nas datas. Não reparo. Fico para aqui de mãos nos joelhos. E, como não gosto de sair, se me convidares para o teu casamento desculpa mas não vou. Contribuo para a prenda dos colegas de trabalho
-Falta você, ó Guedes
e fico reflectido no tampo de água preta da secretária, a tremer.

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Autor:António Lobo Antunes, Crónica, "Visão", 26/10/06, pag. 21

Foto:António Viegas

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