segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

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Esperar por ti agora quando já todos me explicaram
Como está completamente gasto o tempo de esperas
Com telefonemas fora de hora recados fortuitos e
Sinais desajustados
Pode parecer daquelas coisas que fazíamos
Quando há muitos anos as pessoas
Olhavam para nós e repetiam meu deus
Onde é que o mundo vai parar
(havia uma velha no jardim da parada
Que dizia isto todas as manhãs mal nos via chegar
E tu murmuravas havemos
De convidá-la para o nosso casamento
E ríamos muitos e tínhamos a certeza
De que viver era isso)

Não importa hoje temos
Outras maneiras de fugir e de resto
Já morreram todos os que então
Furiosamente nos vigiavam
Embora possa ainda
Haver quem nos reconheço e se espante
E invente presságios e vozes de oráculos
Ou muito simplesmente destinos banais
Adivinhados nas folhas de chá
E em surdina nos avise
Que as rugas lavradas pelo tempo tornaram
Demasiado inóspito o lugar
Onde nos encontramos

Mas eu já percorri muitos lugares em chamas
E esperar por ti agora é apenas
Mais um longo corredor de memórias regressadas
Que se atravessa entre os nossos corpos
Pelo meio de retratos desfocados com o Sena ao fundo
E discos de vinil com velhas canções
Que nunca partilhámos com mais ninguém

- até chegar ao lugar do amor subitamente desocupado
Pronunciando devagar cada sílaba do nome com que de mim nascias

Autor : Alice Vieira
in DOIS CORPOS TOMBANDO NA ÁGUA pag 21/22
 (Caminho, 2007)

1 comentário:

LuísM Castanheira disse...

Um poema belo e nostálgico, onde de nota a ausência ou o vazio de alguém, que foi um grande Amor.
(dizem que toda a poesia são bocados partidos, em auto-biográfica.
Um abraço.