sábado, 29 de maio de 2010

... hoje


... hoje um pássaro meditava nas águas. quando me apercebi ele falava comigo. e por breves momentos consegui entrar na linguagem dele...



Foto:zbde http://plfoto.com/zdjecie,zwierzeta,pliszka-gorska,1848558.html

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Eu não quero mudar o mundo





Eu não quero mudar o mundo.
Não tenho tempo para isso.
Quem quer mudar o lugar do mundo actua como quem muda o lugar de um móvel:
empurra primeiro para um lado,
foi força demais,
empurra então para o outro lado,
agora com força de menos,
depois mais um pequeno toque para lá
e um ainda mais pequeno toque para lá,
e agora sim:
o móvel está no lugar.
Depois abrimos o móvel e vemos que os copos que estavam
lá dentro se encontram todos partidos. Estão a ver?

Os copos todos partidos. Que aborrecimento.
Não nos lembrámos da fragilidade do vidro.

Autor: Gonçalo M. Tavares, in “O homem ou é tonto ou é mulher”

Foto:MyCatherine

sexta-feira, 21 de maio de 2010

E, ao anoitecer


e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Autor : ALBerto
Foto:Seticio

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Elegia das Águas Negras para Che Guevara


Atado ao silêncio, o coração ainda
pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes em prado procuram
O potro mais livre, a palmeira
mais alta sobre o lago, o barco talvez
Ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo
aguardam na noite o sol do meio-dia,
a face viva do sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega
húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé;
cada palavra tua
faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos contigo
no coração em redor do fogo.


Autor: Eugénio de Andrade em Poemas a Guevara (selecção e tradução de Egito Gonçalves - colecção Os Olhos e a Memória - Editora Limiar - 1975)

Foto;wiwit


sábado, 1 de maio de 2010

devia morrer-se de outra maneira


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem
hoje às 9 horas.
Traje de passeio". E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios...
depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

.

Autor:José Gomes Ferreira
Foto:depreska

domingo, 18 de abril de 2010

Lentamente corre

Lentamente corre como chuva de Abril sobre o
meu rosto.
Desligo o comando. O automatismo. Desligo o
que me liga.
A ti. À hora que persiste em ser retorta. Desligo
(me),
Rega. Gota a gota. Sou. Árvore que s’abarba
ao lanho.
Que resiste no sangue do machado que a corta.
Pusilânime.
A fruta ainda. A flor da aurora. Lamina d’água.
Néctar…Boca.
Primavera. Tela reflectida.
Lentamente corre. Lentamente (a)Vida..

.___
Foto:roobcio

sábado, 17 de abril de 2010

confidências,,.

Ouvi,
em marulhos de névoa, uma gaivota
inquisidora:
“Que fazes?
Perdeste-te?
”Olhei-a,
enroscada-nos azuis
e
procurei-me na resposta…
“Voo!”,,,disse-lhe convicto-de-evidências…
"Sim, eu sei,,,mas que fazes aqui? Perdeste-
te?” Insistiu ela em esgares trocistas…
“Não sei…provavelmente procuro…” disse-lhe
irrequieto
e
já sem voo! ( perdi-me, pensei,,, em certezas
só minhas…)
.
Autor :Almaro
Foto:Almaro

sexta-feira, 16 de abril de 2010

chuva

Outrora
Quando a chuva vinha
Era a alegria que chegava
Para as árvores
O capim
E para a gente.


Era a hora do banho sob a chuva
Meninos sem chuveiro
A água regateada na cacimba
Muitas horas de pé esperando a vez.


Era a alegria de todos, essa chuva:
Porque então fiz o primeiro poema triste?


Hoje ela veio
Veio sem o encanto de outras eras
E ergueu na minha frente o tempo ido.
Porque estou triste?
Porque estou só?


A canção é sempre a mesma
Mesmos os fantasmas, meu amor:
Inútil o teu sol ante os meus olhos
Inútil teu calor nas minhas mãos.
Essa chuva é minha amante
Velho fantasma meu:
Inútil, meu amor, tua presença.


Autor :Mário Antonio(Obra poética)
Foto:arturJM

sábado, 10 de abril de 2010

Querer-te é sentar-me na praça,




Querer-te é sentar-me na praça, logo de manhã,
só para te ver passar
Querer-te é os teus olhos, o teu sorriso cúmplice,
as tuas palavras
Querer-te é também não me veres, se por acaso
alguém está perto
Querer-te é haver sol e vento e estrelas. É o verde
das acácias e das palmeiras e as rosas de Jericó
alinhadas até à ponta das dunas
Querer-te é o castanho doce dos figos sobre a mesa,
as tâmaras, a voz da grande Kolthoum vinda de uma
janela num cântico apaixonado ao Nilo
Querer-te é haver noite - ah, sobretudo a noite! E é
o teu corpo nu, exausto, branco como um templo,
porque todos os corpos são um templo no solo
consagrado que há
Querer-te é o sorriso no rosto das crianças, o grácil
e dançante caminhar das mulheres, a fonte, as águas
Querer-te é tudo, até o meu desejo de te não querer

Autor:Victor Oliveira Mateus http://adispersapalavra.blogspot.com/
in Os Dias do Amor – um poema para cada dia do ano
Ministério dos Livros Editores

Foto:Ifrom http://plfoto.com/160374/autor.html

quarta-feira, 7 de abril de 2010

o azul do mar



O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar se alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado,
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta.


Autor: Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002
Foto: silvia-anna http://plfoto.com/161414/autor.html

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Música



Como são belos os teus seios! Foram feitos
à medida das minhas mãos. Pousa-os
na minha boca e conta-me
a tua história. Não tens
história? Não tens noite nem vazio nem praia
branca? Fala-me então
do sol, da migração dos pássaros, da mansidão
das estrelas - fala-me de ti antes de possuíres
um nome, uma história. Sim
em qualquer parte
lançaremos os nossos corpos na relva; alfaias
efémeras; armas exíguas
ardidas na guerra. Como são belos
os teus seios! Trémulas
palavras. Deixa que neles eu me queime como quem
se deita num rio. Sinto
a terra mover-se. Iluminas
as águas e as estrelas. O percurso
é longo. O silêncio montanhoso. Debruço-me
na tua solidão.

.

Autor :Casimiro de Brito

Foto:fernando pedro

sábado, 3 de abril de 2010

mínimo

abarcavas-me em azul dos astros
e eu dançava plena
ao som de um poema ainda por inventar.
.
som, fonema celestial,
rio carnudo em busca do seu caudal.
.
… apenas!

.

Foto:elbandit

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O nosso “eu-mesmo” não nos mente porque SENTE, só o “eu-outro” nos engana porque grita murmúrios surdos de um espelho negro.Os espelhos só nos falam verdade quando as imagens se desfragmentam em assimetrias.O encontro está na ousadia de transformarmos o “eu-outro”, no “eu-mesmo” sem perder a cor do sentir…

.

Autor: almaro —September 5, , 2005
Foto;Shawrus

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Mãe, eu quero ir-me embora


Mãe, eu quero ir-me embora - a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram -
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora - os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim - tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora - nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique -
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora - esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua - a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

Maria do Rosário Pedreira in " O Canto do Vento nos Ciprestes",
Gótica, Lisboa, 2001, pp 35 - 36.
Foto_Marek Stan

domingo, 21 de março de 2010

SER POETA


Ser poeta
é assumir o desassombro
de emprestar o seu ombro
ao fraco contra o forte,
é ser indiferente à sorte
e dialogar com a morte
de igual para igual!...

E, no entanto...
É tão fácil matar a poesia:
Basta um grão de filosofia,
maldita expressão esquiva,
obediência lasciva
à geometria do pensamento!

Afinal,
ser poeta
é ser flor, fruto, semente,
farol que ensina à gente
o rumo, a rota certa.
Sei que amar,
sim, é preciso...
Por isso, poeta amigo,
até cortar a meta...
Eu vou navegar contigo!

.
Autor :joaquim evónio
www.joaquimevonio.com - Varanda das Estrelicias
Foto:Smyker