quarta-feira, 31 de julho de 2024

Uma vez

Ama-se uma vez só. Mais de um amor
de nada serve e nada o justifica.
Um só amor absolve, santifica.
Quem ama uma só vez ama melhor.

Qualquer pessoa, seja lá quem for,
se a uma outra pessoa se dedica,
só com essa ternura será rica
e qualquer outra julgará pior...

Há dois amores? Qual é o verdadeiro?
Se há segundo, que é feito do primeiro?
Esta contradição quem foi que fez?

Quem ama assim julga que amou;
mas pode acreditar que se enganou
ou da primeira ou da segunda vez?

Autor : Virgínia Vitorino
Imagem :Andrea Kiss

terça-feira, 30 de julho de 2024

Se quiseres que eu me perca


Se quiseres que eu me perca,
buscarei outra ilha.

Esperarei a sombra diante dos olhos,
o milhafre na ravina de crisântemos.

Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera,
acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.

Não te esqueças,
aprendi um dia como deus nos traz um sono
leve que nos cega.

Autor : Rui Coias
Imagem : MArtynas Milkevicius

domingo, 28 de julho de 2024

O sorriso


o sorriso que trago sempre no meu rosto,
é uma protecção para que as lágrimas,
não o consigam derrotar.

Autor : BeatriceM 2024-07-27
Imagem :Viktoria Haack

sábado, 27 de julho de 2024

...


Não digas
beijo, diz a boca. Não
digas rio, diz a fonte. Diz
apenas.

Autor : Albano Martins
Palinódias e Palimpsestos Editorial Campo das Letras, Porto 2006
Imagem : Michal Zahornacky

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Preciso que um barco atravesse o mar

 

Preciso que um barco atravesse o mar
lá longe
para sair dessa cadeira
para esquecer esse computador
e ter olhos de sal
boca de peixe
e o vento frio batendo nas escamas.

Preciso que uma proa atravesse a carne
cá dentro
para andar sobre as águas
deitar nas ilhas e olhar de longe esse prédio
essa sala
essa mulher sentada diante do computador
que bebe a branca luz electrónica
e pensa no mar.

Autor : Marina Colasanti

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A Casa


eu conhecia a distância entre as paredes. caminhei muitas
vezes pelo corredor. a sala: o sofá grande, a janela fechada
para a rua, o quadro bonito e antigo: a sala: estas palavras e
este verso podiam ser o corredor se as palavras fossem
a tinta nas paredes: a cozinha: a mãe a contar-me
histórias, a mesa, a água que lavava os talheres, o lume do
fogão. a cozinha era onde estávamos felizes.

quero que a casa fique desenhada:

quarto, escada , despensa, sala,

casa de banho, corredor corredor,

cozinha cozinha, escritório.

depois, subia as escadas:

despensa, quarto, quarto,

despensa, corredor, casa de banho,

despensa, escadas, quarto.

depois, descia as escadas.

eu, na cozinha, chamava a minha mãe. a minha voz: mãe.
a minha mãe respondia-me: estou aqui. e estava num dos
quartos de cima. eu subia as escadas para a encontrar.
de manhã, eu acordava e descia as escadas.

sem que eu soubesse, os anos passavam na casa. sem que eu
soubesse, a minha mãe e o meu pai envelheciam. a casa era
toda de claridade e eu não sabia que iria envelhecer assim que
saísse de casa.

havia janelas e havia portas. eu subia para cima de cadeiras
para abrir as janelas. da janela do meu quarto, via o mundo.
sei hoje que poderia ter vivido sem mais mundo do que esse.

sei hoje que transformei o mundo todo nessa casa. chamo a minha
mãe. está num dos quartos de cima. está muito longe. chamo o meu
pai. está muito longe.

Autor : José Luís Peixoto

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Silêncio desnudado em sol sustenido

 

Uma janela que se abre
em pétalas de Sol

embala o amanhecer insone
da ternura.

E os sonhos florescem nas mimosas.

E as mãos moram em versos
e em sorrisos.

e o meu olhar de gaivota em revoada
canta o nosso silêncio desnudado.

Autor : Sandra Costa
Imagem : Karen Hollingsworth

terça-feira, 23 de julho de 2024

Este Mar

Este mar que me entra pela janela é afinal um ruído de carros
Ao começar a Primavera
- Isto é fácil de dizer,
O difícil é responder ao corpo que quer voar.
O dia entra pela casa como a mão na luva,
Quente e cheio, exatamente como aquilo
Que já vai enchendo os frutos,
E o meu corpo não sabe
Que assim vai rubricando a sua morte.

Autor : Manuel Resende
In Poesia Reunida
Imagem : Eric Rubens

domingo, 21 de julho de 2024

encantamento

 

como o rio que corre freneticamente
procurando desesperado o ajuntamento com a foz
a minha mão navega no calor do teu corpo
constituído em voluptuosidade.

Autor : BeatriceM 2024-07-20

sábado, 20 de julho de 2024

Princípio do Dia


No quarto o sonho
abandona o sono da criança,

ao espelho o rosto e uma imagem
jogam às escondidas,

no escritório a esferográfica
despede-se da página,

na cozinha a mesa
em expectativa feliz,

na sala os retratos familiares
ignoram o relógio de parede,

na varanda a cadeira
onde se senta o sol,

na rua a sombra que
arrasta a cidade.

Autor : Jorge Gomes Miranda
In A Última Pedra
Imagem :Caroline Margonois

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Como


Como este beijo,
é vasto e profundo
o oceano.

E alheio ao mundo.

Autor : Isabel Solano

terça-feira, 16 de julho de 2024

Balas


A arma do Poeta

Eu nunca
Fui soldado
Nunca usei
Farda
Mas usei
A arma do poeta
A arma do verso

Eles disparam
Balas
Eu "disparo"
Versos

Não carrego
No gatilho
Mas empunho
A pena!

Autor : Delmar Maia Gonçalves

domingo, 14 de julho de 2024

hoje


senti o riso das aves
que voavam, em bando
felizes
e eu sorri no sorriso que de ti recebi.

Autor : BeatriceM 2016-07-10

sábado, 13 de julho de 2024

Pedras


Pedras.Reconheço-me nas pedras.
Nuvens violentamente negras e pedras
Amontoadas de um castelo que ruiu.

O sol fundiu-se, a cidade está afónica.
O calor dos passos acesos
Alenta este silêncio de vão de escada.
.
Musica longínqua, remota.
Um bêbado cambaleante fermenta na voz:
«Já não temos tempo…»
.
Calo-me
À luz implacável do tacto frio da ausência.
Calam-se as palavras,
Seca a tinta da caneta,

É o grito do caos.

E assim perdemos tudo…

Autor:Gonçalo Nuno Martins
In:Nada em 54 vezes Pág.52
Foto:Oscar Keserci

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Se és meu amigo

Se és meu amigo
oferece-me um barco

e deixa-me no meio do mar
sozinha

Se gostas de mim
inventa para hoje
uma ilha

e deixa-me nua
na areia

Apenas o corpo das dunas
apenas a ansiedade dos juncos
apenas a pressentida viagem dos peixes

Apenas a alta sombra fresca
dos pássaros
passando

Autor ;Teresa Rita Lopes

quinta-feira, 11 de julho de 2024

O Destino

 

Não tive a má intenção de te prender
à minha vida. A música, o álcool,
todo o ouropel da noite, eu só quis
sossegar por algum tempo a dúvida

que me castigava, antes que a manhã
chegasse e a aranha do remorso
descesse pelo seu alimento à mesa
do pequeno-almoço. Batemos

à mesma porta e chamaste destino
ao acaso. Zelava por nós, entre
as eléctricas estrelas, o pequeno deus
do amor? Era o que trazia ao peito

a divisa da derrota universal? Como vês,
foi sempre outra, e inútil, a minha
fé - mas perdoa, se puderes, o pouco
que soube fazer pela solidão dos dois.

Autor : Rui Pires Cabral
Imagem : Anthony Garcia

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Se

 

Se eu tivesse um carro
havia de conhecer
toda a terra.

Se eu tivesse um barco
havia de conhecer
todo o mar.

Se eu tivesse um avião
havia de conhecer
todo o céu.

Tens duas pernas
e ainda não conheces
a gente da tua rua.

Autor : Luísa Dacosta
Imagem : Omar Ortiz

terça-feira, 9 de julho de 2024

Nunca são as coisas mais simples que aparecem

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.
.
Autor :Nuno Judice
Foto:Sitriel

domingo, 7 de julho de 2024

A partilha da noite

E o sono é despertado
No desejo da noite alvoraçada
Em timbres de ternura e partilha

Os corpos não tem fronteiras
Apenas fogo em combustão
Nos secretos gestos inimitáveis

Deixa que o ensejo
Nos leve a flutuar no Éden
Com que inventamos a nossa noite

Autor : BeatriceM 2024-06-30
imagem :Tina Sosna

sábado, 6 de julho de 2024

Suavidade


Borboleta voa
No estio, sobre o rio.
Tão gentil, tão boa!

Autor : Artur Eduardo Benevides

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Como quem pede um coração

Nos dias tristes não se fala de aves.
Liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.

Nos dias tristes é Inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento e diz-se
- bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso.

Nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala connosco.


Filipa Leal
Imagem : Sanna Lee

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Não há tempo

Não há tempo
há horas

Não há um relógio
hábitos que
me habitam

O poema dói
o ponteiro corta
a hora que queima
a morte simula

respira
para não me distrair

Autor : Fernando Lemos,
 in 'A única real tradição viva - antologia da poesia surrealista portuguesa'

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Se

 

se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra

eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto

ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio

daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se cruzasse...

Autor : Alice Ruiz

segunda-feira, 1 de julho de 2024

O barco vai de saída

 

Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias
Fausto, nome artístico
26 de Novembro de 1948 (Oceano Atlântico, registado em Vila Franca das Naves)
01 de Julho de 2024Lisboa


O barco vai de saída
Adeus ó cais de alfama
Se agora vou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
Pra lá da loucura
Pra lá do Equador
Ah! mas que ingrata ventura bem me posso queixar
Da pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida
Sem contar essa história escondida
Por servir de criado a essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado, foi pecado
E foi pecado sim senhor
Que a vida boa era a de Lisboa
Gingão de roda batida
Corsário sem cruzadod
Ao som do baile mandado
Em terras de pimenta e maravilha
Com sonhos de prata e fantasia
Com sonhos da cor do arco-íris
Desvairas se os vires
Desvairas magia
Já tenho a vela enfunada
Marrano sem vergonha
Judeu sem coisa nem fronha
Vou de viagem ai que largada
Só vejo cores ai que alegria
Só vejo piratas e tesouros
São pratas são ouros
São noites são dias
Vou no espantoso trono das águas
Vou no tremendo assopro dos ventos
Vou por cima dos meus pensamentos
Arrepia, arrepia
E arrepia sim senhor
Que a vida boa era a de Lisboa
O mar das águas ardendo
O delírio dos céus
A fúria do barlavento
Arreia a vela e vai marujo ao leme
Vira o barco e cai marujo ao mar
Vira o barco na curva da morte
Olha a minha sorte
Olha o meu azar
E depois do barco virado
Grandes urros e gritos
Na salvação dos aflitos
Esfola, mata, agarra
Ai quem me ajuda
Reza, implora, escapa
Ai que pagode
Reza tremem heróis e eunucos
São mouros são turcos
São mouros acode
Aquilo é uma tempestade medonha
Aquilo vai pra lá do que é eterno
Aquilo era o retrato do inferno
Vai ao fundo, vai ao fundo
E vai ao fundo sim senhor
Que a vida boa era a de Lisboa
Que a vida boa era a de Lisboa