quarta-feira, 23 de julho de 2025

Lume


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.

Autor:Ana Salomé

terça-feira, 22 de julho de 2025

este livro


este livro. passa um dedo pela página, sente o papel
como se sentisses a pele do meu corpo, o meu rosto.

este livro tem palavras, esquece as palavras por
momentos. o que temos para dizer não pode ser dito.

sente o peso deste livro. o peso da minha mão sobre
a tua. damos as mãos quando seguras este livro.

não me perguntes quem sou. não me perguntes nada.
eu não sei responder a todas as perguntas do mundo.

pousa os lábios sobre a página, pousa os lábios sobre
o papel. devagar, muito devagar. vamos beijar-nos.

Autor :  José Luis Peixoto
in A casa, a Escuridão, pág 19.
Temas & Debates

domingo, 20 de julho de 2025

o mar onde te espero


o calor e a humidade
colam-se à pele morena,
é tarde, e há um desejo bruto:
ir à praia,
agora, quando está vazia.

avanço com pressa,
quase com raiva,
mergulho sem pensar
e sonho:
um dia encontro-te
sentado,
à minha espera.

Autor:BeatriceM 2025-07-19
Imagem : Natalie Karpushenko

sábado, 19 de julho de 2025

Recado


ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço
.
Al Berto, Horto de Incêndio
Foto:Lady33

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Angústia


Ensaiamos os dias em trapézios
instáveis. Na superfície movediça
de construções humanas em suspensão.
Segurando na fragilidade do equilíbrio
o prumo da justiça.

Sempre que caímos, por mais que tentemos
evitar a vertigem da ordem, todos os factos
se perdem na dispersão dos elementos.

Autor : Virgínia do Carmo 
Imagem : Ravshaniya

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Cansaço do Canto


As gentes no mercado os locais na praça
os irmãos de guerra pedem-me poesia dizem
se és poeta deves ter em ti poesia.

Mas isso é tão ilógico quanto dizer de alguém
que se é médico deve ter em si humanidade
ou se bate-chapas amor pela folha-de-flandres.

Perdoai, amigos, não sou nenhum animador de rua
nenhum entretém de ocasião nenhum rigoletto –
ponderai se o vosso negócio não será antes rosas
e eu providenciarei os espinhos.

Conjurais-me por beleza. Pois passai ao largo.
Que ideia tão disparatada
que um poeta cante a paixão e por pintassilgue
levando ao chilique peitos arfantes
por cardaços torturados. Estais enganados.

A lua ela mesma pode inspirar
tanto o romântico como o assassino (esse romântico)
e uma florista merca tanto o decesso como o enlace.

Oh pelos cardos me comovo – evitai-me! – e pintassilgo sim
eu canto o cansaço do canto.

Autor : Daniel Jonas

quarta-feira, 16 de julho de 2025

No meu olhar

Kylli Sparre

No meu olhar, voam pássaros inventados
Contos lendários, de príncipes e princesas
Centelhas de ventos sobranceiros
Violetas que perfumam o meu travesseiro.

Vejo névoas que encobrem castelos
Manhãs de bruma em dias soalheiros
Ondas oceânicas, que rebentam nas estrelas
Tudo cabe ali, na fantasia do meu olhar...

Nos meus sonhos perco-me em melancolia
Ainda lembro as brisas aladas do fim da tarde
E as as magnólias do meu jardim...
Onde estão as magnólias do meu jardim?!

Autor : Cecília Vilas Boas
in o Eco do Silêncio (Esfera do Caos,2012

terça-feira, 15 de julho de 2025

Conserto a palavra

Natália Drepina
.
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio 
Restauro-a 
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro 
Ilumino-a 

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa 
Reunida numa forma comparada à lâmpada 
A um zumbido calado momentaneamente em exame 

Ela não se come como as palavras inteiras 
Mas devora-se a si mesma e restauro-a 
A partir do vómito 
Volto devagar a colocá-la na fome 

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza 
Como um homem nadando para trás 
E sou uma energia para ela 

E ilumino-a 

Autor : Daniel Faria
 in "Homens que São como Lugares Mal Situados"

domingo, 13 de julho de 2025

Ainda Não Sei Partir


pela janela, o céu escurece
a lua impõe-se, lívida,
num horizonte que arde devagar.
penso na viagem —
sonhada, adiada, necessária —
e calo-me, como quem ainda
não sabe se parte,
ou se permanece a olhar.

Autor:BeatriceM 2025-07-12

sábado, 12 de julho de 2025

ainda te falta

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
.
Autor : Albano Martins

sexta-feira, 11 de julho de 2025

A SABEDORIA DAS MARÉS...


O mar devolve o que não lhe pertence,
e acolhe nas entre-linhas das esperas,
as correntes libertas e certas,
onde brotam as águas imparáveis do coração...

Autor : Cristina Fernandes
in, "O Momento Certo

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Uma prosa sobre os gatos


Ildiko Neer

Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam de mais à poesia,
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstractos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem «os meus gatos»,
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa
.
Autor : Manuel António Pina

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Passos sem memória

Parvana Photography

Olho a janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom-dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.

 Autora : Rosa Alice Branco 
In Soletrar o Dia 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Pouco é um Homem

 




Pouco é um homem e, no entanto, nele
cabe tudo o que existe e fica ainda
espaço bastante para poder negá-lo.


Autor : Armindo Rodrigues
 in 'Beleza Prometida (XC)'

domingo, 6 de julho de 2025

As areias da praia


Nas dunas,
as areias da praia
são as nossas únicas testemunhas.

E, como sempre,
escorrem por entre os meus dedos.

Autor:BeatriceM 2025-07-05