quinta-feira, 23 de julho de 2009



- O barulho do mar e do vento. A montanha, a ideia da montanha impraticável. E depois a terra arenosa por ali fora. E a solidão. E sentir sobretudo que já não pode haver medo. Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si. E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão. Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa. Depois encosto a cara à terra profundíssima para escutar o seu húmido sussurro atravessando-a toda e passando por mim. E então poderei morrer."


Autor:Herberto Helder
excerto de Os Passos em Volta
IFoto:Szara Reneta

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Nunca se sabe

Nunca se sabe o que é para sempre, sobretudo nas coisas do amor. E era uma coisa do amor, isto tudo. São tão estranhas as coisas do amor que não se compreendem por inteiro. Tem de se estar sempre a fazer suposições. Nunca se sabe como e até que ponto a até quando. Esta obsessão chega para impedir a vida, o amor pode impedir o amor, amaldiçoá-lo como um espectro.


Autor:Pedro Paixão (Nos teus braços morreríamos)
Foto:kiki 123

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Formas


Há sempre uma madrugada
em que os candelabros de ouro enaltecem
as tuas formas,
a tua alquimia de pecado e volúpia,
há sempre,
no teu sorriso breve,
uma brisa que regressa do mar,
trazendo o lamento dos náufragos,
a sua sede irremediável.
Nestas horas de assassinada alegria
ergues os braços e uma súplica,
mas ninguém te ouve, ninguém te vê,
encerrada numa túnica de cores puras.


Autor:José Agostinho Baptista
Foto_ar-dj

domingo, 5 de julho de 2009

Escrevo-te a sentir tudo isto...


Escrevo-te a sentir tudo isto...
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos
nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos
sussurrados junto ao fogo e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfurica borboleta revelando-se
na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade
que a pouco e pouco
morde a sua imobilidade.....
-
...habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens , radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara.....
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado
de finos bagos de romã repara....
como o coração de papel amareleceu no esquecimento
de te amar.....


Autor :Al Berto
Foto;Aruan

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...
.
Não sabia que caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.
.
Assim tem sido sempre a minha vida, e
Assim quero que possa ser sempre --
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar.
.

Autor:Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
Foto:ciwak

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Canção Erótica


Alegria é este pássaro que voa
Da minha boca à tua.
É este beijo.
é ter-te nos meus braços toda nua.
Sentir-me vivo.
E morto de desejo.
Alegria é este orgasmo.
Esta loucura
De estar dentro de ti.
E assim ficar.
Como se andasse perdido e à procura
De possuir-te.
E possuir-te devagar...


.
Autor:Joaquim Pessoa
Foto;

sábado, 13 de junho de 2009

Digam que foi mentira

Digam que foi mentira, que não sou ninguém, que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
eu não vivi ali em tempo algum
.
Autor Ruy Belo
Foto: rabek

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Porque escondes a noite no teu ventre?


Porque escondes a noite no teu ventre?
Nesse país de sombra onde se calam as palavras.
Aí, no escuro lago onde estremece a flor da amendoeira
E onde vão morrer todos os cisnes.

Eu desvendo a tua dor, o teu mistério
De caminhares assim calada e triste,
Quando viajo em ti com as mãos nuas e o coração louco
No mais fundo de ti, onde só tu existes.

Oh, eu percorro as tuas coxas devagar
Dobrando-as lentamente contra o peito
E penetro em delírio a tua noite
Esporeando éguas no teu sangue.
De onde me chegam estas palavras?
.
Autor:Joaquim Pessoa
in Os Dias da Serpente Moraes Editores, 1981
Foto:meore

domingo, 31 de maio de 2009

nascemos todos com vontade de amar

Nascemos todos com vontade de amar. Ser amado é secundário. Prejudica o amor que muitas vezes o antecede. Um amor não pode pertencer a duas pessoas, por muito que o queiramos. Cada um tem o amor que tem, fora dele. É esse afastamento que nos magoa, que nos põe doidos, sempre à procura do eco que não vem. Os que vêm são bem-vindos, às vezes, mas não são os que queremos. Quando somos honestos, ou estamos apaixonados, é apenas um que se pretende.Tenho a certeza que não se pode ter o que se ama. Ser amado não corresponde jamais ao amor que temos, porque não nos pertence. Por isso escrevemos romances - porque ninguém acredita neles, excepto quem os escreve.Viver é outra coisa. Amar e ser amado distrai-nos irremediavelmente. O amor apouca-se e perde-se quando quando se dá aos dias e às pessoas. Traduz-se e deixa ser o que é. Só na solidão permanece...
.

Autor:Miguel Esteves Cardoso

Foto:netiee

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha. Chegaste comigo ao fundo aberto sob um céu marinho, sobre o qual se desenham as nuvens e as árvores. Estamos na aurícola do coração do mundo. O que perdemos ganhamo-lo na ondulação da terra. Tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar e é a felicidade da língua vegetal ou a cabeça leve que se inclina para o oriente. Ali tocamos um nó, uma sílaba verde, uma pedra de sangue e um harmonioso astro se eleva como uma espádua fulgurante enquanto um sopro fresco passa sobre as luzes e os lábios.


Autor :António Ramos Rosa
Foto:Mimikra

domingo, 24 de maio de 2009

os nós da escrita

Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.



Autor:Luís Miguel Nava
Foto:mastercrasch


sábado, 2 de maio de 2009

...Escrevo porque não te posso falar. Não estás. Não me escutas. Se
estivesses tudo era diferente. Pelo menos tentava não cometer os
mesmos erros. E se quisesses partir de novo eu queria ir contigo
desta vez. Porque da última vez que partiste nunca mais voltaste....
Nada sabes de mim...


Foto:Roko

sábado, 18 de abril de 2009

Teatro

Na selva dos meus órgãos, sobre a qual foi desde sempre a pele o firmamento, ao coração coube o papel de rei da criação. Ignoro de que peça é todo este meu corpo a encenação perversa, onde se vê o sangue rebentar contra os rochedos. Do inferno, aonde às vezes o sol vai buscar as chamas, sobre ele impediosamente jorram os projectores.

Autor: luís miguel nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Foto:Paulo Cesar http://www.paulocesar-eu.paulo/ cesar

domingo, 5 de abril de 2009

...Prometemos um ao outro, as coisas
impossíveis. O amor proibido. As palavras
infinitas. Os livros que nunca lemos. As mãos
que nunca demos, os beijos que nunca trocamos.
As carícias do olhar que agora
está vazio.
Prometemos! Prometemos o tudo
e temos o pouco. Demasiado pouco!
Tu não sabes e eu desisto outra vez. Cansado.
Os dias horríveis tentando parar o tempo em
cada milésimo de segundo que seja.Tu não sabes!
.

Foto:Carlos Vilela

sábado, 4 de abril de 2009

Quero que me abraces



Quero que me abraces,

antes que a tristeza envelheça no meu peito.

Com o tempo, habituei-me

à conivência das palavras

e a usar, com inocência, certos gestos.

A tua sombra é-me familiar.

Sou espectador do teu sorriso

tão perto da simplicidade.

Quero falar contigo, horas a fio.

Sem pretextos de fuga.

Sem palavras caladas.

Um silêncio definitivo ser-nos-ia fatal.

Mas, depois, partirei,

porque sei que há no meu sangue

uma embarcação possessa

do chamamento do mar, ou da solidão.

.

Autor:Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997