domingo, 29 de junho de 2025

Testamento


deixo-te o sentimento puro e nu
com que a noite ainda me despe
não deixes que se separe de ti
guarda-o como se eu fosse
um anjo que partiu em dia hostil
e voltou à terra
para te proteger.

Autor:BeatriceM 2025-06-28

sábado, 28 de junho de 2025

E se...

 


E se...

       E se em todos os sonhos eu te busco,   

   eu  te encontro e eu te perco

       E se em todas estradas tu me buscas, tu me encontras e

   tu me perdes

       É que em todas as estradas que eu te busco, que tu me

   encontras, que eu te perco e que tu me perdes. "


Autor - Armindo Lima de Carvalho
- In Antologia do Amor - Tomo II pág. 139
Edições Chiado Editora
Imagem : Vicent Croce

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Não há lugares seguros


Não estamos a salvo, ainda.
Nem dos desfazeres do mundo,
nem dos atrasos da paciência.
Não há lugares seguros onde guardar
equívocos. Nem âncoras que bastem
ao arrasto da solidão.

Não estamos ainda em terra. Não há
farol nem costa. E somos frágeis demais
para tanto mar. Para tanto abismo.
Para tanto.

Não estamos a salvo, ainda.
Nem das coisas inevitáveis.
Nem das coisas sérias e óbvias.

Não há lugares seguros neste mundo.

Autor : Virgínia do Carmo
Imagem : Brooke Shaden

terça-feira, 24 de junho de 2025

Sempre dançaram

 

Sempre dançaram. Mataram. Ergueram
Pedra sobre pedra o seu desejo, o seu espanto.
Tinham de mudar o curso desses rios
tinham de suar. O sonho em ressaca
varria-lhes a vida. Não paravam.

As palavras eram o mais árduo
ofício de inventar. Julgavam que sabiam
com palavras. Os céus lentamente evoluíam
havia sempre a noite e sempre o dia.
nunca suspeitaram que morriam.


Autor: Carlos Poças Falcão
arte nenhuma poesia 1987-2012

domingo, 22 de junho de 2025

Sem abrigo

 


já não procuro abrigo
durmo por aí, ao relento
de um sonho sonhado

não tenho mais as palavras
que dizias com conforto
hoje, apenas uma mortalha.

Autor:BeatriceM 2025-06-21
Imagem : TJ-Drrysdale

sábado, 21 de junho de 2025

Postal

Saul Landell

Chovem pais e filhos sobre os campos,
terrenos de árvores húmidas, outono.
Os pais tentam sempre proteger os filhos,
essa é a natureza que corre nas árvores,
essa é a lei e esse é o sentido. É outono
e não poderia ser outra estação, começou
o frio e a fome, olho a força dos campos
pela janela submersa deste último outono
e compreendo por fim a minha idade:
chovem pais e filhos de mãos dadas.
Lá longe, sou pai. Lá longe, sou filho.

Autor : José Luís Peixoto
In Gaveta de Papéis

sexta-feira, 20 de junho de 2025

AS RAÍZES DO VOO


São as cores?
Ou declarar-me assim a esta árvore?
Num sobressalto, desassossego
lento – as colmeias de ramos e de folhas,
o corpo em curvas densas,
as raízes,
e, delicadamente, o coração

Apaixonar-me e outra vez,
e agora por um tempo de nervura
acesa, o fogo – e sem palavra que chegasse
para habitar o mundo:
são as cores, dir-lhe-ia,
ou os meus olhos?

E se faltar olhar, ouvido, cheiro, mãos,
ver-te sem ver, sentir-te sem sentir:
neste musgo e por dentro
poder perder-me, fingir-me distraída
pelo puro prazer de me fingir,
sem sossego nenhum
– aprender a voar –
pelo desassossego de um dedo
preso à terra

Mas se as asas faltarem,
serão sempre as cores,
uma leve impressão de nervos, digital,
de qualquer coisa
Há-de ser isto assim:
luz para além de azul,
paz muito além do verde a respirar
– ou eu, igual ao sol,
comovendo-me em ar e
por raízes

Autor : Ana Luísa Amaral

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O que é um romance

Um romance é aquilo que o autor quiser que seja. O Herberto Helder tem razão quando diz que está tudo misturado: não se sabe quando é que a poesia não dá origem a um romance, quando é que um ensaio não é um romance, quando é que no interior de um ensaio não aparece um poema… Não vejo por que é que essas coisas hão-de ser catalogadas. Há páginas de grandes romances que são grandes páginas de poesia. Bom, mas isto é mais um pressentimento que uma certeza, que o início de uma teoria… É uma interrogação. O meu problema é que sempre li mais prosa que poesia. Na verdade, a poesia aborrece-me mais. Não é bem isso… é no sentido de que ocupa um espaço muito menor nas minhas leituras. A poesia é assim: abro um livro, leio este poema, leio aquele, depois arrumo, um dia volto…


Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)"

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Intocável

fiz da pele uma couraça
um escudo uma armadura
um casco de tartaruga

agora ninguém me pega
se pegar não me belisca
se beliscar eu nem sinto

Autor : Líria Porto

terça-feira, 17 de junho de 2025

A pele ia imitando o céu como podia

cristophe gilbert

A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.

Autor : Luís Miguel Nava

domingo, 15 de junho de 2025

O Mar

eu sei que existes
ainda
do outro lado do mar

que também é um pouco meu,
porque só é teu por inteiro
quando o dia vem

eu sei que ainda, na leveza
da tarde, depois do labor,
tu olhas o mar com o meu olhar

no outro lado
e eu, deste lado,
em horas vagas também

eu sei que existes
e tu também sabes
que ainda nos separa

o mar.

Autor:BeatriceM 2025-06-14
Imagem Lizzy

sábado, 14 de junho de 2025

Na Escuridão

 

na escuridão o poema não dói tanto
a luz machuca o poema
provoca uma dor de faca afiada
e o sangue não estanca nunca

na escuridão as palavras parecem mais calmas
mesmo na dor são felizes
como aquele cego que tocava cavaquinho na praia
compunha marchinhas de carnaval
e mesmo sem poder ver a folia
enxergava melhor do que todos nós

Autor : Júlio Saraiva

sexta-feira, 13 de junho de 2025

As vidas que nos habitam


As vidas que nos habitam
Caminho pelo lado da rebentação das ondas ―
o litoral guarda segredo dos meus passos entre
as redes de sal trazidas pelos barcos
e o labirinto das algas ainda agora oferecidas

à praia. Sinto-me à mercê das falésias a riscar
o teu nome na areia; e é como se lentamente
pronunciasse um chamamento triste a que ninguém
acode. Fez-se tarde para os lamentos das sereias:

agora as marés dobam novelos de espuma à roda
dos meus pés, as águas já não transportam
a minha voz, a perder-se sobre as dunas
que os ventos vão desbastando devagar

ao cair da noite. Tenho sempre medo que não voltes.

Autor : Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Deixaste sombras em todo o caminho


Deixaste sombras em todo o caminho
levaste toda a luz
nas tuas mãos
e nos teus pés
era ainda tão cedo
na sombra fiquei homem
num corpo de criança.

Autor : Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Adrian Borda

quarta-feira, 11 de junho de 2025

6


esperei por ti em todos os lugares errados
- a quem pedir agora explicações?

viver diziam-me era assim e não havia
mistério nenhum nisso apenas
um roteiro obscuro estabelecido
entre o que tem de acontecer e aquilo
que não acontece nunca

e diziam-me ainda ninguém pode
com justiça reclamar
o que há tantos anos abandonou
num sombrio patamar de prédio suburbano

perdemo-nos então
por pensamentos palavras actos e omissões
e todas as palavras recuaram por infinitos precipícios
sem reconhecerem o som da nossa voz
nem o eco das noites em que todas
nos tinham pertencido

num sombrio patamar de prédio suburbano

Autor : Alice Vieira
Dois Corpos Tombando na Água Pág 26

terça-feira, 10 de junho de 2025

O Sol na Água Pousa

Alado, o sol na água pousa
e dele treme a água amedrontada,
que a ardente imagem lhe devolve em rosa
e em si própria um distante sonho ousa
de céu amargo, que não sonha nada.

Autor : Armindo Rodrigues
Imagem : Pinterest

domingo, 1 de junho de 2025

Memórias de Criança


Já fui criança cheia de brio,
brincava feliz, sem ter desafio.
Minhas bonecas, ao adormecer,
abriam os olhos só para me ver.

Com folhas e fitas, fazia vestidos,
criava encantos, contos perdidos.
Na escola, chamavam-me a magricela,
mas eu era livre, ágil, uma estrela!

Tinha um amigo, o João ruivinho,
sempre gentil, cheio de carinho.
Gostava de pião, jogava tão bem,
girava e dançava sem cair além!

Foi ele que um dia me ensinou
a fazer um papagaio que alto voou.
Com ramos e cola, fita e papel,
subiu pelo vento até tocar o céu!

Fui criança feliz, sonhadora,
desenhava fadas, era encantadora.
Era princesa de um reino sem chão,
feito de sonhos e imaginação!

Autor : BeatriceM
Imagem : Manka Kasha