sábado, 31 de agosto de 2024

Arrefece


Arrefece,
dizias. É o frio,
disse eu,
que te acaricia
a pele. Que nela se aquece. Que nela
se esquece.

Autor : Albano Martins

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

O fogo, o ferro, o futuro

 


Eras um sustento,
eras um segredo,
uma feroz tentativa.

Eras a roupa do corpo
feito estandarte
a caminho de casa
e as tuas mãos metade das minhas.

Eras um fascínio,
eras um fracasso,
eras a chama que nunca te queimou,
o sul, o sufoco,
a madrugada.

Eras um tumulto
de éguas e galgos,
a minha impaciência,
o meu verde vivo.

Eras o que nunca podias,
assombração sem fantasia
descalça e abrigada,
loureiro da Aquitânia.

Eu era o viúvo, o tenebroso,
consolado na água
que de súbito secou.

Eras o que foste,
metáfora do que eu
tanto te quis.

O fogo, o ferro, o futuro.

Autor : Pedro Mexia
Imagem : Katharina Jung

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Quem?

se eu chorar
secará as minhas lágrimas?
Talvez tão só o vento.

As lágrimas são a minha mais íntima
nudez.

Autor : Teresa Rita Lopes
Imagem : Bara Vavrova

terça-feira, 27 de agosto de 2024

11.

Nunca me dei bem com o poema;
ele sempre quis ser autónomo
em relação às palavras que escolhi.
Houve vezes em que quis ser um número,
um soldado, um deus; Outras vezes
escondeu-se no lado negro de cada vocábulo da razão,
num comportamento menos literário e pouco ético.
O problema do meu poema é querer ser poema,
quando eu sempre quis que fosse algo livre,
com consciência alargada e regras naturais:
um significado oculto,
um atraso a um encontro amoroso,
uma consequência imprevisível, algo assim.
Nunca me dei bem com o poema,
embora nunca o tenha, de todo, conseguido evitar.

Autor : Tiago Nené

domingo, 25 de agosto de 2024

Destinos


Em todos os continentes
Os livros que lemos
Foram
E serão os nossos destinos

Em tantos livros te li
E em tantos tu me leste

Autor : BeatriceM 2017-08-20
Imagem :Nicole Burton

sábado, 24 de agosto de 2024

Noite encantada

Noite encantada, cobre-me com o teu manto,
Será que sabes que te amo loucamente?
Anseio o teu cheiro amargo a suor quente,
Onde me perco e encontro em teu encanto.
.
Quebro o tédio dos dias cinzentos em pedaços,
E enlouqueço por disfarçar toda a saudade
Da beleza negra que exibes com vaidade,
Enquanto descubro prazeres dos teus regaços.
.
Como é doce mergulhar nos teus braços,
Descobrir-me outro na tua imensa liberdade,
E desvendar cada pedaço da nova verdade,
Que trazes nas tuas formas, nos teus traços.
.
E pela manhã quando, saudoso, me levanto,
Ainda sinto nos lábios o teu sabor ardente,
Recordo ecos de versos do poema eloquente,
Que me segredaste ao ouvido para meu espanto.

Autor : Gonçalo Nuno Martins
Nada em 53 vezes Página 10
papiro editora

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Lucidez Desnessária


Diante das estrelas
E do sol
Sabendo a morte
E a vida aranha
Disconforme
E concordante
Pronta a parar na teia
Envelheci
Mas posso olhar ainda
Ainda
Cravos de sangue e rosas da estrada
Como se eterna fosse
Mas tão tarde.

Autor : Matilde Rosa Araújo

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Desejo

 

Eu queria pegar nela ao colo
como se fosse uma criança,
pousar os lábios na sua testa,
beijar os seus olhos, levemente,
escutar a sua respiração e
sobressaltar-me ao menos indício
de frio;
lá fora chovia,
eu procurava sorrir,
quem sabe que pensamentos
sustinha ainda,
fio ténue
entre a terra e a morte.

Autor : Jorge Gomes Miranda, A Última Pedra
Imagem : Emerico Imre Toth

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Cosi-te a mim


Cosi-te a mim
em poema
bordadas
as palavras
fios de vida.
 
Autor : Isabel Solano
Imagem : Katharina Jung

terça-feira, 20 de agosto de 2024

O teu sorriso

Nadja-Berberovic

E se o céu fosse só isto…?

As nuvens dos teus lábios
O infindável azul da tua boca…

e eu feito ave louca
a sobrevoar-te num beijo
a embebedar-me de desejo
a morar no teu sorriso…

Ai, se o céu fosse só isto
e nada mais fosse preciso!

Autor : João Morgado
in Rio de Doze Águas

domingo, 18 de agosto de 2024

a dança



dançaremos ao sabor da música que pela noite,
vem sussurrar nos meus ouvidos,
não importa quando....nem onde.

Autor : BeatriceM 2017-08-13
Imagem : Laura Zalenga

sábado, 17 de agosto de 2024

Conhecer o Mundo

Conhecer o Mundo
Eis o meu Fado!
De nada vale
Remar contra o vento!

Delmar Maia Gonçalves
Imagem: Dheny Patungka

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Recado

Danielle Richard

Se eu morrer longe
sepulta-me no mar
dentro das algas ignorantes
e lúcidas.

Cobre o meu rosto de palavras
antigas
e de música.

Deixa em meus dedos
a memória mais recente
de outras coisas inúmeras

e nos meus cabelos
o incerto movimento
do vento e da chuva.

Eu vogarei sob as estrelas
com pálidas luzes entre os cílios
e pequenos caramujos
entrarão nos meus ouvidos.

Estarei assim idêntica
a todos os motivos.

Autor : Glória de Sant'Anna
in 'Música Ausente'

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Breve


Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me “bom dia” mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem. há uma semana. há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei-de esquecer-me de ti.

Autor : Rui Costa
Imagem : Acharaf :Baznanis

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

...

© Momicheta


Não sei sobre pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que minha solidão deveria ter asas.

Autor : Alejandra Pizarnik

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Inconformado


 

Quanta ingratidão!
Em teu encanto que é tanto
Só me dizes – não!

Autor : Artur Eduardo Benevides
Imagem : Barbara Cole

domingo, 11 de agosto de 2024

Madrugadas


No universo das alvoradas
Os meus sonhos não vividos
Ganham o brilho de todas as idades

Autor :BeatriceM 2024-08-10
Imagem : Maria Kaimaiki

sábado, 10 de agosto de 2024

A Gaivota


Vou ao cais de vez em quando
Como quem inda acredita,
Mas perdendo quase a esperança
De alguma coisa mudar...
De gaivotas vejo um bando,
Vou escolher a mais bonita!
A ver se leva e não cansa,
Este meu sonho a voar.

Autor : Joaquim Sustelo (Silves, 29 de julho de 1948)

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A Mais Perfeita imagem

Eric Zener

Se eu varresse todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.

Autor : Ana Luísa Amaral

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

...


Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem

Autor : Rui Caeiro

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Teu corpo seja brasa

teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo
um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo

Autor : Alice Ruiz
Imagem : John Dodson

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Sobre esta página


Há quem não leia para além do que vai escrito.
Tudo tem de ser literal: chão rua noite e casa,
cama mesa e roupa lavada. Nem silêncio nem grito,
consoante as penas que se transporta em cada asa.

Guarda o talento para ti, não mudes de página.
Há gente capaz de se negar à própria evidência
e de te acusar de mundos e reinos criados por álgida
imaginação, de asno com excesso de inteligência.

A nada e ninguém repliques. O segredo
só a ti pertence, tão único como tu. Lês
por dentro o que escreves, sozinho na noite
qual condenado às trevas do seu degredo.

Caminha sobre a página. Mudarás não o sentido
nem o ritmo nem a música nem a voz do poema,
e sim o verbo que te levará à vista do infinito.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Marie Meister

domingo, 4 de agosto de 2024

Os dias


 

Os dias são percursos
Que distendo cuidadosamente
Para que não se transformem em retalhos.

Autor : Beatrice 2024-08-03
Imagem : Vivienne Bellini

sábado, 3 de agosto de 2024

Eu não vou perturbar a paz


De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto.

Autor : Manoel de Barros
In Poesia Completa

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Teu corpo de Agosto


Teu corpo é Agosto

Tu cheiras a verão
por baixo das veias

Tu cheiras a quente

Tu cheiras à febre
do sangue maduro

Teu ventre de orgia
teu cheiro a sodoma
aroma-mulher

Teu corpo de agosto
tem cheiro a setembro.

Autor : Manuela Amaral
Foto: laura makabresku

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Metamorfose em Agosto

Jaroslaw Datta

O verão solta os cabelos como a mulher
que se ergueu do leito e avança para o espelho,
com as mãos da manhã a viajarem pela sua pele. O
que ela vê é o reflexo dos sonhos que as suas
pálpebras fecharam para que o dia se não apoderasse
de imagens que ela própria já esqueceu; e
quando despe a túnica da noite, olha
para os seios como se neles corresse o leite
que alimenta o desejo, e entrelaça nos seus
cumes os gestos trânsfugas do amor.

O verão, que subiu às açoteias do litoral
como o grito dos amantes que incendiou
a tarde e atravessou a terra com um calafrio
de nortada, transformou-se no carreiro
de formigas que se perderam da sua cova. Sigo-as
num caos de vagabundagem, como se elas me levassem
ao encontro de uma recordação de madrugadas
de ócio, ouvindo a voz que ficou da insónia
emergir de uma dobra de lençóis, com
as sílabas exaustas de um imenso abraço.

E saúdo o verão que as trepadeiras possuíram
nos quintais anónimos de ruínas imprecisas, esse
que fez cair sobre nós o seu relâmpago de seda,
um sumo de palavras húmidas e a última ressonância
de uma sombra de corpos.

Autor : Nuno Júdice