domingo, 23 de junho de 2024

Pontes


Devia haver pontes invisíveis
Onde à noite fosse possível transpor
Voando como pássaros
Para em uníssono
Ir ao encontro dos sonhos imortalizados
Em nossa viagem terrena

Autor : BeatriceM 2024-06-22
Imagem :Anya Anti 

sábado, 22 de junho de 2024

O chamado da Falésia

espera-se por tudo quando a falésia
nos chama por dentro do nevoeiro
cobrindo a ilha

nesse momento pensamos se todo o mundo
será assim vestido de bruma e limpamos
os olhos com as nuvens do horizonte

na verdade sabemos que não e o mar
é como uma estrada indicando um caminho
e o coração uma bússola para orientar a viagem

e ao chamado ecoando pelas serras verdes
e se detendo nas pedras cinzentas dos cumes
não sabemos que dizer como responder

algures apontamos um pedaço de terra
e um dia numa carta à mãe lá confessamos
estou aqui tão distante do lugar
onde num dia como nunca vi outro igual
decidi que hei-de morrer

hoje por lá mora um silêncio
sabendo a demora à saudade caiada de chuva
onde já deviam estar as paredes de cal branca
de uma casa

espere por mim

Autor : José António Gonçalves
Imagem : Adrian Borda

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Ser Feliz

Permaneço além de mim, muito além
Num sítio onde a felicidade sorri
Onde os dias são feitos de espuma
Onde a bruma se dissipou enfim

Sou asa, neste caminho de além
Que paz tem este azul da manhã!
Que sonho é este d'onde não acordo?
Que chama arde em mim...?!

Vivo? Sonho? O que é de mim?
Começo? Fim? O que tenho em mim?
Encantamento, vejo olhos brilhantes

Ou será o meu contentamento?
Já não sei se sou mar ou sol
Mas sei que sou feliz!

Autor : Cecília Vilas Boas
Imagem : Caroline Margonis

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Cai o pano de sol

Cai o pano do sol
no palco das sepulturas.
Aos montes jacentes dão voltas
sebes e muros aluídos
guiando excursões do olhar
que vai da multidão reunida
às oliveiras mais antigas,
e destas, mergulhando,
às formigas.

Não está porém destinada ao sol
a cova, mas a ti, astro bem menor,
e antes da cova é preciso
não dar pretexto aos vermes,
endurecer a última casa,
vê-la em sonhos impenetrável,
sulcando segura as águas de um grande rio
contigo a bordo.

Autor : Rui Lage
Imagem : Michael Vincent Manalo

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Quase de nada místico

Paul Fried

Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,
e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:
poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,

que (aproveitando) trago para ti.

Autor : Ana Luísa Amaral
in às vezes o Paraíso

terça-feira, 18 de junho de 2024

vamos embebedarmo-nos e fugir para o teu corpo

 


vamos embebedarmo-nos e fugir para o teu corpo
na primavera mentem-se os invernos no eterno verão

levo a adolescência que perdemos dentro à tua boca
vamos subir as árvores um do outro e
meter todos os invernos no corpo eterno verão

vamos absolutos para o nu de Deus
trago nos bolsos tempo para nenhum nós
e vinte mil adiadas erecções

vamos rasgar ruas onde havia mãos
e esconder outonos nos fundos das pernas
caber o segredo que não sabemos nós
a natureza segunda das folhas
e o nome nu de todas as estações

vamos soltar cobras onde havia medo
e matar os dias só duas palavras

mas agora vamos bebermo-nos de ti
e fugir para o corpo bem fora de nós

Autor : Pedro Sena-Lino
Imagem :Tina Sosna 

domingo, 16 de junho de 2024

No silêncio


Depois de tanto tempo
Ainda procuro protecção
No sossego da tarde

Para dizer-te o que nunca foi dito
E que carrego dentro de mim
E sei que é totalmente inútil

E a memória vagabundeia
Pelo sonho que finalizou
E pelo beijo que um dia descambou

E o silêncio fica ainda mais agreste

Autor : BeatriceM 2024-06-15
Imagem : TJ Drysdale

sábado, 15 de junho de 2024

A Lua


Tenho de repensar a minha vida,
disse-me, e acrescentou:
ser-se feliz é não ter esperança.
Lembrei-lhe o sol e o mar
que hoje vejo sozinho nesta praia,
e respondi não há quem viva assim,
ainda que a esperança não exista.
Mas vi-a olhar o céu,
dizendo que sorte é termos a lua
- rege-nos as marés e o corpo -,
e que amava o seu rosto claro,
um espelho de luz na noite
onde se olhava já sem sonhos.
Nem suspeitou ser isso a esperança,
a lua e os espelhos sem mais nada,
a música que ouvíramos
e o mar além, atrás das dunas.

Autor : Nuno Dempster
Imagem : Anya Anti

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Quem me Quiser

Quem me quiser há de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar.
Quem me quiser há de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
a saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há de saber os beijos e as uvas
há de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
– Ou então não saber a coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente. 

Autor : Rosa Lobato de Faria

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Coisas à espera de vez

uma mão-cheia de coisas à espera de
acontecer. O copo
quase a
partir. O prazo quase a acabar. O vermelho
do semáforo (que reteve
um par de vidas) a instante de ceder
a sua vez à
cor verde. Um rapaz na margem esquerda (além
de calção caqui) parece
estar a segundos de decidir se se
atira. A
narcose que há num beijo- Pagar a conta
do gás. Um furo novo no cinto! A
coisa e o
seu contrário. Podia encher um poema com
uma lista de coisas que estão quase a acontecer. Uma a
uma a
todo o instante. A ordem
isso não sei.

Autor : João Luís Barreto Guimarães
Imagem : Noell S. Oszval

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Começar o dia com os gestos


Começar o dia com os gestos
de minha Mãe:
aquecer a água e o leite
cortar o pão
contra o peito
lavar o prato a chávena o pires
limpar as migalhas da mesa
arrumar
o que está fora do lugar
E de nada disto ficar resto
de letra escrita
Fazer como ela
poemas com gestos
que nascem e morrem na mesma hora
Talvez por isso eternos

Ser modestamente vivo
Cumprir a vida sem porquês nem ambição
Palpitar sem pensar
como o próprio coração

autor : Teresa Rita Lopes
In Cicatriz(1996)

terça-feira, 11 de junho de 2024

Nuances

De repente
Senti uma saudade de te ver
de te falar e de sentir o teu cheiro
quase morro de tanta saudade
e essa vontade de te ter.

Autor : Fernando Jorge Benevides
Imagem : Katharina Jung

domingo, 9 de junho de 2024

há dias


há dias que as cores que
ainda consigo lobrigar
no horizonte
são apenas os
cinzentos .
.
Autor : BeatriceM 2014-05-29
Imagem :Katharina Jung 

sábado, 8 de junho de 2024

Amor

Marc Figueras

Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.

Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo...

Autor : Nuno Júdice
De «Meditação sobre Ruínas» (1994)

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Vem


Vem às vezes ver-me,
para partir o silêncio de uma lenta agonia
que na memória guarda.

Atar-se tantos nós não servia para nada.

Di-lo com os olhos afundados na chuva
e assim nasce a sua sombra
no céu quebrado que esconde o abandono.

autor : ana merino
trad. joaquim manuel magalhães
imagem Julie de Waroquier

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Amo-te todos os dias

Eu quero olhar-te nos olhos,
E ver-te afastar delicadamente o cabelo da cara
Enquanto encostas a cabeça à ombreira da janela da sala,
E agarrar as tuas mãos febris
Com as minhas mãos geladas
E dizer-te que as nossas mãos
São asas com que podemos voar
Para lá da pequenez desta prisão crepuscular,
E mergulhar na magnitude do mistério.
E ouvir-te dizer que voar é impossível
E dizer-te que entre nós não há impossíveis,
E ver-te procurar a serenidade num cigarro
E esconder-te o isqueiro debaixo da manta
Cor-de-fogo que cobre o sofá velho,
E ver-te ir à última gaveta do móvel de carvalho
E acender o teu cigarro com um dos infindáveis
Isqueiros que lá guardas,
E ir à última gaveta da tua alma
E de lá arrancar o teu enigmático sorriso.
E fingir que não percebo que enquanto nos beijamos
Me roubas, maquiavelicamente, o comando da televisão,
E falar-te acerca da rapariga das tranças ruivas
Que aparece, na magia dos meus sonhos,
Sentada no banco do jardim da lua,
E sorrir aos teus ciúmes de alguém que não existe,
E fingir que estou a tossir mais que aflito
E ver-te esmagar bruscamente o cigarro contra o cinzeiro
E refugiares-te no chá de cereja,
E ouvir-te elogiar as chávenas rubro incandescente,
Que trouxeste da viagem ao México,
Só porque sabes que não gosto daquelas chávenas,
E ver-te despir para tomar banho
E tocar-te como quem lê um poema em braille,
Como se o teu corpo fosse, simultaneamente,
Uma encruzilhada onde me perco
E um mapa onde me volto a encontrar,
E reter-te por séculos nos meus braços,
E fugir quando alcanças o chuveiro ameaçador,
E esperar ansiosamente que termines o teu banho
E beijar o calor da tua pele húmida quando regressas,
E sorrir ao olhar falsamente ressentido
Que lanças desde o sofá onde estás deitada
Com o cabelo molhado,
E ver-te ceder ao peso das pálpebras
Quando as horas pesam séculos sobre os olhos,
E adormecer junto a mim,
E ser percorrido pela profunda paz
Que emerge da perfeição daquele momento,
Perfeição que, felizmente, não tens:
Gosto de ti, não apesar dos teus defeitos,
Mas com os teus defeitos. Todos.
E tocar-te uma vez mais,
Mas querer também deixar-te dormir,
E acordar antes de ti,
E ir à padaria buscar pasteis de nata
E ver-te deliciar com eles
Sem te importares de semear a cama com migalhas
Enquanto eu me delicio com o teu sorriso,
E ver-te beber sumo de laranja
Segurando o copo com as duas mãos,
E pressentir que te conheço há sete vidas
E que afinal tudo isto faz sentido
Porque tu existes,
E perceber a sorte que tive em te encontrar
No meio de seis biliões de seres humanos.
Eu quero olhar-te nos olhos,

Autor : Gonçalo Nuno Martins
Pag 74/75 In Nada em 53vezes
Imagem : Alessio Albi

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Num domingo em que passaste na minha rua


Num domingo em que passaste na minha rua
e os prédios se afastaram para que
me raptasses por cima das árvores

Na límpida tarde orlada
por minhas pestanas imóveis
tua aparição abre uma estrada
de damasco por entre os automóveis.

Apareces e logo adquires
em minha eclíptica visual
a lassidão equinocial
que espalha a cor na minha íris.

Apareces como o começo
de qualquer coisa interminável
de tão importante é tão frágil
teu vulto que nem estremeço.

Apareces como se gentil-
mente viesses para apanhar um trevo
e o domingo almofada anil
cede à tendência do teu perfil
de ficares num baixo-relevo.

Autor : Natália Correia
Imagem :TJ Drysdale 

terça-feira, 4 de junho de 2024

11

Ben Zank

Não é difícil um homem apaixonar-se.
Ferir a sua paisagem,
cinzas de um passado caído, fluente.
Ao fim de vidas partilhadas pode ser que
diga "estremeci
durante anos sem te abraçar". Agora é tarde.
Agora é tarde sobre a terra cercada.
Por planícies ficou o desespero,
a dor lilás dos homens soçobrados
na paciência nocturna.
Só depois do terror os cães ladram fielmente
aos portais da manhã, só
após o gume das vidas partilhadas.
"Passei a vida a fugir para a tua boca", e
confundo já o teu rosto
com um qualquer.

Autor: Rui Coias
in A Função do Geógrafo, V.N. Famalicão: Quasi Edições, 1ª edição

domingo, 2 de junho de 2024

Há vidas que não são filmes

A minha vida é uma página vazia
Totalmente desconjuntada
Fastidiosa e com alguns dramas no percurso
Há vidas que não dão estórias
Nem têm enredo apenas momentos em suspense

Por isso melhor ficar com um olhar enigmático
E ir vivendo a vida
Como se fosse uma peça de teatro enfadonha
Onde vamos colocando alguma cor
O resto só eu é que sei e isso não interessa a ninguém

Autor : BeatriceM 2024-05-25
Imagem : Shelby Robinson

sábado, 1 de junho de 2024

Momento

Vento leve passa.
E na lenta hora cinzenta
Minha dor te abraça.

Autor : Artur Eduardo Benevides
Imagem:Michelle Ellis