sexta-feira, 24 de outubro de 2025

rés-do-chão

 

no fundo de cada coisa
o raso
no vasto de cada coisa
o ínfimo
no descampado o íntimo na nudez
um nem atinar com ela
no reles de cada coisa
o tudo dela
vida em revoada

no raso de cada coisa
o cavo
no ínfimo de cada coisa
sua extensão
no descompassado o ritmo na embriaguez
uma espécie de rés-do-chão

em meio metro
de qualquer coisa
um deus descalço
e bom

Autor : Adriana Lisboa.
Imagem : amber hortelano

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

toda a solidão das ilhas


ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração

autor : gil t. sousa

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Penso em ti

Penso em ti
Olho as estrelas
Pego na lua
Vejo nuvens transparentes
Num fundo azulado
Vejo-te a ti meu amado
Meu desejo
Minha tentação
Serás sempre acarinhado
Serás sempre o meu coração
Teus olhos teu olhar
São meu mistério
A minha tristeza
A minha alegria Minha luta...
Vivo alucinada
Mas sigo a minha estrada
Olha-me amor
Dá-me vida Esperança O teu abraço..
Para que mesmo na
Escuridão….brilhe meu coração

Autor : Maria Tavares

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Ruínas

richard blunt

Por onde quer que tenha começado
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.

autor : manuel antónio pina

domingo, 19 de outubro de 2025

Fui ...


Fui ao aeroporto,
e sem que me presenciasses,
permaneci ao longe a observar-te,
a subir as escadas rolantes,
até te perder da minha óptica de visualização..

Deixas-te algo de ti,
levaste muito de mim.

Autor  : BeatriceM 08-10-2022

sábado, 18 de outubro de 2025

....

Não te confundo com ninguém
reconheço-te no meio da multidão
lamentável
que já não sejas meu amigo
mas compreendo que não quisesses
estar acordado
sempre num dia claro.

Autor : Luís Rodrigues
Imagem : silhouettes by paolo barzman

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Sou Viagem

Apetecia-me ser jovem
mordida por um fogo
e dizer amo-te
com olhar de rosas.
depois, devagar, descer
pelos afluentes do teu rio
como um barco demorado
no cais de embarque
sob um rumor de sol ardido.
mais nada.

Autor : Maria Isabel Fidalgo
Imagem : Ali Jardine

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Memória Descritiva

A sombra dos tectos altos
não deixa respirar. A pintura
esboroada como os ossos.
A moldura verde das portas
na solidão de ferro abandonada.
As cortinas de fumo sujo.
Serradura nas frestas da madeira.
Gonzos, chaves, uma gaveta
com bocados de uma cama.
Luzes ímpares em jornais antigos.
Ganchos, fios, fendas.
Uma almofada, restos
dum romance francês, o metal
de um candeeiro. Recantos,
esquinas, manchas irregulares,
pratos, móveis trôpegos, uma parede
onde estala a cal. Tábuas pequenas,
traves, bolor num espelho, vidrinhos,
relógios, autocolantes, fechaduras,
uma arca da qual ninguém
se aproxima, pedaços de tecido
alegre e tantas cadeiras.

autor : Pedro Mexia
In Em Memória, Gótica, 2000

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

há colares que são coleiras

há colares que são coleiras
há mulheres que são cadelas
certos homens, cães raivosos

os cães propriamente ditos
não foram para aqui chamados
embora metam o nariz em todo o lado
farejando coisas imaginárias
e, de resto, não falam, ladram
têm com certeza razão

Autor : Bénédicte Houart

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Não muita vez nos vemos, mas, se poucos


Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.

Autor : Luís Miguel Nava
In poesia completa (1979-1994). 

domingo, 12 de outubro de 2025

Procuro ...

 

Procuro o racional para algumas coisas,
que não compreendo,
ou não quero perceber.

Procuro a paz no silêncio do dia,
quando o horizonte me fala,
sobre o racional de algumas coisas.

Que eu entendo,
e ouso entender,
mesmo que por vezes seja irracional.

Autor : BeatriceM 01-10-2022
Imagem : Mary Parker

sábado, 11 de outubro de 2025

VIESSES TU, POESIA...


Viesses tu, Poesia,
e o mais estava certo.

Viesses no deserto,
viesses na tristeza,
viesses com a Morte...

Que alegria mereço, ou que pomar,
se os não justificar,
Poesia,
a tua vara mágica?

Bem sei: antes de ti foi a Mulher,
foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água...
Mas tu é que disseste e os apontaste:
- Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.
E logo foram graça, aparição, presença,
sinal...

(Sem ti, sem ti que fora
das rosas?)

Mortas, mortas pra sempre na primeira,
morta à primeira hora.)

Ó Poesia!, viesses
na hora desolada
e regressara tudo
à graça do princípio...

Autor : Sebastião da Gama
In "Pelo Sonho é que Vamos"
Imagem : Nishe

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

APRENDO-TE

 

Aprendo-te mas não te prendo
Na aprendizagem vivenciada
Do tempo ainda breve crescendo
Das tuas mãos a cada chegada
Aprendo-te no verde do olhar
Maduro em ti, estranha surpresa
Do pouco que sei - sabendo-te
Ferida que guardo ainda ilesa
Falas do círculo subtil do meu olhar
Entre o castanho e o verde profundo
Quando planas dentro de mim sem fim
Breve ainda é o tempo deste novo mar
Que desagua na terra a cada segundo
Talvez sejas tu - o outro lado de mim

Autor : Cristina Fernandes
 in O MOMENTO CERTO (Modocromia, 2020
Imagem : Igor Burba

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Não colher as mãos

não colher as mãos, alimentar os objectos.
tocá-los devagar, deixando o fio correr desde
o ar até à ponta dessa sombra onde repousa
o mundo. tenho a certeza de que algo se
mexe no silêncio. olho uma vez. olho uma vez.
sei que falas com as coisas. que tens um pacto
com as rãs, outros pequenos animais, certos verdes
hereditários gestos. que nem que quisesses me
poderias contar. e sei de tudo limpo e é para ti que
inclino as mãos quando percorro as cidades e as
esqueço. esta pequena saudade é uma floresta
de silêncios. sou capaz de adormecer sobre o fogo.

Autor : Rui Costa
In a nuvem prateada das pessoas graves

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Dias melhores



A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.

Autor : Rosa Alice Branco
In Da Alma e dos Espíritos Animais
Imagem : Marius Markowski