sábado, 30 de junho de 2018

Acordo Ortográfico


Gosto do teu rosto exacto,
com o cê bem desenhado,
mesmo quando não se vê,
para te pôr, como laço
nos cabelos, o circunflexo
em que nenhum traço há-de
sair, mesmo que um pacto
roube o pê nessa pose
de pura concepção.

Autor : Nuno Júdice

sexta-feira, 29 de junho de 2018

..

Pal Fried

A verdadeira coragem é ir atrás de seu sonho mesmo quando todos dizem que ele é impossível.

Autor : Cora Coralina

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Adolescente

 fine art prints of Mother Louise Nursing, 1899 by Mary Cassatt
sabes
 mãe
 não sei quem sou

 mas já não sou o menino
 de olhos abertos
 de espanto
 sentado no teu regaço

 cresci
 e quero ir sozinho
 descobrir esta cidade

rasgar meu próprio caminho
 na fogueira de um abraço

navegar
 por entre as margens
 dos rios da minha sede

 sentir
 no meu corpo aceso
 todo o sol da madrugada

 romper
 as portas da noite
 num gesto de ânsia e ternura

 quebrar
os muros do sonho
com a força desta espada

Autor: Vieira da Silva
In Marginal

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Depois de tudo, fica a lembrança dos lugares

cristina coral
Depois de tudo, fica a lembrança dos lugares e
dos seus nomes; dos quartos virados a poente
onde as imagens do rio nunca se repetem nas janelas
e todos os enredos são consentidos sobre as camas.
.
Ao fundo, havia um armário de madeira com espelho
onde as nossas roupas trocavam de perfume
para que os dias se vestissem sempre melhor.
E, sobre a cómoda, num espelho mais antigo,
a tarde reflectia algumas das alegrias da infância.
.
Não era o quarto de nenhum de nós,
mas a ele regressávamos sempre com a pressa
de quem anseia os cheiros quentes e antigos
da casa conhecida; como quem espera ser aguardado.
.
Pressenti, porém, que não era eu quem aguardavas:
uma noite, pedi-te mais um cobertor em vez de um abraço.

Autor : Maria do Rosário Pedreira
in Poesia Reunida

terça-feira, 26 de junho de 2018

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Autor : Carlos Drummond de Andrade

domingo, 24 de junho de 2018

Saudade

Tela de António Macedo

de nada me ajudou, partir e deixar a cama vazia
e arrastar esta saudade, de cidade em cidade
de país em país,
este peso em mim e em todas os lugares
que andei sem ti , e contigo, no pensamento
e os cheiros a me assaltarem as narinas desentupidas
e a chuva a cair em todos os cantos do mundo
e as marés a ensaiarem seu bailado nas areias
e eu a olhar, e a ver sem ver
a tua imagem em forma de melancolia
e a agarrar o vento que me trazia
saudades de ti.

Autor : BeatriceM 2012-06-10

sábado, 23 de junho de 2018

Versões do mundo


Mirella Santana

Se tiveres de escolher um reino
escolhe o relento
a noite tem a brancura do alabastro
ou mais extraordinária ainda

Ao que vem depois de ti
cede o instante
sem pronunciar
seu nome

Autor : José Tolentino Mendonça

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Diário


Brooke Shaden

A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.

Autor : Ana Salomé

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Se o tempo


Marcela Bolivar

Se o tempo
fosse
uma flor, o seu
perfume
seria
esta luz
escorrendo
pelas escarpas
do dia.

Autor : Albano Martins

quarta-feira, 20 de junho de 2018

...

laura iverson


Quando as coisas ficam ruins, é sinal de que as coisas boas estão por perto...
Autor: Cora Coralina

terça-feira, 19 de junho de 2018

O anel de vidro

Natália Drepina

Aquele pequenino anel que tu me deste,
— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou
Assim também o eterno amor que prometeste,
— Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, —
Aquele pequenino anel que tu me deste,
— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou
Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste

Autor : Manuel Bandeira

domingo, 17 de junho de 2018

Hoje

Cristina Fornarelli

Hoje já nem sei o que fazer do convite
Que não recebi
E acredito que o tenhas enviado

Nem me importa
Assim nem me preocupo
Quais os sapatos que teria de levar

Qualquer  um deles
Magoa-me os pés como um castigo
Que não tenho de suportar

Autor -  BeatriceM 2018-06-17


sábado, 16 de junho de 2018

As perguntas


Cristina Coral

Não tem rosto, o Deus dos perplexos. Nem voz.
Nem arrependimento. Nem a alegria dos alegres
ou o medo da escuridão. Não posso dizer-vos como
se encontram os seus caminhos, se o melro poisa

nas hortas junto do rio, ao adivinhar a tempestade.
Deus predador, o nosso, prudente, interdito,
que desagrada ao canto mais simples. As nossas
pegadas ficam no deserto, aguardam a passagem

como um fantasma que se desprende da chuva.
Esta luz é incerta, balança sobre as varandas, ameaça
os dias, converte ou desarma todas as palavras certas,

todos os olhos abertos. Não tem rosto, o Deus dos
perplexos, não caminha nos precipícios, não arde
como a urze fitando o céu, não o comove a morte.

Autor : Francisco José Viegas
(de O Puro e o Impuro, Quasi edições, 2003)

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Água - Memória

ezgi polat

Que súbita alegria me tortura
alegria tão bela e estranha
tão inquieta
tão densa de pressentimentos?
Que vento nos meus nervos
que temporal lá fora
que alegria tão pura, quase medo ao silêncio?

Pára a chuva nas árvores
pára a chuva nos gestos,
interiores contornos
divisíveis distâncias
ultrapassáveis gritos
que alegria no inverno,
que montanha esperada ou inesperado canto?

Autor : Maria Alberta Menéres.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

De Antemão

ezgi polat

Tocaram-me na cabeça com um dedo terrificamente
doce, Sopraram-me,
Eu era límpido pela boca dentro: límpido
engolfamento,
O sorvo do coração a cara
devorada,
O sangue nos lençóis tremia ainda:
metia medo,
Se um cometa pudesse ser chamado como um animal:
ou uma braçada de perfume
tão agudo
que entrasse pela carne: se fizesse unânime
na carne
como um clarão,
Um anel vivo num dedo que vai morrer:
tocando ainda
a cabeça o rítmico pavor
do nome,
O leite circulava dentro delas,
É assim que as mães se alumiam
e trazem para si o espaço todo
como
se dançassem,
São em si mesmas uma lenta
matéria ordenada, Ou uma
crispação: uma ressaca,
E quando me tocaram na cabeça com um dedo baptismal:
eu já tinha uma ferida
um nome,
E o meu nome mantinha as coisas do mundo
todas
levantadas

Autor : Herberto Helder