sexta-feira, 17 de maio de 2024

Quase de nada místico

Paul Fried

Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,
e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:
poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,

que (aproveitando) trago para ti.

Autor : Ana Luísa Amaral
in às vezes o Paraíso

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Ainda não

Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem

ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça

ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração

Autor : António José Forte
Uma Faca nos Dentes
Livraria Editora, Lda.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Poema sem verbos

 


Manhã azul cinzenta, levemente baça,
de Primavera.
As mimosas suspensas – amarelos ausentes.
Flores tímidas, promessas de arco-íris.
Pássaros silenciosos, simples traços de carvão,
asas de papel.

Crianças. Muitas crianças. Sorrisos, claro.
Não sorrisos claros – nem sequer em fuga.
Sorrisos de estátua nos meus olhos. Só nos meus olhos.
Olhos sem vento sem sol sem sonhos sem beijos.

Poema sem verbos – morto.

Autor : Sandra Costa
Imagem : Ashraful Arefin

terça-feira, 14 de maio de 2024

Adeus


Chegar ao fim de maio com sal na camisa,
espelhos de água
quebrados junto aos pés;
tudo o que foi o mar, noites nos pátios,
velas, gerânios, cânticos
e barcos crepusculares navegando nos cabelos
de quem te ouvia como se fosses um príncipe.
Tudo fecha-se agora com pesadas chaves,
nos últimos botões da camisa.
Sobre as velhas telhas destas casas
onde os pombos nascem estrangeiros,
ouves a brisa, um frémito de pedra violada
pela irradiação solar.
O silêncio nasce
no momento em que fechas a janela
e o teu olhar se enrola
no último rumor das cortinas.

Autor :Eduardo Bettencourt Pinto
In :Cântico sobre uma gota de água
Imagem : Matt Cherubino

domingo, 12 de maio de 2024

O Domingo



Era ao domingo que nos perdíamos
A percorrer a manhã e apreciar o mar
Eu era a tua menina
E segurava a tua mão como se fosses o meu guardião

Hoje a minha mão já não segura a tua
Porque , já não existes mais
Nem sequer para me levar a ver o mar
Que era o nosso passeio ao domingo

Autor : BeatriceM 2024-05-11

sábado, 11 de maio de 2024

Noite Infinita

 


Quando eu enlouquecer
diz-lhes que saltei o muro
do silêncio na minha cabeça
e fui pelos quintais aos uivos.

Que façam de conta que morri
e que não me chateiem,
sobretudo que não me chateiem.

É esse o teu papel neste romance:
deixar que eu enlouqueça em paz
afastar a turba dos amigos.

Autor : Mário Contumélias
Imagem Martin Stranka

Mário Contumélias nasceu em Setúbal a 3 de Junho de 1948. Foi jornalista profissional antes de se dedicar à carreira universitária no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). Começou a publicar em jornais e revistas. É autor de livros infantis, obras de ficção e poesia. Estreou-se em 1983 com O Pastor de Vulcões.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

De Longe

 

Não chores Mãe... Faz como eu, sorri!
Transforma as elegias de um momento
em cânticos de esperança e incitamento.
Tem fé nos dias que te prometi.

E podes crer, estou sempre ao pé de ti,
quando por noites de luar, o vento,
segreda aos coqueirais o seu lamento,
compondo versos que eu nunca escrevi...

Estou junto a ti nos dias de braseiro,
no mar...na velha ponte,... no Sombreiro,
em tudo quanto amei e quis p'ra mim...

Não chores, mãe!... A hora eh de avançadas!...
Nos caminhamos certos, de mãos dadas,
e havemos de atingir um dia, o fim...

Autor : Alda Lara
Imagem : Vivienne Bellini

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Realidade

 

Olho para a realidade desprovida de silêncios.
As coisas são o que são. Porém, há que ter em conta
a gravidade que as prende à terra.

Os signos são os poucos recados que a vida pouca nos traz.
São o muito desta vida
onde árvores se perfilam nas avenidas, e nas avenidas

o frágil contraponto de domingo se passeia
atento à soalheira chegada de famílias-à-beira-Tejo
alheias à semana que aí vem, onde cada um por si,

e a desrazão por todos,
irá colher as incertezas do amanhã.
Dos sentidos todos o que resta são olhos fechados,

tacto de treva onde a realidade acaba
como um promontório sobre o Outono: onde começo
a contar as folhas, a memória da sua queda, a avisada música.

Autor : Luís Quintais
Imagem Janek Sedlar

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Esses momentos já não cheguem

 

Esses momentos já não chegam,

já não completam,
anseio o teu corpo, e ser para os teus lábios,
anseio a tua voz, o teu cheiro,
como se no vazio ficasse uma dor,
já não sei!
tento fugir a esse sentimento,
porque lembro-me que há um tempo atrás,
senti o mesmo e sofri,
diz-em tu porque me fazes sentir assim!
diz-me tu!

Autor : Sónia Sultuane
Imagem : Alessio Albi

terça-feira, 7 de maio de 2024

Um poema de amor

 

Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que
uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.

Autor : Nuno Júdice
in O movimento do mundo (Quetzal, 1997)
Imagem Evan Atwood

domingo, 5 de maio de 2024

fragmentos

na teimosia que por vezes,
o corpo me implora,
catei na fundo das minhas lembranças,
ressonância de uma voz,
não sei que fiz,
mas apenas,
encontrei sons imperceptíveis,
e não eras tu,
era apenas um processo,
de mitigar as saudades que ficaram.

Autor : BeatriceM 2024-04-27
Imagem : Katharina Jung

sábado, 4 de maio de 2024

Os Leitores


Não creio que haja olhos tão evidentes
nem rostos mais tranquilos.
Ante o franzido do poema ou o torso
rebuscado de uma prosa,
também não existirá um tão devoluto
coração como o dos leitores. Se não os
amamos é porque os não conhecemos.
Ou serão eles talvez o inverso do amor
pelo conhecimento amargo dos livros.

Seres assim professam a bondade
de existirem lendo-nos sentados ao sol
para cá e para lá de chapéu na cabeça,
tão cedo ligados ao chão da escrita
como ao embalo do sono numa rede.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Katharina Jung

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Há rumor de tempo e vestígios de lodo

 

Há rumor de tempo e vestígios de lodo
na paisagem velha sob as telhas intactas.
Destaca-se a transparência da memória
no fundo antigo de um frasco de bocal
onde a cadência do vidro continua lenta
imutável como a poeira dos móveis
intacta como as telhas da paisagem
intocável como a planta de vidro
silábica como o riso da crença
nas tábuas do sótão
templo do medo.

Autor : Ana Margarida Falcão
Imagem : Gennadi Blokhin

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Toda a Poesia é Luminosa

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.

O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.

E o nevoeiro nunca deixa ver claro.

Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.

Abençoado seja se lá chegar.

Autor : Eugénio de Andrade
Imagem : Aleah Michele

quarta-feira, 1 de maio de 2024

FESTEJO

Foi num primeiro de maio,
na cidade de Rio Grande.
O céu estava sem nuvens.
O mês das flores nascia.
O vento lembrava as flores
no perfume que trazia.
O povo reuniu-se em festa
pois a festa era do povo.
Crianças, homens, mulheres,
o povo unido cantava.
O povo simples da rua,
comovido se abraçava.
O mês das flores nascia
e o vento lembrava as flores
no perfume que trazia.
Foi num primeiro de maio,
de pensamento profundo.
“Uni-vos, ó proletários,
ó povos de todo o mundo”.
Unido estava em Rio Grande,
o povo simples cantando,
No peito de cada homem
uma esperança se abria.
Em qualquer parte do mundo
uma estrela respondia.
Era primeiro de maio
dia da festa do mundo.
O velho parque esquecido
tinha um ar claro e risonho.
Germinava no seu peito
o calor de um novo sonho.
Misturavam-se cantigas,
frases, risos, alegrias.
No peito de cada homem,
um clarão aparecia.
Surgiam jogos e prendas,
hinos subiam ao ar.
Em cada grupo uma história
alguém queria contar.
A tecelã Angelina,
vivaz e alegre cantava,
Recchia - o líder operário
ria e confraternizava.
Era primeiro de maio,
dia de festa do mundo.
Foi quando a voz calma e séria,
no velho parque vibrou,
e um convite alvissareiro
o povo unido escutou:
“Amigos, a rua é larga.
Unidos vamos partir.
A nossa ‘União Operária’
nós hoje vamos abrir.”
No peito de cada homem
Um clarão aparecia.
Em qualquer parte do mundo,
uma estrela respondia.
“A casa de nossa classe,
fechada por que razão?
Amigos, vamos à rua,
e as portas se abrirão.”
A onda humana agitou-se,
Cresceu em intensidade .
Em coro as vozes subiram
clamando por liberdade.
“Á rua,à rua, sem medo,
unidos, vamos marchar.”
Foi como se uma rajada
De vento encrespasse o mar.

Autor  : Lila Ripoll
(Primeiro de Maio, 1954)