domingo, 19 de maio de 2024

vem


vem comigo neste voo imprevisível,
que é a vida,
num baloiço de ilusão,
em que o vento embala os sonhos,
(nossos)
e,
então a aridez da vida,
transformar-se-á,
no canto dos pássaros,
na tarde menos sombria.

Autor : BeatriceM 2014-05-18
Imagem : Michal Maciack

sábado, 18 de maio de 2024

Infinita conversa com as nuvens


Antes de partir para as montanhas espalharei os
poemas pelo chão como quem abre um mapa pela
última vez. Como quem relembra o extenso areal dos
dias, a incansável rotina dos comboios, a infinita
conversa com as nuvens.

Quando partir para as montanhas deixarei os poemas
pelo chão como quem renega todos os mapas. Levarei
apenas o meu corpo para que ele me fale do teu.

Autor :  Rui Miguel Fragas
In O Nome das Árvores. Poética Edições, 2014.




quarta-feira, 15 de maio de 2024

Poema sem verbos

 


Manhã azul cinzenta, levemente baça,
de Primavera.
As mimosas suspensas – amarelos ausentes.
Flores tímidas, promessas de arco-íris.
Pássaros silenciosos, simples traços de carvão,
asas de papel.

Crianças. Muitas crianças. Sorrisos, claro.
Não sorrisos claros – nem sequer em fuga.
Sorrisos de estátua nos meus olhos. Só nos meus olhos.
Olhos sem vento sem sol sem sonhos sem beijos.

Poema sem verbos – morto.

Autor : Sandra Costa
Imagem : Ashraful Arefin

terça-feira, 14 de maio de 2024

Adeus


Chegar ao fim de maio com sal na camisa,
espelhos de água
quebrados junto aos pés;
tudo o que foi o mar, noites nos pátios,
velas, gerânios, cânticos
e barcos crepusculares navegando nos cabelos
de quem te ouvia como se fosses um príncipe.
Tudo fecha-se agora com pesadas chaves,
nos últimos botões da camisa.
Sobre as velhas telhas destas casas
onde os pombos nascem estrangeiros,
ouves a brisa, um frémito de pedra violada
pela irradiação solar.
O silêncio nasce
no momento em que fechas a janela
e o teu olhar se enrola
no último rumor das cortinas.

Autor :Eduardo Bettencourt Pinto
In :Cântico sobre uma gota de água
Imagem : Matt Cherubino

domingo, 12 de maio de 2024

O Domingo



Era ao domingo que nos perdíamos
A percorrer a manhã e apreciar o mar
Eu era a tua menina
E segurava a tua mão como se fosses o meu guardião

Hoje a minha mão já não segura a tua
Porque , já não existes mais
Nem sequer para me levar a ver o mar
Que era o nosso passeio ao domingo

Autor : BeatriceM 2024-05-11

sábado, 11 de maio de 2024

Noite Infinita

 


Quando eu enlouquecer
diz-lhes que saltei o muro
do silêncio na minha cabeça
e fui pelos quintais aos uivos.

Que façam de conta que morri
e que não me chateiem,
sobretudo que não me chateiem.

É esse o teu papel neste romance:
deixar que eu enlouqueça em paz
afastar a turba dos amigos.

Autor : Mário Contumélias
Imagem Martin Stranka

Mário Contumélias nasceu em Setúbal a 3 de Junho de 1948. Foi jornalista profissional antes de se dedicar à carreira universitária no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). Começou a publicar em jornais e revistas. É autor de livros infantis, obras de ficção e poesia. Estreou-se em 1983 com O Pastor de Vulcões.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

De Longe

 

Não chores Mãe... Faz como eu, sorri!
Transforma as elegias de um momento
em cânticos de esperança e incitamento.
Tem fé nos dias que te prometi.

E podes crer, estou sempre ao pé de ti,
quando por noites de luar, o vento,
segreda aos coqueirais o seu lamento,
compondo versos que eu nunca escrevi...

Estou junto a ti nos dias de braseiro,
no mar...na velha ponte,... no Sombreiro,
em tudo quanto amei e quis p'ra mim...

Não chores, mãe!... A hora eh de avançadas!...
Nos caminhamos certos, de mãos dadas,
e havemos de atingir um dia, o fim...

Autor : Alda Lara
Imagem : Vivienne Bellini

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Realidade

 

Olho para a realidade desprovida de silêncios.
As coisas são o que são. Porém, há que ter em conta
a gravidade que as prende à terra.

Os signos são os poucos recados que a vida pouca nos traz.
São o muito desta vida
onde árvores se perfilam nas avenidas, e nas avenidas

o frágil contraponto de domingo se passeia
atento à soalheira chegada de famílias-à-beira-Tejo
alheias à semana que aí vem, onde cada um por si,

e a desrazão por todos,
irá colher as incertezas do amanhã.
Dos sentidos todos o que resta são olhos fechados,

tacto de treva onde a realidade acaba
como um promontório sobre o Outono: onde começo
a contar as folhas, a memória da sua queda, a avisada música.

Autor : Luís Quintais
Imagem Janek Sedlar

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Esses momentos já não cheguem

 

Esses momentos já não chegam,

já não completam,
anseio o teu corpo, e ser para os teus lábios,
anseio a tua voz, o teu cheiro,
como se no vazio ficasse uma dor,
já não sei!
tento fugir a esse sentimento,
porque lembro-me que há um tempo atrás,
senti o mesmo e sofri,
diz-em tu porque me fazes sentir assim!
diz-me tu!

Autor : Sónia Sultuane
Imagem : Alessio Albi

terça-feira, 7 de maio de 2024

Um poema de amor

 

Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que
uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.

Autor : Nuno Júdice
in O movimento do mundo (Quetzal, 1997)
Imagem Evan Atwood

domingo, 5 de maio de 2024

fragmentos

na teimosia que por vezes,
o corpo me implora,
catei na fundo das minhas lembranças,
ressonância de uma voz,
não sei que fiz,
mas apenas,
encontrei sons imperceptíveis,
e não eras tu,
era apenas um processo,
de mitigar as saudades que ficaram.

Autor : BeatriceM 2024-04-27
Imagem : Katharina Jung

sábado, 4 de maio de 2024

Os Leitores


Não creio que haja olhos tão evidentes
nem rostos mais tranquilos.
Ante o franzido do poema ou o torso
rebuscado de uma prosa,
também não existirá um tão devoluto
coração como o dos leitores. Se não os
amamos é porque os não conhecemos.
Ou serão eles talvez o inverso do amor
pelo conhecimento amargo dos livros.

Seres assim professam a bondade
de existirem lendo-nos sentados ao sol
para cá e para lá de chapéu na cabeça,
tão cedo ligados ao chão da escrita
como ao embalo do sono numa rede.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Katharina Jung

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Há rumor de tempo e vestígios de lodo

 

Há rumor de tempo e vestígios de lodo
na paisagem velha sob as telhas intactas.
Destaca-se a transparência da memória
no fundo antigo de um frasco de bocal
onde a cadência do vidro continua lenta
imutável como a poeira dos móveis
intacta como as telhas da paisagem
intocável como a planta de vidro
silábica como o riso da crença
nas tábuas do sótão
templo do medo.

Autor : Ana Margarida Falcão
Imagem : Gennadi Blokhin

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Toda a Poesia é Luminosa

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.

O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.

E o nevoeiro nunca deixa ver claro.

Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.

Abençoado seja se lá chegar.

Autor : Eugénio de Andrade
Imagem : Aleah Michele

quarta-feira, 1 de maio de 2024

FESTEJO

Foi num primeiro de maio,
na cidade de Rio Grande.
O céu estava sem nuvens.
O mês das flores nascia.
O vento lembrava as flores
no perfume que trazia.
O povo reuniu-se em festa
pois a festa era do povo.
Crianças, homens, mulheres,
o povo unido cantava.
O povo simples da rua,
comovido se abraçava.
O mês das flores nascia
e o vento lembrava as flores
no perfume que trazia.
Foi num primeiro de maio,
de pensamento profundo.
“Uni-vos, ó proletários,
ó povos de todo o mundo”.
Unido estava em Rio Grande,
o povo simples cantando,
No peito de cada homem
uma esperança se abria.
Em qualquer parte do mundo
uma estrela respondia.
Era primeiro de maio
dia da festa do mundo.
O velho parque esquecido
tinha um ar claro e risonho.
Germinava no seu peito
o calor de um novo sonho.
Misturavam-se cantigas,
frases, risos, alegrias.
No peito de cada homem,
um clarão aparecia.
Surgiam jogos e prendas,
hinos subiam ao ar.
Em cada grupo uma história
alguém queria contar.
A tecelã Angelina,
vivaz e alegre cantava,
Recchia - o líder operário
ria e confraternizava.
Era primeiro de maio,
dia de festa do mundo.
Foi quando a voz calma e séria,
no velho parque vibrou,
e um convite alvissareiro
o povo unido escutou:
“Amigos, a rua é larga.
Unidos vamos partir.
A nossa ‘União Operária’
nós hoje vamos abrir.”
No peito de cada homem
Um clarão aparecia.
Em qualquer parte do mundo,
uma estrela respondia.
“A casa de nossa classe,
fechada por que razão?
Amigos, vamos à rua,
e as portas se abrirão.”
A onda humana agitou-se,
Cresceu em intensidade .
Em coro as vozes subiram
clamando por liberdade.
“Á rua,à rua, sem medo,
unidos, vamos marchar.”
Foi como se uma rajada
De vento encrespasse o mar.

Autor  : Lila Ripoll
(Primeiro de Maio, 1954) 

terça-feira, 30 de abril de 2024

Para quê chorar


para quê chorar
porque esperarmos
que outros venham consolar?

para quê querer uma ilusão
para apagar uma mentira?

o choro cansou o mundo
e a nós mesmos já causa tédio
e quando julgamos que o riso é choro
ele é riso simplesmente
porque já nem sabemos lamentar

mas olha à tua volta
abre bem os olhos
- vês?

aí está o mundo
construamos.

Autor : Agostinho Neto
Imagem : Martin Stranka

domingo, 28 de abril de 2024

Partida sem Retorno

 

Deixaste no teu trajecto,
muito da tua generosidade,
basta saber seguir o rastro,
e sentir o teu amor disperso,
em cada memória apartada.

Autor : BeatriceM 2024-04-22

sábado, 27 de abril de 2024

Cansaço

Estou cansado
sei que estas palavras são como um choro
sobre o mapa da vida
estas palavras têm o mesmo valor
quando suspiro depois
do desejo consumado e digo
estou cansado!

este corpo que corre a afogar-se
na memória absurda do que foi o abandono
confessa em silêncio
estou cansado!

Autor : Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Mikko Lagerstedt

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Ela e a Fortuna

Acaso é a flor
que se desfolha em sua mão,
o pássaro que foge
pela janela aberta,
o vento
que de repente infla suas velas,
porém sendo vento
ele passa e voa.
Ah a Fortuna
é para ela
o resplendor fugitivo
de uma manhã de sol,
de uma hora,
de um arco-íris
trêmulo e evanescente
que se estende
sobre um abismo deslumbrado…
A Fortuna é o que não se tem,
e é tão perfeita
tão rica e esplêndida
a sua imagem,
que empobrece
as pequenas alegrias
de todos os dias:
os frutos de sua horta
onde não crescem
laranjas de ouro,
as rosas
de seu modesto jardim,
que logo murcham,
o timbre claro das vozes
que por vezes estão próximas,
e até mesmo o riso
que se apaga em seus lábios
dissipado
por um invisível sopro.

Autor : Alaíde Foppa
Imagem : Andrea Kiss

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Liberdade


-- Liberdade, que estais no céu…
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

-- Liberdade, que estais na terra…
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
-- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.

Autor : Miguel Torga

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Atar-se aos segredos dos dias gémeos

Atar-se aos segredos dos dias gémeos
não é tarefa fácil para o meu pobre amigo.

Vem às vezes ver-me,
para partir o silêncio de uma lenta agonia
que na memória guarda.

Atar-se tantos nós não servia para nada.

Di-lo com os olhos afundados na chuva
e assim nasce a sua sombra
no céu quebrado que esconde o abandono.

Autor :Ana Merino
trad. joaquim manuel magalhães(relógio d´água2000)
Imagem :Anthony Garcia

terça-feira, 23 de abril de 2024

Só o amor

Só o amor pára o tempo (só
ele detém a voragem)
rasgámos cidades a meio
(cruzámos rios e lagos)
disponíveis para lugares com nomes
impronunciáveis. É preciso conhecer os mapas mais ao acaso
(jamais evitar fronteiras
nunca ficar para trás)
tudo nos deve assombrar como
neve
em Abril. Só o amor pára o tempo só
nele perdura o enigma
lançar pedras sem forma e o lago
devolver círculos).

Autor : João Luís Barreto Guimarães
in Nómada
Imagem : Kristin Edmundson

domingo, 21 de abril de 2024

poalhas vagas

 

somos incompatíveis,
nos dias,
nos gostos,
nos acertos que são sempre desacertos,
somos seres díspares,
onde só somos compatíveis,
na paixão assoberbada pela calada da noite…

Autor : BeatriceM 2024-04-20
Imagem :Masha Raymers 

sábado, 20 de abril de 2024

Dois Poemas

Antonio Curnetta

Em que idioma te direi
este amor sem nome
que é servo e rei?

Como o direi?
Como o calarei?

É como se a noite se molhasse
repentinamente, quando choras.
É como se o dia se demorasse,
quando te espero e tu te demoras.

Autor : Albano Martins

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Ser e não ser

Entre mim e os livros na estante,
no espaço ocupado pela luz,
dão-se transformações
a que assisto quieta e calada.

Depois de olhar o ar,
cada palavra reflecte
o lugar invisível de onde veio o poema
ou o silêncio que passou pela casa.

A alma não escolhe a estação
nem prevê o detalhe do infinito.

Reparo com espanto infante
nos vestígios deste ritual,
os livros que não li
sabem de mim
e não dormem nunca.

Autor Marta Chaves
In Avalanche

quinta-feira, 18 de abril de 2024

O nome das árvores


Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores e
guarda no bolso dois nomes para cada árvore. As
árvores não morrem no interior da sombra.

Quem é que sabe que saber até ao fim do mundo é
pouco mais do que nada. Quem sabe que as palavras
são só uma nesga da paisagem. Quem caminha assim
por dentro dos caminhos. O nome das árvores é o
silêncio.

Há quem olhe as árvores como quem procura pássaros
dentro das árvores e o céu por cima das árvores. As
árvores não morrem no interior da sede.

Quem é que sabe que o destino é tão lento e está tão
perto. Por quem se demora o vento quando o vento se
demora. Quem é que sabe que sonhar é o princípio da
respiração. As árvores são o lume quando os caminhos
se acendem.

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores
ou como quem olha as casas ao cair da noite. As
árvores não morrem no interior do medo.

Quem é que sabe que viver é viver para lá da última
folha. Quem é capaz de morrer e depois de morrer não
morrer ainda. Quem habita os lugares invisíveis. As
árvores caminham no descuidado caminhar do tempo.

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores
com os olhos súbitos e incendiados do amor. As
árvores não morrem no interior da chama.

Tudo nas árvores é o coração das árvores. Por quem os
pássaros esquecem as asas quando os pássaros
esquecem as asas. Quem sabe devagar amadurecer um
fruto. Quem é capaz de amar assim até às raízes.

Rui Miguel Fragas
In O Nome das Árvores
Imagem :Janek Sedlar

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Caixinha de Música

impregno-me em ti como um perfume
como quem veste a pele de odores ou a alma de
cetins
quero que me enlaces ou me enfaixes de muitos
laços
abraços fitas ou fios transparentes

em celofane brilhando uma prenda
uma menina te traz vestida de lumes
incandescendo incandescente
te quer embrulhada em véus de seda e brocado

encantada a serpente a flauta o mago
senhor toca
e quando me toca
o corpo eu abro

caixinha de música
dentro
com bailarina que dança

Autor : Ana Mafalda Leite

terça-feira, 16 de abril de 2024

BÚSSOLAS DA VIDA

 

Observo o ciclo da vida feita ao redor de mim
Estonteio-me com a noção do tanto não feito
E gelo-me nesse pensar do que não disse
No zelo do que não consegui escrever no vazio.

Sintonias de prazeres e hiatos de saudades cor
Polvilhados hoje de branco no entardecer lógico
Rugas sulcadas por rios de lágrimas recorrentes
No procurar de mansinho do mar que não se agita.

Sons redutores de anseios que se apagam no areal
Passos na falésia à beira de si..."cardume" floral
E até as gaivotas perderam o medo do próximo.

Volteios em círculos de rectas secantes e infinitas
Geografias amputadas em planisférios políticos
E as bússolas perderam o magnetismo do sorrir!

Autor: José Luis Outono
in MEMÓRIAS - by OUTONO 2009
( direitos autorais – S. P.A. – 106402 )

domingo, 14 de abril de 2024

Verbos

Flutua no ar o livre arbítrio
Transformado em algo
Que o verbo se conjuga no passado

Porque no futuro
Não o sei conjugar
E nem com palavras renovadas

Se no presente faz coesão
Porque já as despi integralmente
Do meu sentir

Autor : BeatriceM 2024-04-13
Imagem :Anna Derhanovskaya 

sábado, 13 de abril de 2024

O Poeta

 

O que resta
Ao poeta
Senão viver
Inconformado
E não vergado
Embora
Em voz silenciada
Ninguém conseguir
Calar a voz do verbo.

Autor : Delmar Maia Gonçalves
Imagem : Martin Stranka
.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

O tamanho impensável das flores

O tamanho impensável das flores
Prende-me ao chão

E não serve de nada encontrar um lugar
Onde possa ser outra coisa qualquer.

Autor : Sandra Costa
Imagem : Marie Meister

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Poema

Eu não sabia então -
nem sei se mesmo hoje saberei -
que a poesia era para isto
falar das coisas miseráveis
- a memória do que é miúdo, o que é rasteiro -
o sono escombros que o mar devolve à terra.

Ou então lembrar meu Pai
suas mãos secas tisnadas do sol
sua vasta alma camponesa rosto de terra
coração de menino olhos ingénuos
um chapéu protegendo-lhe a cabeça
caminhando entre folhas de videira
suavemente falando aos que trabalhavam na colheita
[se acercassem de um outro campo mais acima
para colher sob sol braseiro
uvas que eu ia devorando
até do sumo doce fartar minha boca.

Ou lembrar meu avô
que conduzia mal
levando o carro pelo meio da estrada de província
a buzinar longamente em cada curva
afugentando galinhas ovelhas
crianças ranhosas
filhas do álcool.

Lembrá-lo agora como quem evoca um sabor cheiro
[da infância
não chegando para me humedecer os olhos
(não sou especialmente dado à comoção)
leva-me a um outro tempo:
um tempo de girassóis e de pão farto e doce
a encher-me a boca miúda
momentos coincidentes com o agora:
a guerra na Palestina as eleições em França
a notícia de um óbito no jornal do dia
a graça do pivô a fechar outro telejornal
ou tão-somente essa presença intensa
teu perfil recortado no ecrã dos meus olhos.

Tudo acontecendo ao mesmo tempo numa linha
[horizontal
em simultâneo como se de fora
como se fosse um outro
desconhecendo sempre
o lugar exacto a que pertenço.

Autor : Bernardo Pinto de Almeida
Imagem:Erik Johansson 

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Ombros

Agora, que o gelo se derreteu nos
ramos preguiçosos dos teixos e as
águas sossegaram no caudal dos
rios; que o frio deixou de apunhalar
o coração dos campos, e as aranhas
voltaram a emergir das feridas dos
muros _ escrevo para preservar a
alegria, que é o que me mantém acesa
a luz do amor. Por isso, quando te
pergunto se achas que, com os anos
e o mundo, me tornei cínica, por favor,
não encolhas os ombros: as minhas
gargalhadas ainda não têm sangue.

Autor : Maria do Rosário Pedreira
In :O meu corpo humano pág. 85.
Imagem : Omar Ortiz

terça-feira, 9 de abril de 2024

....


O casal da mesa do lado tocou nas palavras durante o
pequeno-almoço. Cumpriu-o indiferente sem incomodar o silêncio,
sem ter provado sequer uma curta vez que fosse do dissabor das
palavras.
O casal da mesa do lado já deve ter dito tudo.

João Luís Barreto Guimarães
in Poesia Reunida (Quetzal)

domingo, 7 de abril de 2024

talvez

 

talvez que o teu silêncio,
seja uma prova de que a ausência,
é uma partida inadiável,
e um corte com a mágoa,
transformada em saudade .

Autor : BeatriceM 2024-04-06
Imagem : Zach Alan

sábado, 6 de abril de 2024

É nos teus olhos

Esther Bayer

É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou,mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.
.
Autor : Nuno Júdice

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Título por haver

Anka Zhuravleva

No meu poema ficaste
de pernas para
o ar
(mas também eu
já estive tantas vezes)

Por entre versos vejo-te as mãos
no chão
do meu poema
e os pés tocando o título
(a haver quando eu
quiser)

Enquanto o meu desejo assim serás:
incómodo estatuto:
preciso de escrever-te
do avesso
para te amar em excesso

Autor : Ana Luísa Amaral

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Resposta


Alma: não tiveste um lugar. Assim,
te foste ao reino prometido, e dobras-te
agora em quanta solidão venceste,
impelida num mundo de retorno.

Nem a razão expectante permitiu
o maior pensamento de certezas!
Alma: da terra ao céu o traço fino
da tua directriz — mais não ficou...

Eis a vida — pó cruel, ansiedade
que deu a forma à tua acção perfeita
em sombras de tristeza e dia a dia.

Desvendado segredo! A dor que seja
o fogo, tua lembrança encontrou
nesse vazio a única palavra...

Autor : António Salvado

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Noite

a angústia dos teus lábios
esvoaça
pelo meu corpo
como fria aragem…

e toda a música
que os meus ouvidos ouvem
não é mais
que a dos loucos búzios enganadores

cerro as mãos
para guardar
esse murmúrio
quasi nada…

e com elas cerradas
permaneço até
que a madrugada
rompa…

Autor : Alda Lara
Imagem : Anna Heimkreiter

terça-feira, 2 de abril de 2024

Que porém,

Gratificar o sol
com algumas excepções:
a ave que porém não cai
o grilo que porém não canta.

Autor : António Mega Ferreira
Imagem : Kiara Rose

domingo, 31 de março de 2024

Oração


E ao terceiro dia Tu ressuscitaste
E eu perdida no mundo, até de mim
Solitária
Dentro deste templo, que é a Tua casa
Peço-Te encarecidamente
Com a fé que me assiste momentaneamente
Amansa os líderes do rebanho cada vez mais tresmalhado
Ensina o caminho para a luminosidade
A quem pensa que é o dono da verdade
Ajuda-nos a merecer uma imensidão de Paz
Para que a harmonia reine entre todos nós

Autor BeatriceM 2024-03-31

sábado, 30 de março de 2024

Sobre esta página


Há quem não leia para além do que vai escrito.
Tudo tem de ser literal: chão rua noite e casa,
cama mesa e roupa lavada. Nem silêncio nem grito,
consoante as penas que se transporta em cada asa.

Guarda o talento para ti, não mudes de página.
Há gente capaz de se negar à própria evidência
e de te acusar de mundos e reinos criados por álgida
imaginação, de asno com excesso de inteligência.

A nada e ninguém repliques. O segredo
só a ti pertence, tão único como tu. Lês
por dentro o que escreves, sozinho na noite
qual condenado às trevas do seu degredo.

Caminha sobre a página. Mudarás não o sentido
nem o ritmo nem a música nem a voz do poema,
e sim o verbo que te levará à vista do infinito.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Marie Meister