domingo, 7 de setembro de 2025

Antes de tudo acabar




Antes de tudo acabar,
deixa-me escrever doutrinas antigas
que nunca escrevi.

Descerrar o cofre,
remexer o que lá subsiste
e que já esqueci.

Lançar fora
lembranças frias,
reacender outras, já esquecidas.

Abrir a janela,
libertar um abraço
enrolado no vento.

Deslaçar o cabelo...
e então, poderei partir
para o outro lado do caminho.

 Autor : BeatriceM 2025-09-07
Imagem : Ilya Kisaradov

sábado, 6 de setembro de 2025

Povoamento


 

No teu amor por mim, há uma rua que começa.
Nem árvores nem casas existiam nela,
apenas Tu.

E antes que tu tivesses palavras e tudo em mim fosse um coração para elas, Invento-te !

O céu azula-se sobre esta triste condição de te ter sem ter.

Recebo unicamente dos choupos onde cantam os impossíveis pássaros que anunciam uma nova primavera;

Tocam sinos e aqueles pássaros levantam voo com todos os seus cuidados

Ó meu amor nem minha mãe tinha assim um regaço como este dia tem …

Autor : Ruy Belo
Imagem : Jonas Hafner

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Lume


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.

Autor:Ana Salomé

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Manhã

 

É cedo, demasiado cedo, escutas
o clamor das horas,
o breve tempo, a longa margem
que assiste ao teu desaparecer.

Bebes café e estranhas o poder
de orvalho e cansaço
que há na manhã.

Autor : Luís Quintais
In : A Noite Imóvel

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Preparar a Solidão

Perceber que já se perdeu tudo o que um dia mais se amou,
fazer ordinariamente horas extraordinárias,
ir a diário ao ginásio, esgotar o corpo,
andar frequentemente de bicicleta,
regressar a casa pelo caminho mais longo,
prestar atenção ao que acontece dentro da copa das árvores,
não ter animais de estimação, nem mesmo plantas,
ter coragem para não recolher um cão abandonado,
nas tardes de sol visitar jardins, dar milho aos pombos,
ser amante de livros, de música e de cinema,
guardar longe da vista todas as fotografias,
dançar pela casa, a vontade não precisa de par,
evitar pensar no sentido da vida,
ter um não sei quê de ave migratória,
manter a casa limpa, mudar os lençóis, fazer a cama,
ter em casa chá, chocolate e livros de poesia,
peças de fruta, álcool e cigarros nenhuns,
ter cola, tesoura, agulha, linha, pregos,
o necessário para pequenas reparações,
ter uma caixa de primeiros socorros,
cozinhar em pequenas quantidades,
investir numa chaleira,
numa botija para água quente,
num congelador,
viajar sempre para países distantes,
não ter medo da chuva nem do choro,
não ligar a televisão só para ter luz no escuro.

Autor  : Raquel Serejo Martins, 
"Exercícios de preparação para a solidão", in Página do Facebook

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Sobre esta página


Há quem não leia para além do que vai escrito.
Tudo tem de ser literal: chão rua noite e casa,
cama mesa e roupa lavada. Nem silêncio nem grito,
consoante as penas que se transporta em cada asa.

Guarda o talento para ti, não mudes de página.
Há gente capaz de se negar à própria evidência
e de te acusar de mundos e reinos criados por álgida
imaginação, de asno com excesso de inteligência.

A nada e ninguém repliques. O segredo
só a ti pertence, tão único como tu. Lês
por dentro o que escreves, sozinho na noite
qual condenado às trevas do seu degredo.

Caminha sobre a página. Mudarás não o sentido
nem o ritmo nem a música nem a voz do poema,
e sim o verbo que te levará à vista do infinito.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Marie Meister

domingo, 31 de agosto de 2025

Matéria de Afecto


acho que fui pluma
na tua mão —
vontade insensata
de me quereres inteira.

Em dias cálidos,
noites arrefecidas,
tardes escurecidas.

Acho que fui intimidade:
corpo saciado
de um tempo adiado.

Autor:BeatriceM 2025-08-31

sábado, 30 de agosto de 2025

Nas cidades de onde venho


Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direcções
nas pupilas das crianças.

Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, imprudentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
– para eles aquilo que apenas vêem!

E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos

Autor : Victor Oliveira Mateus
In “Pelo deserto as minhas mãos”
Imagem : Michael Zahornacky

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

o peso dos livros


Pensava que os livros não têm peso. Quero dizer, flutuam no entendimento.
Na memória. Ou melhor: equilibram-se porque não são gente.
Não têm noites, não têm insónias. Não têm sono lá dentro.

Pensava que os livros são menos complexos do que nós. Mesmo quando
não temos linha, quando não temos palavra. Mesmo quando
não conseguimos respirar. Quando pensei nisso,
tive uma vaga noção de título.

E um hálito branco a querer ser página.

Autor : Filipa Leal

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O céu

Oleg Oprisco


O céu
Assoam-se-me à alma,quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.

Autor :Luís Miguel Nava

domingo, 24 de agosto de 2025

Entre Linhas


não sei se é loucura
ou sanidade
esta ânsia de me fundir nos livros
que me completam.

sou parte da história,
sou a ausência da heroína,
perco-me nos enredos
onde me enleio,
me enrosco
e sonho —
sem saber ao certo
se está escrito,
se li
ou imaginei
as palavras com que teço
os acasos do meu fado.

Autor:BeatriceM 2025-08-24

sábado, 23 de agosto de 2025

O escritor

ele disse não sei por que escrevo o teu nome.
eu olhei para ele. eu disse o meu nome não
é tudo o que você pode escrever.

ele escrevia o meu nome num papel. ele sentava
numa cadeira e o luar era a luz de um candeeiro
sobre as palavras escritas.

ele disse eu te amo.

ele disse tenho medo de que um dia deixe de poder
escrever o teu nome. eu disse o meu nome não
é tudo o que você pode escrever.

ele escreveu o meu nome durante muitos anos.
e eu perguntei por que você continua escrevendo
o meu nome? ele olhou para mim. e perguntou
quem é você?

Autor:José Luis Peixoto

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

As Palavras


Acordei cedo, com o cantar dos pássaros
Que sobrevoavam a minha janela insistentemente
- Já vou! Disse...
Penteei os cabelos desgrenhados do sonho na noite
Assomei-me ao parapeito e dei-lhes de beber nas minhas mãos.

Os raios de sol aqueceram o meu corpo franzino
A aragem matinal fez-me uma carícia
Toquei as cores do dia, com os meus dedos.

Fechei a janela, guardei os sonhos numa caixinha
Estavam felizes, prometeram voltar ao cair da noite...
Tomei um duche perfumado e saí, nas asas dos pássaros.


Madrugada de Cecília Vilas Boas
in “O Eco do Silêncio”
Imagem : marcin laskarzewski

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
   está fechado:
   "não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

    O poema, senhores,
    não fede
    nem cheira

Autor : Ferreira Gullar
 in 'Antologia Poética'

domingo, 17 de agosto de 2025

Sopros


É verão.
Poléns chegam-me ao corpo,
flores desabrocham,
e eu preciso colorir a fantasia —
transformar-me em flor,
talvez uma papoila do campo.

Autor:BeatriceM 2025-08-17
Imagem : Andrea Kiss



sábado, 16 de agosto de 2025

Mordo a Terra


Mordo a terra.
A terra
tem um gosto
a espanto,
tem um gosto
a vida,
tem um gosto
a suor,
tem um gosto
a estrume,
tem um gosto
a sol.

Autor : Armindo Rodrigues
Poema do livro, “Rio sem fim (XLV)”
Imagem : Nicole Burton

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Contigo sinto ‘nós’

Contigo sinto ‘nós’
e não sei o que possa querer dizer

‘Nós’ é aqui
disso tenho a certeza

Autor: Rosa Alice Branco

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Completas

Ildiko Neer

A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Autor  : Manuel António Pina
in “Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância”

domingo, 10 de agosto de 2025

Desvios

Sanna Lee

Ando encoberta
num jogo de faz de conta
que me seduz,
que me inebria —
e, em completo desvairo,
escondo-me de mim.

Autor:BeatriceM 2025-08-10

sábado, 9 de agosto de 2025

Tu choravas

Katia Chausheva

Tu choravas e eu ia apagando
com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas
– riscos na areia mole e quente do teu rosto.
Choravas como quem se procura.
E eu descobria mundos, inventava nomes,
enquanto ia espremendo com as mãos
o meu sangue todo no teu sangue.
Não sei se o mundo existia e nós
existiamos realmente.
Sei que tudo estava suspenso,
esperando não sei que grave acontecimento,
e que milhares de insectos paravam e
zumbiam nos meus sentidos.
Só a minha boca era uma abelha inquieta
percorrendo e picando o teu corpo de beijos.
Depois só dei pela manhã,
a manhã atrevida,
entrando devagar, muito devagar e
acordando-me.
Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.

Autor : Albano Martins

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Vou ter saudades


Sanya Khomenko


Vou ter saudades do teu olhar,
escuro, intenso, difícil de parar.
Do jeito calado que diz sem falar,
e me fazia inteira só de te escutar.

Vou ter saudades dos beijos que davas,
da pressa nos lábios, das pausas bravas.
Do sabor que ficava depois de nós,
do silêncio quente que falava por vós.

Vou ter saudades do teu italiano,
dito tão baixo, tão puro, tão plano.
Das frases soltas, ditas devagar,
como quem ama sem se entregar.

Vou ter saudades dos brancos no cabelo,
faziam-te homem, sem qualquer apelo.
Mostravam histórias que nunca contaste,
e um certo encanto que nunca explicaste.

Vou ter saudades do que não ficou,
do toque, do riso, de tudo o que sou.
E mesmo sem teres ficado até ao fim,
levaste contigo o melhor de mim.

Autor : Raquel Gonçalves

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O mundo todo

 

Vitaly Sokolovsky

vou buscar-te ao fim da tarde,
porque a noite só escurece contigo ao
meu lado, porque a noite aprende por ti
o caminho aberto das estrelas

vou buscar-te ao fim da tarde,
e verás como preparei a casa, como
escolhi a música, como, enfim, espalhei
os objectos mais impressionados contigo,
os que ganharam vida por se interporem
na espessura estreita que vai do meu
ao teu coração

e não mais te devolvo, correndo todos os
riscos de não amanhecer nunca
numa loucura propositada por ti

não mais te devolvo,
ocuparás o mundo debaixo e sobre mim,
e não haverá mais mundo sem que seja assim.

Autor : valter hugo mãe
 in Contabilidade

domingo, 3 de agosto de 2025

Partida


Em memória da M.S.F
.

Procuro-te pelas ruas da cidade,
uma nesga da tua figura.

Caminho com o olhar apressado
e os passos em desordem.

Quero ver um gesto, um movimento.
Respiro... com ansiedade.

E sei: nunca mais estarás —
nem em passos,nem em presença.

A tua viagem foi de bilhete só de ida.
Não há volta.

Partiste entre as paredes quentes de um verão
que não se anunciou.

Que a paz te receba
em jeito de anjo-da-guarda.

Autor:BeatriceM 2025-08-03

sábado, 2 de agosto de 2025

Nunca Envelhecerás

Ludmila Yilmaz


A tua cabeleira 
é já grisalha ou mesmo branca? 
Para mim é toda loira 
e circundada de estrelas. 
Sobre ela 
o tempo não poisou
o inverno dos anos
que se escoam maldosos
insinuando rugas, fios brancos... 

Ao teu corpo colou-se 
o vestido de seda, 
como segunda pele; 
entre os seios pequenos 
viceja perene 
um raminho de cravos... 

Pétalas esguias 
emolduram-te os dedos... 
E revoadas de aves 
traçam ao teu redor 
volutas de primavera. 

Nunca envelhecerás na minha lembrança!... 

Autor : Saúl Dias,
 in "Sangue"

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Cerimónia Funesta


O corpo não responde
às vozes de comando,
como um cão estropiado
já desdenha os apelos
os antigos convites
às funestas moradas,
esqueceu-se do ponto
vai olvidando senhas
os códigos das grutas
acumulando lixos
as servidões austeras
diluem-se num canto
o corpo não atende chamadas
não estremece ao ruído da chave
não suporta
qualquer intromissão
secou num aterro,
os restos à vista
a memória escava
da lembrança os rastos
avidamente suga
de tal fausto os ossos,
de tão vitais cerimónias
nos tão secretos barcos
mesmo o pouco que resta
ainda se mastiga.

Autor : Fátima Maldonado

quinta-feira, 31 de julho de 2025

A Voz

 

Adrian Borda


Ah, louvar a voz
de Deus,
se Deus cantasse,
se a sua divina voz
existisse
antes de estar
no coração dos homens,
se Deus ousasse
ou tivesse estado
entre nós,
antes de nós,
entre um murmúrio
e a neve,
entre o sol e a voz.

Autor : António Mega Ferreira
In- O Tempo que nos cabe

domingo, 27 de julho de 2025

O jogo da sedução

 


Talvez não fosse jogo nenhum,
mas apenas um flagrante
que tu não ousaste —
ou tiveste medo — de jogar.

Que importa isso agora,
se o tempo passou
e o jogo terminou?

Xeque-mate.

Autor:BeatriceM 2025-07-26
Imagem : Masha Raymers

sábado, 26 de julho de 2025

Pureza



Vem toda nua
ou, se o não consentir o teu pudor,
vestida de vermelho.

Teus tules brancos,
o azul, que desmaia,
de tuas sedas finas,
guarda-os p’ra outros dias.

P’ra quando, Amor!, teu ventre, já redondo,
merecer a pureza do azul...

Autor : Sebastião da Gama
in 'Cabo da Boa Esperança'

sexta-feira, 25 de julho de 2025

O amor

Svetlana Shalygina

É difícil para os indecisos.
É assustador para os medrosos.
Avassalador para os apaixonados!
Mas, os vencedores no amor são os
fortes.
Os que sabem o que querem e querem o que têm!
Sonhar um sonho a dois,
e nunca desistir da busca de ser feliz,
é para poucos!!

Autor : Cecília Meireles

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Os Leitores


Não creio que haja olhos tão evidentes
nem rostos mais tranquilos.
Ante o franzido do poema ou o torso
rebuscado de uma prosa,
também não existirá um tão devoluto
coração como o dos leitores. Se não os
amamos é porque os não conhecemos.
Ou serão eles talvez o inverso do amor
pelo conhecimento amargo dos livros.

Seres assim professam a bondade
de existirem lendo-nos sentados ao sol
para cá e para lá de chapéu na cabeça,
tão cedo ligados ao chão da escrita
como ao embalo do sono numa rede.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Katharina Jung

domingo, 20 de julho de 2025

o mar onde te espero


o calor e a humidade
colam-se à pele morena,
é tarde, e há um desejo bruto:
ir à praia,
agora, quando está vazia.

avanço com pressa,
quase com raiva,
mergulho sem pensar
e sonho:
um dia encontro-te
sentado,
à minha espera.

Autor:BeatriceM 2025-07-19
Imagem : Natalie Karpushenko

sábado, 19 de julho de 2025

Recado


ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço
.
Al Berto, Horto de Incêndio
Foto:Lady33

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Angústia


Ensaiamos os dias em trapézios
instáveis. Na superfície movediça
de construções humanas em suspensão.
Segurando na fragilidade do equilíbrio
o prumo da justiça.

Sempre que caímos, por mais que tentemos
evitar a vertigem da ordem, todos os factos
se perdem na dispersão dos elementos.

Autor : Virgínia do Carmo 
Imagem : Ravshaniya

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Cansaço do Canto


As gentes no mercado os locais na praça
os irmãos de guerra pedem-me poesia dizem
se és poeta deves ter em ti poesia.

Mas isso é tão ilógico quanto dizer de alguém
que se é médico deve ter em si humanidade
ou se bate-chapas amor pela folha-de-flandres.

Perdoai, amigos, não sou nenhum animador de rua
nenhum entretém de ocasião nenhum rigoletto –
ponderai se o vosso negócio não será antes rosas
e eu providenciarei os espinhos.

Conjurais-me por beleza. Pois passai ao largo.
Que ideia tão disparatada
que um poeta cante a paixão e por pintassilgue
levando ao chilique peitos arfantes
por cardaços torturados. Estais enganados.

A lua ela mesma pode inspirar
tanto o romântico como o assassino (esse romântico)
e uma florista merca tanto o decesso como o enlace.

Oh pelos cardos me comovo – evitai-me! – e pintassilgo sim
eu canto o cansaço do canto.

Autor : Daniel Jonas

quarta-feira, 16 de julho de 2025

No meu olhar

Kylli Sparre

No meu olhar, voam pássaros inventados
Contos lendários, de príncipes e princesas
Centelhas de ventos sobranceiros
Violetas que perfumam o meu travesseiro.

Vejo névoas que encobrem castelos
Manhãs de bruma em dias soalheiros
Ondas oceânicas, que rebentam nas estrelas
Tudo cabe ali, na fantasia do meu olhar...

Nos meus sonhos perco-me em melancolia
Ainda lembro as brisas aladas do fim da tarde
E as as magnólias do meu jardim...
Onde estão as magnólias do meu jardim?!

Autor : Cecília Vilas Boas
in o Eco do Silêncio (Esfera do Caos,2012

terça-feira, 15 de julho de 2025

Conserto a palavra

Natália Drepina
.
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio 
Restauro-a 
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro 
Ilumino-a 

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa 
Reunida numa forma comparada à lâmpada 
A um zumbido calado momentaneamente em exame 

Ela não se come como as palavras inteiras 
Mas devora-se a si mesma e restauro-a 
A partir do vómito 
Volto devagar a colocá-la na fome 

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza 
Como um homem nadando para trás 
E sou uma energia para ela 

E ilumino-a 

Autor : Daniel Faria
 in "Homens que São como Lugares Mal Situados"