terça-feira, 12 de novembro de 2024

Regresso

Há muito que parti.
Abandonei as searas onde nunca vi os
desígnios de deus.
Abandonei a fé.
Caminhei sem destino,
procurei a árvores secreta dos irmãos,
e, com saudade e desvario, abandonei as casas.

Escondi-me.
Escondi o último verso numa noite sem fim.
E hoje escrevo para ti que às vezes me escreves,
do outro lado das terras.
Conhecerei um dia as falésias onde o garajau
paira,
quando chegar, pelas madrugada,
às portas do teu sonho?

De pé, sobre o promontório,
olhas para longe, para os meus barcos que
naufragaram.

Autor : José Agostinho Baptista
quatro luas
Imagem : Jerome Berbigier

domingo, 10 de novembro de 2024

Partidas imprevistas



Um dia, tudo deixará de existir
Nem recordações existirá
Nem sons, nem júbilo
Apenas vacuidade e tudo
Se transformará em pó e apenas pó

Autor : BeatriceM 2024-11-09
Imagem : Michelle Ellis

sábado, 9 de novembro de 2024

Aniversário

Salva-me agora, não desta morte ou de outra
mas de ir vivendo assim seguramente
sem música nem arte, e com o amigo ausente.

No escuro ainda levantei-me e vi
a antiga madrugada que nascia
leve e primeira com a luz macia.

E quem me ouvia, se não os mortos mansos
e generosos sob a lousa fria?
É certo que sonhei que me deixavas
amar e ser amado, como quem
sem mérito nem rosto me fizeste;
mas era de cantor que me mandavas
às portas da cidade ver arder o dia.
  
Autor : António Franco Alexandre
Imagem:Laura Zalenga

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Afirmação

Mara Light
A essência das coisas é senti-las 
tão densas e tão claras, 
que não possam conter-se por completo 
nas palavras. 

A essência das coisas é nutri-las 
tão de alegria e mágoa, 
que o silêncio se ajuste à sua forma 
sem mais nada. 

Autor : Glória de Sant'Anna
in 'Um Denso Azul Silêncio'

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Cântico da Esperança

Não peça eu nunca
para me ver livre de perigos,
mas coragem para afrontá-los.

Não queira eu
que se apaguem as minhas dores,
mas que saiba dominá-las
no meu coração.

Não procure eu amigos
no campo da batalha da vida,
mas ter forças dentro de mim.

Não deseje eu ansiosamente
ser salvo,
mas ter esperança
para conquistar pacientemente
a minha liberdade.

Não seja eu tão cobarde, Senhor,
que deseje a tua misericórdia
no meu triunfo,
mas apertar a tua mão
no meu fracasso

Autor : Rabindranath Tagore
in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões
Imagem : Caras Lonut

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Poema ao amigo que perdi

Era uma manhã nutrida quase fúlgida
Quando te visitei no ermo
E te vi com as pedras os braços e as âncoras
Enquanto enunciavas palavras sem eira nem beira
alcalinas e demoradas
Eras todo tu um mundo que já não existe
Um apelo ao terrunho às saudades de enxadas e alguidares
Eras um viajante dos sonos silentes
Eras caligrafia e gestos dissidentes
Eras uma flor sem água com a ampulheta e o passar das horas
Elegi-te o meu maior amigo
O que desvelava a minha espera o meu grito
Eras o refrão do meu cansaço da minha inquietação do meu ser aflito
Eras as consoantes de uma chávena de um pão de um atrito
Quando te partiste de mim
Amareleci e pendi para as cicatrizes de um marejar maldito
Reuni as dálias e os escaravelhos e aí por ora me agito

Autor : Cecília Barreira July 31, 2022
Imagem : Trini Schultz

terça-feira, 5 de novembro de 2024

A noite tem tudo

 

A noite tem tudo
o silêncio nobre
sobre todos os silêncios
uma silhueta breve
que vemos de olhos fechados
o remorso como um punho
dentro da nossa boca
a noite tem tudo.

Autor : Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Michal Zahornacky

domingo, 3 de novembro de 2024

Vidas de Papel

Por momentos, somos apenas marionetas de cores
por vezes berrantes, por vezes suaves, conforme o instante
com cordelinhos a nos manipularem sem clemência nem dores

Autor : BeatriceM 2024-11-02
Imagem : Marcin Łaskarzewski

sábado, 2 de novembro de 2024

Visita



no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando

Autor : Ferreira Gullar
Imagem : Pinterest

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Um Céu e Nada Mais

Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.

Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.

Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.

Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,

nem inocência. Um céu e nada mais.

Autor : Ana Luísa Amaral
 in “Às Vezes o Paraíso”
Imagem : Andrea Peipe