terça-feira, 31 de agosto de 2010

como a água

como a água
meu amor
também as asas nos sacodem
no final do beijo

quantas páginas faltam?

se a fronteira é das águas quem reprime a espuma
onde começa a praia?

no meu espelho o que via
era um homem de rosto voltado
de rosto voltado
para sempre
e uma linha de ombros onde as águas
e os teus lábios de espuma meu amor
me embaciavam

também ouvi chamar a isso
entardecer
idade
inclinação do sol

mas também cicatrizes ou sulcos como preferires
essa teia onde os dias marcam os seus signos
como as águas no solo meu amor
até furarem

Autor :Carlos Nogueira Fino (Inquietação da Água, 1998)
Foto:Marta Szelewa http://plfoto.com/zdjecie,portret,bez-tytulu,2102003.html

sábado, 28 de agosto de 2010

rasgos sem rima

chegas num gesto abraçado
trazes nas Mãos o pó aceso das estrelas
e o brilho do negrume precipitado
dum outro Mar...

a luz eleva-se no culminar do entardecer
tocas as Margens na abrangência dos teus braços,
demoves o Manto bordado a pérolas negras
onde um dia me perdi

a luz regressa na transparência da noite,
como uma confissão silenciada...

Autor:Cristina Fernandes http://omomentocerto.blogspot.com/
Foto: EdekLeszczyk

sexta-feira, 27 de agosto de 2010


Bem sabes que não sou capaz
de dizer adeus
porque o amor tem sempre
a impossibilidade
da despedida
por não haver nele
nenhuma forma de morrer
como a luz do crepúsculo
que quando aqui se apaga
é para fazer dia noutro lugar.

E por isso não julgues
que tenha perdido
o norte
nesta estátua de mármore
em que me transformaste
ao sul
dos teus olhos.
Como uma ostra no fundo do mar
vou depositando esta pérola no coração
para te deixar.
.
Autor : José Miguel de Oliveira http://deliriospoeticos.blogspot.com/
Foto: mooya http://plfoto.com/zdjecie,portret,sunday-morning,2097044.html

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

esperar dói

em azul mais azul que azul

em branco mais que branco

preso a um fio de bruma

esperar dói

na agonia pendular

que o vento torna mais nua

esperar dói

mãos feitas de bruma

dedos mágicos

tocam-se no colar das bocas

esperar dói

soltem-se os lábios dos rostos

para se beijarem em liberdade


Autor : antónio paiva http://coisas-do-burro.blogspot.com

Foto:F_W_B http://plfoto.com/zdjecie,portret,bez-tytulu,2162970.html

domingo, 22 de agosto de 2010

......



É sobre o rio que me vejo inteira e nua
debruçada sobre as pedras a lavar lençóis de mágoa
memórias desbotadas de gritos sem sentido
restos de sonhos que o tempo amarrotou.
É do rio que me vem com as marés
o cheiro a mar aberto a vento e chuva fria
que um dia me revolveu e encharcou
as asas com que já não sei voar como sabia.
É no rio que desaguo a raiva de ter sido
a ponte entre margens que não quis perder
perdulária do tempo da certeza
e me encontro de novo e nova em mim.
.
Autor:Ana Oliveira http://pacodasartes.blogspot.com/
Foto:Olga Czerwinka

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

É esta noite



Esta noite há talvez luar, cometas
e gafanhotos de asas de prata
preenchendo todo o céu.
Esta noite,
provaremos desse fruto
estranho às aves,
apenas consentido
à mordedura dos poetas,
no ardor de um qualquer Maio.
Esta noite,
todos os relógios
do mundo serão nossos:
esta noite provaremos do amor.

Autor :João de Mancelos
Entre Ausência e Esquecimento , Aveiro, Estante Editora, 1991.

domingo, 15 de agosto de 2010

As palavras são coisas # 2

Se a tua boca as diz

se no teu rosto as vejo

as palavras são coisas

quando as fere o desejo


e quando dizes mar

e quando dizes norte

não sei se não me acerco

de um bocado de morte


e quando dizes barco

ou quando dizes esfera

há águas que transbordam

e inundam a terra


as palavras são coisas

as palavras são um perigo

se acaso as pronuncias

quando não estás comigo


e quando tu adormeces

muda num sonho fundo

tudo se desvanece

e deixa de haver mundo.


Autor:Bernardo Pinto de Almeida

Foto:M-ania K

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Infinito Amor


Depois
Os homens e os pássaros vinham
Descansar em meu regaço
Maternal e transbordante

Depois de nós, amado, tudo acresce
Tudo refloresce
Do ventre da terra
Ainda
Se sou, intrínseca, um ser melhor …

Autor :Boneca de Trapos http://emsaltosaltos.blogspot.com/
Foto:dawidowe http://plfoto.com/182015/autor.html

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Ausentes para amor incerto



Já nem sabíamos quem fingir,
meu amor.
Foram raros os barcos nos lábios,
e demasiadas as laranjas
que a manhã descobriu
por afagar.

Já não somos a glória
de um corpo à deriva noutro corpo,
as nossas mãos já não florescem
nos cantos de cada noite.

Abelhas mordidas de morte,
cães de olhar deserto,
à chuva, à pedra, ao riso,
todos somos
Ausentes para Amor Incerto.

Autor :João de Mancelos In Ausentes para Amor Incerto , Aveiro, Ed. de autor, 1994.
Foto:Szarareneta

sábado, 24 de julho de 2010

Tudo o que ficou por dizer



Tudo o que ficou por dizer
porque de repente
era a hora do combóio
ou um telefone longínquo tocava
ou um qualquer acidente aconteceu.

Tudo o que ficou por dizer
porque o pudor calou a voz
porque um orgulho surdo a interrompeu
porque as palavras talvez já nem chegassem
ou era tarde
e o cansaço aos poucos foi levando a melhor.

Tudo o que ficou por dizer
porque a dor doía em demasia
e era necessário que as palavras
fossem capazes de ser claras como o ar
porque as palavras traem
como gumes de facas que nos cortam.

Tudo o que ficou por dizer
porque a tristeza apertou tanto a garganta
que nenhum som saía
nem o olhar continha
em desespero
uma lágrima ainda assim contida.

Tudo o que ficou por dizer
porque o tempo urgente
se esvaía
e de repente já não estava
no lugar a quem havia que o dizer
quem ainda há pouco nos ouvia.

Tudo o que ficou por dizer
e tudo
o que ficou por dizer
ou tudo
sempre
por dizer.
.
Autor: Bernardo Pinto de Almeida
Foto:Komarek66

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Esta manhã encontrei o teu nome



Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Autor:Maria do Rosário Pedreira
Foto:Marasm

domingo, 18 de julho de 2010

Esta noite

esta noite
senti o mar incendiar-se
nas tuas mãos

arderam os olhos
nas tuas mão inteiras
enormes

esta noite no teu peito
inventei estrelas
que não conhecia
.

Autor:Luis Rodrigues
Foto:fotoalterego http://plfoto.com/zdjecie,akt,bez-tytulu,2140002.html

sábado, 10 de julho de 2010

A mulher desconhecida



é muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
o doce amor
.
Autor:José Tolentino Mendonça
(in "A noite abre meus olhos/poesia reunida, Assírio & A
Foto:holethrom

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Queria.....



Queria dizer-te que já abandonei os barcos. Queria que soubesses. Queria dizer-te que agora já não existem motivos para que partas, já não te troco pelo mar e os barcos são só memória. Mas é a tua que se sobrepõe a todas as outras memórias mesmo sendo a água a primeira memória da humanidade.

Só queria que soubesses isso. Que abandonei os barcos

Agora para matar o tempo, para que saibas também, passeio pela beira-mar na praia que foi a nossa no cabo do mundo. E se um dia resolveres regressar nem a vais reconhecer…

Autor:João Marinheiro
Foto:komarek66

quinta-feira, 8 de julho de 2010

sede


Bebi um verso,
Sôfrego de cor,
No calor-do-não-estar-aqui…
Bebi-o!
Todo,
para respirar
e
perder-me no olhar,
sem dor,
por ali…
.
Autor:Almaro
Foto:Szarareneta