quarta-feira, 24 de abril de 2024

Atar-se aos segredos dos dias gémeos

Atar-se aos segredos dos dias gémeos
não é tarefa fácil para o meu pobre amigo.

Vem às vezes ver-me,
para partir o silêncio de uma lenta agonia
que na memória guarda.

Atar-se tantos nós não servia para nada.

Di-lo com os olhos afundados na chuva
e assim nasce a sua sombra
no céu quebrado que esconde o abandono.

Autor :Ana Merino
trad. joaquim manuel magalhães(relógio d´água2000)
Imagem :Anthony Garcia

terça-feira, 23 de abril de 2024

Só o amor

Só o amor pára o tempo (só
ele detém a voragem)
rasgámos cidades a meio
(cruzámos rios e lagos)
disponíveis para lugares com nomes
impronunciáveis. É preciso conhecer os mapas mais ao acaso
(jamais evitar fronteiras
nunca ficar para trás)
tudo nos deve assombrar como
neve
em Abril. Só o amor pára o tempo só
nele perdura o enigma
lançar pedras sem forma e o lago
devolver círculos).

Autor : João Luís Barreto Guimarães
in Nómada
Imagem : Kristin Edmundson

domingo, 21 de abril de 2024

poalhas vagas

 

somos incompatíveis,
nos dias,
nos gostos,
nos acertos que são sempre desacertos,
somos seres díspares,
onde só somos compatíveis,
na paixão assoberbada pela calada da noite…

Autor : BeatriceM 2024-04-20
Imagem :Masha Raymers 

sábado, 20 de abril de 2024

Dois Poemas

Antonio Curnetta

Em que idioma te direi
este amor sem nome
que é servo e rei?

Como o direi?
Como o calarei?

É como se a noite se molhasse
repentinamente, quando choras.
É como se o dia se demorasse,
quando te espero e tu te demoras.

Autor : Albano Martins

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Ser e não ser

Entre mim e os livros na estante,
no espaço ocupado pela luz,
dão-se transformações
a que assisto quieta e calada.

Depois de olhar o ar,
cada palavra reflecte
o lugar invisível de onde veio o poema
ou o silêncio que passou pela casa.

A alma não escolhe a estação
nem prevê o detalhe do infinito.

Reparo com espanto infante
nos vestígios deste ritual,
os livros que não li
sabem de mim
e não dormem nunca.

Autor Marta Chaves
In Avalanche

quinta-feira, 18 de abril de 2024

O nome das árvores


Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores e
guarda no bolso dois nomes para cada árvore. As
árvores não morrem no interior da sombra.

Quem é que sabe que saber até ao fim do mundo é
pouco mais do que nada. Quem sabe que as palavras
são só uma nesga da paisagem. Quem caminha assim
por dentro dos caminhos. O nome das árvores é o
silêncio.

Há quem olhe as árvores como quem procura pássaros
dentro das árvores e o céu por cima das árvores. As
árvores não morrem no interior da sede.

Quem é que sabe que o destino é tão lento e está tão
perto. Por quem se demora o vento quando o vento se
demora. Quem é que sabe que sonhar é o princípio da
respiração. As árvores são o lume quando os caminhos
se acendem.

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores
ou como quem olha as casas ao cair da noite. As
árvores não morrem no interior do medo.

Quem é que sabe que viver é viver para lá da última
folha. Quem é capaz de morrer e depois de morrer não
morrer ainda. Quem habita os lugares invisíveis. As
árvores caminham no descuidado caminhar do tempo.

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores
com os olhos súbitos e incendiados do amor. As
árvores não morrem no interior da chama.

Tudo nas árvores é o coração das árvores. Por quem os
pássaros esquecem as asas quando os pássaros
esquecem as asas. Quem sabe devagar amadurecer um
fruto. Quem é capaz de amar assim até às raízes.

Rui Miguel Fragas
In O Nome das Árvores
Imagem :Janek Sedlar

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Caixinha de Música

impregno-me em ti como um perfume
como quem veste a pele de odores ou a alma de
cetins
quero que me enlaces ou me enfaixes de muitos
laços
abraços fitas ou fios transparentes

em celofane brilhando uma prenda
uma menina te traz vestida de lumes
incandescendo incandescente
te quer embrulhada em véus de seda e brocado

encantada a serpente a flauta o mago
senhor toca
e quando me toca
o corpo eu abro

caixinha de música
dentro
com bailarina que dança

Autor : Ana Mafalda Leite

terça-feira, 16 de abril de 2024

BÚSSOLAS DA VIDA

 

Observo o ciclo da vida feita ao redor de mim
Estonteio-me com a noção do tanto não feito
E gelo-me nesse pensar do que não disse
No zelo do que não consegui escrever no vazio.

Sintonias de prazeres e hiatos de saudades cor
Polvilhados hoje de branco no entardecer lógico
Rugas sulcadas por rios de lágrimas recorrentes
No procurar de mansinho do mar que não se agita.

Sons redutores de anseios que se apagam no areal
Passos na falésia à beira de si..."cardume" floral
E até as gaivotas perderam o medo do próximo.

Volteios em círculos de rectas secantes e infinitas
Geografias amputadas em planisférios políticos
E as bússolas perderam o magnetismo do sorrir!

Autor: José Luis Outono
in MEMÓRIAS - by OUTONO 2009
( direitos autorais – S. P.A. – 106402 )

domingo, 14 de abril de 2024

Verbos

Flutua no ar o livre arbítrio
Transformado em algo
Que o verbo se conjuga no passado

Porque no futuro
Não o sei conjugar
E nem com palavras renovadas

Se no presente faz coesão
Porque já as despi integralmente
Do meu sentir

Autor : BeatriceM 2024-04-13
Imagem :Anna Derhanovskaya 

sábado, 13 de abril de 2024

O Poeta

 

O que resta
Ao poeta
Senão viver
Inconformado
E não vergado
Embora
Em voz silenciada
Ninguém conseguir
Calar a voz do verbo.

Autor : Delmar Maia Gonçalves
Imagem : Martin Stranka
.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

O tamanho impensável das flores

O tamanho impensável das flores
Prende-me ao chão

E não serve de nada encontrar um lugar
Onde possa ser outra coisa qualquer.

Autor : Sandra Costa
Imagem : Marie Meister

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Poema

Eu não sabia então -
nem sei se mesmo hoje saberei -
que a poesia era para isto
falar das coisas miseráveis
- a memória do que é miúdo, o que é rasteiro -
o sono escombros que o mar devolve à terra.

Ou então lembrar meu Pai
suas mãos secas tisnadas do sol
sua vasta alma camponesa rosto de terra
coração de menino olhos ingénuos
um chapéu protegendo-lhe a cabeça
caminhando entre folhas de videira
suavemente falando aos que trabalhavam na colheita
[se acercassem de um outro campo mais acima
para colher sob sol braseiro
uvas que eu ia devorando
até do sumo doce fartar minha boca.

Ou lembrar meu avô
que conduzia mal
levando o carro pelo meio da estrada de província
a buzinar longamente em cada curva
afugentando galinhas ovelhas
crianças ranhosas
filhas do álcool.

Lembrá-lo agora como quem evoca um sabor cheiro
[da infância
não chegando para me humedecer os olhos
(não sou especialmente dado à comoção)
leva-me a um outro tempo:
um tempo de girassóis e de pão farto e doce
a encher-me a boca miúda
momentos coincidentes com o agora:
a guerra na Palestina as eleições em França
a notícia de um óbito no jornal do dia
a graça do pivô a fechar outro telejornal
ou tão-somente essa presença intensa
teu perfil recortado no ecrã dos meus olhos.

Tudo acontecendo ao mesmo tempo numa linha
[horizontal
em simultâneo como se de fora
como se fosse um outro
desconhecendo sempre
o lugar exacto a que pertenço.

Autor : Bernardo Pinto de Almeida
Imagem:Erik Johansson 

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Ombros

Agora, que o gelo se derreteu nos
ramos preguiçosos dos teixos e as
águas sossegaram no caudal dos
rios; que o frio deixou de apunhalar
o coração dos campos, e as aranhas
voltaram a emergir das feridas dos
muros _ escrevo para preservar a
alegria, que é o que me mantém acesa
a luz do amor. Por isso, quando te
pergunto se achas que, com os anos
e o mundo, me tornei cínica, por favor,
não encolhas os ombros: as minhas
gargalhadas ainda não têm sangue.

Autor : Maria do Rosário Pedreira
In :O meu corpo humano pág. 85.
Imagem : Omar Ortiz

terça-feira, 9 de abril de 2024

....


O casal da mesa do lado tocou nas palavras durante o
pequeno-almoço. Cumpriu-o indiferente sem incomodar o silêncio,
sem ter provado sequer uma curta vez que fosse do dissabor das
palavras.
O casal da mesa do lado já deve ter dito tudo.

João Luís Barreto Guimarães
in Poesia Reunida (Quetzal)

domingo, 7 de abril de 2024

talvez

 

talvez que o teu silêncio,
seja uma prova de que a ausência,
é uma partida inadiável,
e um corte com a mágoa,
transformada em saudade .

Autor : BeatriceM 2024-04-06
Imagem : Zach Alan