quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Tudo à volta se move


Olga Astratova

Tudo à volta se move.
É firme e seca a terra
e eu sinto que as águas me engolem.
Julguei-me o sonho
mas dele
não sou mais que a névoa.
O provável que afastas
com medo que arda.
A poeira pousada no vestido transparente
da solidão que persegues.
Baixo os braços
cansada
de ficar frente às luzes que acendes.
Uma a uma sopro-as.
A dor tacteia as paredes
mas eu sou
o escuro do quarto que a cega.
Enquanto o silêncio alucina ainda
com o gemido de outras noites
eu emerjo do fundo do poço
sem que os meus lábios beijem as águas.

Autor :Sónia M
http://soniagmicaelo.blogspot.pt/

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Se eu pudesse


Se eu pudesse
ter-te em vez dos versos,
ou ter um verso
em vez de ti,
ou ter os olhos
como os de um gato
para perscrutar a noite
onde isso se decide.

Autor : Pedro Mexia
In Avalanche, 2001.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Lembrar-te

Graça Loureiro

Lembrar-te
Num dia frio de Janeiro
Sentado a olhar o rio
E a aspirar sofregamente um cigarro
No declínio da tarde
Na cidade grande
Lembrar-te a sorrir
A sentir o calor das tuas mãos
Que em fuga eu acariciava
E de repente.  É Janeiro de outro ano
Noutra cidade que não a  tua
Que não  a minha
E sinto a lembrança
A reconfortar os dias que se formam
Nos trilhos do destino

Autor : BeaticeM

sábado, 14 de janeiro de 2017

Mãe

Leah Johnston
Mãe:
Por quem
os sinos
dobram
assim?

É por ti
ou por mim?

Autor : Albano Martins
in 'Antologia Poética'

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

O nome lírico


Esta manhã
hoje
é um nome

Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca

Uma palavra
palavra só
a ergue

Com um nome
amanhece
clareia

Não do sol
mas de quem
a nomeia

Autor : Fiama Hasse Pais Brandão
in líricas portuguesas



quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Poema

lovisa ringborg rotwand

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

Autor : António José Forte
 In Uma Faca nos Dentes

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A verdadeira mão

Natália Drepina

A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio acto de dar-se

O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita

O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende

E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta

Autor : Ana Hartherly
In O Pavão Negro(2003)

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Eu não voltarei

Diggie Vitt

Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.

Autor : Juan Ramón Jiménez

domingo, 8 de janeiro de 2017

...


Leah Johnston

eu era a estrela que te orientava,
e iluminava,
quando a luz rareava,
no nublado dos dias.


tu sabias…sabias...

BeatriceM

sábado, 7 de janeiro de 2017

Legenda

anka zhuravlva

Aproxima o teu coração Como quem sente
na legenda do presente
o fim duma história breve,
vou vivendo um sonho intacto
num pesadelo crescente
— uma luz fecunda e leve
nos olhos pardos dum gato.

Autor: Fernanda Botelho

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Primeira Palavra

anka zhuravlva
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo

Autor : Mia Couto,
in 'Raiz de Orvalho'

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Ajuda

dara scully
Porque o amor é simples,
Vale a pena colhê-lo.
Nasce em qualquer degredo,
Cria-se em qualquer chão.
Anda, não tenhas medo!
Não deixes sem amor o coração!

Autor : Miguel Torga
in 'Diário (1945)'

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Pai, dizem que ainda te chamo

lovisa ringborg
Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas
da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí

nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me

depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem

que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.

Autor : Maria do Rosário Pedreira
in 'Nenhum Nome Depois

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Lembro-me de cantar sem saber porquê

Diggie Vitt

Lembro-me de cantar sem saber porquê
de sonhar, de sorrir inocentemente, quase feliz...
Lembro-me de ti como nesses momentos
em que olhava o horizonte, curioso.

Lembro-me de como olha a criança as estrelas á noite
tentando dar-lhe nomes, tornando-as suas,
querendo voar para poder abraçá-las...
Lembro-me de correr, sentindo a brisa fresca
apenas porque naquele momento fazia sentido,
ali era quase feliz...
Lembro-me de ti como nesses momentos
e vou deambulando por entre fragmentos da memória,
quase feliz.

Lembro-me de cantar sem saber porquê,
somente cantava aquela musica...
Lembro-me de ti como nesses momentos
em que com os olhos tudo dizia, em silêncio.

Lembro-me como admirava aquele sentimento,
guardando-o como se guarda um tesouro,
protegendo-o quase como a um coração...
Lembro-me de quando o mundo parecia maior
e daquela força que me fazia avançar sem receios
fazendo dos sonhos apenas obstáculos.
Lembro-me de ti como nesses momentos
e sinto-te ao meu lado, sinto o teu abraço,
quase feliz.

E lembrando resta-me entao
pensar em ti quando nao te vejo
porque a quem gosta, só isso basta,
nesse momento em que sou quase feliz...
nesse momento em que sonho...

Autor : Tiago Oliveira 9/01/2012
http://wakeupmovement2009.blogspot.pt/

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

As Coordenadas Líricas

Diggie Vitt

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu

A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo
às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
— as minhas coordenadas.

Autor : Fernanda Botelho