sábado, 15 de novembro de 2025

Ausência


Boyana Petkova

Fala

Ouvir-te-ei
Ainda que os segredos
As amoras me chamem

Diz-me
Que existirão lágrimas para chorar
Na velhice
Na solidão

Ainda que acordes os olhos dos deuses

Fala

Ouvir-te-ei
A coragem

Alguém de nós que já não está

Autor : Daniel Faria
in "Oxálida"

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Do muro

 

Este muro avança com a estrada,
caminha para o cume e para o vale.
Se eu parasse junto dele, dir-me-ia:
aceito e recuso o movimento,
vou e não vou por vários horizontes,
sou e não sou infindamente.

Autor : fiama hasse pais brandão
as fábulas quasi 2002
Imagem : Pinterest

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira


Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico

Autor : António Ramos Rosa
Deambulações Oblíquas. Quetzal, 2001.
Imagem :Pinterest

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Na periferia da manhã


Na periferia da manhã, levemente adiada,
improviso uma ilha.
Tão nua como páginas em branco.
E concedo-me o direito de esperar Ulisses.
A minha fronte marcada com palavras sem destino.

Autor : Graça Pires
Imagem : Tina Albrecht

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Elogio da Distância



Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

Autor : Paul Celan
in “Papoila e Memória”
Imagem : stoddard

domingo, 9 de novembro de 2025

Segredos

 

Ontem falaram-me
de segredos
meus
eram segredos que só o vento sabia
fiquei perplexa e sem feedback.

Já não posso confiar em ninguém
nem sequer no vento.

Autor : BeatriceM 29-10-2022
Imagem : Mira Nedyalkova

sábado, 8 de novembro de 2025

Parto estelar


Contados os pontos
Finitos como eu
Mas belos no findar

Abstratos anjos gasosos
As verdadeiras nuvens
E o céu estão aí?

Reparar que é Hidrogênio
Também
Tão onipresente quanto Deus
Também
Tão logo se torna Hélio
Também
Nobre como deve ser

Um rajado
Na noite e no tempo
Vindo do infernal núcleo
Esgota contigo

No passado parecias eterna
No dia não parecias
Na noite perecias passageira

Humana luz
Resiste
Exaure

Orbitando no pretume onírico
É perfeita
Por esgotar-se
E brilhar o suficiente
Para parecer imortal

Autor : André Rosa

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Fim

Não houve um fim com grito ou dor,
só o silêncio a apagar o sabor.
Foi morrendo devagar, sem razão,
como quem larga devagar a mão.

Faltou carinho, vontade, calor,
aquilo que um dia chamámos amor.
Não foi traição, nem culpa, nem erro,
foi só o tempo a fechar o desterro.

Ficámos bem, e isso é raro,
não carrego raiva, nem olhar amargo.
Tu foste parte da minha estação,
mas não eras destino — só direção.

Hoje somos dois que já foram “nós”,
e mesmo que a memória ainda traga a voz,
a vida seguiu, tranquila e capaz…
porque o que ficou entre nós,
ficou tudo em paz.

Autor :Raquel Gonçalves
Imagem : Irina Dzhul

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Dia de Aguaceiros


Dia de aguaceiros. Sei que os jardins
não são os de Academos. Mas vou pelos passeios
entre a escrita das chuvadas no saibro e a discreta
disposição do Logos na murta dos canteiros.

Dia de amentilhos, gravetos, muros verdes:
as alamedas param e os cedros repousam
a terra tão porosa que facilmente encanta
- e eu cedo e levo ao chão a mão inteira, a medo.

Retiro-a manchada por um líquen de areia.
Aprendo por contacto que o Verbo nos irmana
baixando intelecções a corpos indefesos.
E um século à volta abre guarda-chuvas negros.

Autor : Carlos Poças Falcão
Imagem :Paolo Barzman

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

a gaiola

Agora que regressei
a este quarto para ficar,
não me contes que a vida
continua lá fora,
não me tragas
a luz de outros voos.

Basta-me a sombra dos ramos
fingindo árvores nas cortinas;
tal como a ti
a águia libertada à porta
da mais indolente taberna ou
os cães recusando-se a morrer
de traição - todos esses perdões
em papel que vais guardando.

Ao centro do jardim (lembras-te?)
havia um poço
onde deitavam as laranjas
caídas ao chão
para se desfazerem
num silêncio mais doce.

Deixa-me ser também
apenas o caroço deste mundo,
que apodrece à nossa volta
e na minha carne.

Autor : Inês Dias
 UM RAIO ARDENTE E paredes frias
Imagem : Igor Burba

terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Ausente

 

Stephem Carrol

Corpo suspenso
Da imaginação dolorosa

A distância
Permeando o desejo

Oceano
O impossível lençol entre nós dois

Autor ; Alberto de Lacerda
In: O Pajem Formidável dos indícios

domingo, 2 de novembro de 2025

Às vezes...


Ás vezes
Gosto de esculpir
Não em gesso
Nem em pedra
Apenas lavrar palavras
Que vou largando por aí.

Autor : BeatriceM 22-10-2022
Imagem : Brooke Shaden

sábado, 1 de novembro de 2025

Mímica




Maciej Kurkiewicz

Pode a noite doer
se as mãos tocarem a sua própria pureza
e houver um ponto negro ao centro

Quando no pulso
parece crescer uma pequena solidão
como se o espaço se afastasse e de repente
um véu cobrisse
todas as memórias futuras

Pode a noite tremer assim
para que os muros se abram ao meio

Para que a transparência dos gestos
publique essa mímica oculta
antiga intimidade

Autor : Vasco Gato
in IMO(Quasi,2003)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

o minuto certo do amor

 

Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor. Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam charros e putas e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade. Mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.

Queria de ti um minuto. Um minuto.

Autor : Filipa Leal

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

recado aos corvos

igor morski

Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incombustível
memória das labaredas.
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Autor : A.M.Pires Cabral