terça-feira, 30 de setembro de 2025

A tua asa


Roça-me também tu com tua asa – única parte
verdadeiramente palpável de ti.

Que não seja sempre a inoportuna
asa da morte, semelhante à dos morcegos,
a roçar-se por mim.

Naquelas noites de temporal desfeito
que nada alumia nem aquece,
nem sequer a memória, que costuma ser
o que temos de mais quente e luminoso –

- nessas noites desabridas,
se a tua asa me roçasse o rosto,
recebê-la-ia como um nu recebe uma manta;
como um viandante em noite de Inverno
a quem é oferecido um canto à lareira
e uma candeia
para esconjuro das trevas e do frio.

Roça-me com ela, por favor,
ao menos uma vez e numa noite dessas.

Autor: A.M.Pires Cabral
in “Resumo a poesia em 2011”, página 12

domingo, 28 de setembro de 2025

O remorso


Carregas um nó de sombras
na garganta do silêncio.

A tristeza alastra como hera,
devorando cada fresta da alma.

Nenhuma estação migra
com a força de apagar feridas.

Nenhuma prece alcança
as fendas que se abrem sem razão,
e te rasgam em silêncio.

Autor : BeatriceM 2025-09-28
Imagem :Andrea Kiss

sábado, 27 de setembro de 2025

Residência


Guardas as estações do sol e as harpas.
Os perfumados símbolos da terra cantam
no primeiro verão do olhar.
As mãos levam-te a vasos de margaridas brancas,
sinuosos e claros oceanos.
Sentas-te à mesa da tribo e repartes o pão.
Um homem que ama nas sombras o fulgor e as essências,
nunca chega tarde aos degraus da alegria, dizes,
o cheiro do vento e do trigo entre os dedos.

Não podes morrer contra o sonho contando as lágrimas,
a face reflectida nos espelhos da alma.

Nunca partas dessa casa onde cresce agora
a voz das crianças, os templos da sua inocência,
as mais bravas e fragrantes ervas do amor.
Queres, eu sei, esse mar, a breve cama dos pombos
quando se abrigam nos rumores.

Não há maior orfandade que chegar à ternura
sem palavras.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

...

Soli-Art

Te procuro
nas coisas boas

em nenhuma
encontro inteiro

em cada uma
te inauguro.

Autor : Alice Ruiz

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Palavras, actos

Albin Veselk

A ironia ensina a sabotar uma frase
Como se faz a um motor de automóvel:
Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres
No verbo ou numa letra do substantivo
A frase trágica torna-se divertida,
E a divertida, trágica.
Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,
Desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar
A linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo
Portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita
Aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida
Comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero
Envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.

Autor Gonçalo M. Tavares

domingo, 21 de setembro de 2025

Partitura


Analisa com atenção as letras
que a intimidade te verte
em notas mornas.

Descobre os segredos
na superfície dos dedos
e nessa fronteira sem limites,
compõe uma ária
que todos possam cantar

 Autor : BeatriceM 2025-09-21

sábado, 20 de setembro de 2025

Sempre

Mathieu Chatrain

sempre que uma praia se levanta
és sempre tu que me tocas
e sempre tu quem aceita o sorriso
é sempre o sol embrulhado em terra pura
e sempre pura a voz que a terra canta
porque se ouvires a água na pedra
a água que sempre nos meus lábios sabe a ti
se ouvires a água na pedra tens a lua
a manhã o cereal de espuma que não pára de crescer
nos lábios teus que a água dos meus conhece
como o sol procura o dia e sempre acha a noite
e é na noite que sempre te digo
que sempre te juro as mãos enormes
e levanto a praia que tu levantas
quando sempre acordamos
e na nossa nudez se esconde a noite
em que lábios nos lábios criámos o mar
.
Autor : © Vasco Gato

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Ainda


Ainda
Tenho flores por colher
O céu por alcançar
Caminhos por percorrer

Ainda
Tenho mágoas por curar
Noites por descobrir
Lágrimas por cristalizar

Ainda
Tenho desejo e arrepio
Sonhos a esvoaçar
E sou nascente e rio

Ainda
Tenho o tempo por iludir
O sol por tocar, o arco-íris
A chuva e o vento por abraçar.

Ainda
Não sei como suster o tempo
E tenho tantas flores
Por semear!

Autor :  Alice Queiroz

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Sem outro intuito


Sem outro intuito
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Autor : Luís Miguel Nava
in Vulcão I

domingo, 14 de setembro de 2025

Melancolia

Igor Burba


Há um clamor
na insensatez do mundo,
atestando a tranquilidade
que os olhos pedem,
pois as bocas estão cerradas
com o medo — desesperançado
e à beira de disparar.

 Autor : BeatriceM 2025-09-14

sábado, 13 de setembro de 2025

...

 

Por que pairas?
Por que insistes?
Por que pairas se deixaste
que te prendessem terrenas
falsas tranquilidades?
Por que negaste o que eras -
nuvem íntegra, real,
sobre as mentiras do mundo?
Às vezes cantas em tudo.
Mas é tão triste e tão tarde.
Meu amor, porque vieste?
Nunca tivera sabido
como se nasce e se morre
de repente ao mesmo tempo
para sempre, ó arrastada
humana deusa frustrada
água irmã da minha sede
luz de toda a claridade
que só em ti neste mundo
para mim era verdade.

Autor : Alberto de Lacerda
Autor : Carlos Alberto Portugal Correia de Lacerda
in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco Graça Moura, Quetzal Editores
Imagem : Martin Stranka

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

O Tempo

Johan Messely

O tempo tem aspectos misteriosos:
Um ano passa a toda a velocidade,
E um minuto, se estamos ansiosos
Parece, às vezes, uma eternidade.

Um dia ou é veloz ou pachorrento
-depende do que está a contecer-
O tempo de estudar, pode ser lento.
O tempo de brincar, passa a correr.

E aquela terrível arrelia
Que até te fez chorar, por ser tão má,
deixa passar o tempo. Por magia,
Quando olhamos para trás, já lá não está.

Autor : Rosa Lobato Faria

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Então...

 


Então me vens e me chega e me invades
e me tomas e me pedes e me perdes
e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos
e abres a boca para libertar novas histórias
e outra vez me completo assim, sem urgências,
e me concentro inteiro nas coisas que me contas,
e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim
enquanto me apunhalas com lenta delicadeza
deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida,
que nada devo esperar além dessa máscara colorida,
que me queres assim porque assim que és..."

Autor : Caio Fernando Abreu

domingo, 7 de setembro de 2025

Antes de tudo acabar




Antes de tudo acabar,
deixa-me escrever doutrinas antigas
que nunca escrevi.

Descerrar o cofre,
remexer o que lá subsiste
e que já esqueci.

Lançar fora
lembranças frias,
reacender outras, já esquecidas.

Abrir a janela,
libertar um abraço
enrolado no vento.

Deslaçar o cabelo...
e então, poderei partir
para o outro lado do caminho.

 Autor : BeatriceM 2025-09-07
Imagem : Ilya Kisaradov

sábado, 6 de setembro de 2025

Povoamento


 

No teu amor por mim, há uma rua que começa.
Nem árvores nem casas existiam nela,
apenas Tu.

E antes que tu tivesses palavras e tudo em mim fosse um coração para elas, Invento-te !

O céu azula-se sobre esta triste condição de te ter sem ter.

Recebo unicamente dos choupos onde cantam os impossíveis pássaros que anunciam uma nova primavera;

Tocam sinos e aqueles pássaros levantam voo com todos os seus cuidados

Ó meu amor nem minha mãe tinha assim um regaço como este dia tem …

Autor : Ruy Belo
Imagem : Jonas Hafner

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Lume


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.

Autor:Ana Salomé

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Manhã

 

É cedo, demasiado cedo, escutas
o clamor das horas,
o breve tempo, a longa margem
que assiste ao teu desaparecer.

Bebes café e estranhas o poder
de orvalho e cansaço
que há na manhã.

Autor : Luís Quintais
In : A Noite Imóvel

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Preparar a Solidão

Perceber que já se perdeu tudo o que um dia mais se amou,
fazer ordinariamente horas extraordinárias,
ir a diário ao ginásio, esgotar o corpo,
andar frequentemente de bicicleta,
regressar a casa pelo caminho mais longo,
prestar atenção ao que acontece dentro da copa das árvores,
não ter animais de estimação, nem mesmo plantas,
ter coragem para não recolher um cão abandonado,
nas tardes de sol visitar jardins, dar milho aos pombos,
ser amante de livros, de música e de cinema,
guardar longe da vista todas as fotografias,
dançar pela casa, a vontade não precisa de par,
evitar pensar no sentido da vida,
ter um não sei quê de ave migratória,
manter a casa limpa, mudar os lençóis, fazer a cama,
ter em casa chá, chocolate e livros de poesia,
peças de fruta, álcool e cigarros nenhuns,
ter cola, tesoura, agulha, linha, pregos,
o necessário para pequenas reparações,
ter uma caixa de primeiros socorros,
cozinhar em pequenas quantidades,
investir numa chaleira,
numa botija para água quente,
num congelador,
viajar sempre para países distantes,
não ter medo da chuva nem do choro,
não ligar a televisão só para ter luz no escuro.

Autor  : Raquel Serejo Martins, 
"Exercícios de preparação para a solidão", in Página do Facebook

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Sobre esta página


Há quem não leia para além do que vai escrito.
Tudo tem de ser literal: chão rua noite e casa,
cama mesa e roupa lavada. Nem silêncio nem grito,
consoante as penas que se transporta em cada asa.

Guarda o talento para ti, não mudes de página.
Há gente capaz de se negar à própria evidência
e de te acusar de mundos e reinos criados por álgida
imaginação, de asno com excesso de inteligência.

A nada e ninguém repliques. O segredo
só a ti pertence, tão único como tu. Lês
por dentro o que escreves, sozinho na noite
qual condenado às trevas do seu degredo.

Caminha sobre a página. Mudarás não o sentido
nem o ritmo nem a música nem a voz do poema,
e sim o verbo que te levará à vista do infinito.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Marie Meister