sábado, 13 de junho de 2009

Digam que foi mentira

Digam que foi mentira, que não sou ninguém, que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
eu não vivi ali em tempo algum
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Autor Ruy Belo
Foto: rabek

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Porque escondes a noite no teu ventre?


Porque escondes a noite no teu ventre?
Nesse país de sombra onde se calam as palavras.
Aí, no escuro lago onde estremece a flor da amendoeira
E onde vão morrer todos os cisnes.

Eu desvendo a tua dor, o teu mistério
De caminhares assim calada e triste,
Quando viajo em ti com as mãos nuas e o coração louco
No mais fundo de ti, onde só tu existes.

Oh, eu percorro as tuas coxas devagar
Dobrando-as lentamente contra o peito
E penetro em delírio a tua noite
Esporeando éguas no teu sangue.
De onde me chegam estas palavras?
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Autor:Joaquim Pessoa
in Os Dias da Serpente Moraes Editores, 1981
Foto:meore

domingo, 31 de maio de 2009

nascemos todos com vontade de amar

Nascemos todos com vontade de amar. Ser amado é secundário. Prejudica o amor que muitas vezes o antecede. Um amor não pode pertencer a duas pessoas, por muito que o queiramos. Cada um tem o amor que tem, fora dele. É esse afastamento que nos magoa, que nos põe doidos, sempre à procura do eco que não vem. Os que vêm são bem-vindos, às vezes, mas não são os que queremos. Quando somos honestos, ou estamos apaixonados, é apenas um que se pretende.Tenho a certeza que não se pode ter o que se ama. Ser amado não corresponde jamais ao amor que temos, porque não nos pertence. Por isso escrevemos romances - porque ninguém acredita neles, excepto quem os escreve.Viver é outra coisa. Amar e ser amado distrai-nos irremediavelmente. O amor apouca-se e perde-se quando quando se dá aos dias e às pessoas. Traduz-se e deixa ser o que é. Só na solidão permanece...
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Autor:Miguel Esteves Cardoso

Foto:netiee

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha. Chegaste comigo ao fundo aberto sob um céu marinho, sobre o qual se desenham as nuvens e as árvores. Estamos na aurícola do coração do mundo. O que perdemos ganhamo-lo na ondulação da terra. Tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar e é a felicidade da língua vegetal ou a cabeça leve que se inclina para o oriente. Ali tocamos um nó, uma sílaba verde, uma pedra de sangue e um harmonioso astro se eleva como uma espádua fulgurante enquanto um sopro fresco passa sobre as luzes e os lábios.


Autor :António Ramos Rosa
Foto:Mimikra

domingo, 24 de maio de 2009

os nós da escrita

Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.



Autor:Luís Miguel Nava
Foto:mastercrasch


sábado, 2 de maio de 2009

...Escrevo porque não te posso falar. Não estás. Não me escutas. Se
estivesses tudo era diferente. Pelo menos tentava não cometer os
mesmos erros. E se quisesses partir de novo eu queria ir contigo
desta vez. Porque da última vez que partiste nunca mais voltaste....
Nada sabes de mim...


Foto:Roko

sábado, 18 de abril de 2009

Teatro

Na selva dos meus órgãos, sobre a qual foi desde sempre a pele o firmamento, ao coração coube o papel de rei da criação. Ignoro de que peça é todo este meu corpo a encenação perversa, onde se vê o sangue rebentar contra os rochedos. Do inferno, aonde às vezes o sol vai buscar as chamas, sobre ele impediosamente jorram os projectores.

Autor: luís miguel nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Foto:Paulo Cesar http://www.paulocesar-eu.paulo/ cesar

domingo, 5 de abril de 2009

...Prometemos um ao outro, as coisas
impossíveis. O amor proibido. As palavras
infinitas. Os livros que nunca lemos. As mãos
que nunca demos, os beijos que nunca trocamos.
As carícias do olhar que agora
está vazio.
Prometemos! Prometemos o tudo
e temos o pouco. Demasiado pouco!
Tu não sabes e eu desisto outra vez. Cansado.
Os dias horríveis tentando parar o tempo em
cada milésimo de segundo que seja.Tu não sabes!
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Foto:Carlos Vilela

sábado, 4 de abril de 2009

Quero que me abraces



Quero que me abraces,

antes que a tristeza envelheça no meu peito.

Com o tempo, habituei-me

à conivência das palavras

e a usar, com inocência, certos gestos.

A tua sombra é-me familiar.

Sou espectador do teu sorriso

tão perto da simplicidade.

Quero falar contigo, horas a fio.

Sem pretextos de fuga.

Sem palavras caladas.

Um silêncio definitivo ser-nos-ia fatal.

Mas, depois, partirei,

porque sei que há no meu sangue

uma embarcação possessa

do chamamento do mar, ou da solidão.

.

Autor:Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

terça-feira, 24 de março de 2009

Ficar


Pra ficar com você, pensei numa tarde. É pouco
Pensei numa noite. Também é pouco
Pensei num dia inteiro. Não é suficiente
O meu amor não é amor de uma tarde, de uma noite e nem de um dia
É amor para todas as tardes, todas as noites
e todos os dias de uma vida inteira
.
Autor:Madi

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

E tudo o que levas contigo

Não estou chateado por teres partido. Guardo com o mesmo carinho todas as palavras com que gastamos os papeis das nossas cartas, não rasguei nenhuma das fotos que pensávamos guardar para sempre, continuo a lembrar-me das palavras de amor com as quais fizemos eco pelas ruas da cidade, guardo até as lágrimas que derramei quando partiste. Guardo por ser feliz ao guardá-las. Se calhar, até as guardo por raiva, não por teres partido, mas por tudo aquilo que levas contigo.

Fugiste e contigo fugiu um bocadinho de mim, que desapareceu para sempre, não te iludas: nunca o conseguirás devolver. Acredito que até me queiras devolver tudo aquilo que roubaste, mas não é preciso. Ao partires resgataste parte do meu ser, talvez me tenha tornado mais livre, mas a única certeza é de que me tornei mais só. Não penses assim - não me tornei mais só por estar sem ti, tornei-me mais só, repito, por causa de tudo aquilo o que levas contigo. Partiste e partiram amizades, choros, risos, lembranças e o pior de tudo, sim o pior de tudo, partiu a esperança, a causa, se quiseres a meta, o objectivo, o ideal, o único dos fins. Mais do que os fins, partiram os propósitos, os rumos e o resto, tudo o resto que levas contigo ao partir.

Mas tens culpa? Claro que não tens culpa. Foste onde o teu pensamento te levou, talvez a culpa até tenha sido minha. Sim claro, foi minha. Eu sei que foi minha. Pensava e dizia, sem reflectir agia, perseguia o sonho com maior velocidade do que a vida me perseguia a mim. E depois? Depois tentava fazer-te feliz, fazendo-me também a mim. Claro! Foi aí que eu errei. Se eu te queria fazer feliz, não podia ser egoísta ao ponto de me querer fazer também a mim. Fui estúpido. Justiça? Qual justiça? Não há coisa mais justa do que ser feliz e eu era feliz se te tivesse feito feliz. E o que é isso da felicidade? É apenas tudo o que levas contigo.

Desculpa por teres partido.

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Foto:kiloff jeden

domingo, 22 de fevereiro de 2009

REPOUSO

(tuas asas silentes levemente pousam
sobre meus olhos
e encobrem meus medos)
.
lá fora é a rua;
há um grito de cal
estridente como uma buzina
e cabeças passam
esfaqueadas pelo sol
.
aqui - tuas asas
enormes e vaporosas
apaziguam o clima...
.
há uma guerra lá fora;
o nosso amor contra a guerra?
- sangue jovem de pé
pelo nosso amor
.
ah, tuas asas tranquilas me protegem;

Autor:Joao de Melo
Foto:woytass

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

medidas (in) variáveis

Só há distância na presença da luz, a que se sente no escuro, tem a exacta dimensão da nossa inquietação…
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Autor: almaro
Foto:Gedeah

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

a respiraçao do mar

Errantes as palavras, as janelas,
respiração à flor do mar no côncavo da arca,
ombro imenso que não encerra, todo o espaço
como um só corpo onde o vento começa.

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.Autor:António Ramos Rosa
Foto:Utibione

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

É segunda-feira.
Há árvores céu e estradas sem fim.
Existe uma normalidade rectilínea em tudo o que me cerca e no entanto choro.
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Choro lágrimas anormalmente rectilíneas
vazias de árvores céu e estradas sem fim.
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Autor:Luís Rodrigues

Foto:JP Sousa