domingo, 29 de setembro de 2024

Situações

Na minha cabeça bailam palavras ruidosas
Que me lançam no caos
Para os abismos do dia que tenho de defrontar

Autor : BeatriceM 2024-09-29
Imagem : Laura Zalenga

sábado, 28 de setembro de 2024

Identidade


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Autor : Mia Couto
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Pior...

marco pandullo

Amei quem me amou
Mas nem sempre
E bem.

Também amei quem
Não me amou.

Pior foi não amar
Quem me odiou.

Autor : Maria Sousa

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

A cidade é a mesma e no entanto

Stanislav Sidorov

A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um perigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido

autor : Ruy Belo

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Ser de Sombra


Chovia.
No bosque os pequenos ruídos de folhas de água
deslizando verde.
Chovia.
E eis que a límpida brancura se raiou de fumo
brilhando uma ágata.

Surgiam do chão os ramos os troncos
os braços desenterrados
bocas de luz
candeias
chuva de oiro o canto
desfibrado húmus
húmido incendiado.

Um ser de sombra e de água
chovia.

Os anéis dos cabelos acesos intactos
adejando a hera as mãos negras
e as anémonas
um lago.

A cinza era o que restava
verde chuva
alada
passagem rubra.

Autor : Ana Mafalda Leite
Imagem : Korinne Bising

AAna Mafalda Leite nasceu em Portugal em 1956, tendo vivido em Moçambique (Tete-Moatize) até aos dezoito anos. Professora na Universidade de Lisboa, especializou-se em Literaturas Africanas. Ensaísta, tradutora e poeta, estreou-se na poesia com Em Sombra Acesa (1984). Tem colaboração dispersa em vários jornais e revistas. Traduziu obras de Roland Barthes, Tzvetan Todorov e prefaciou obras de vários poetas.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Muito pouca


Mikko Lagerstedt

a morte é uma coisa muito pouca
em nada se compara ao crescimento das constelações
a morte não respira nem se expande desde o centro
como fazem as estações desde o coração da terra

e assim eu sei que um sorriso é precioso
porque respira e alarga-se dentro dos olhos
e quando chega ao lugar em que a mão se abre
é já uma forma de sossego uma lua coberta de luar
um modo certo de trocar nomes em dias de excepção

Autor Vasco Gato

domingo, 22 de setembro de 2024

aguardar


sou apenas um corpo em sobressalto
no desabar da tarde
na mudança das marés.

não sei se procuro o porto
se aguardo o barco
se te esqueço ou se te aguardo.

Autor : BeatriceM 2024-09-22
Imagem : Brooke Shaden

sábado, 21 de setembro de 2024

os rostos náufragos

peter brownz braunschmid

A substância do deserto é a do mar, que dele difere apenas pelo grau de apuramento. O mar surge no termo dum processo em que o deserto é uma das fases ou, mais concretamente, a sua cristalização. Se se atender a que o lugar onde esse apuramento se produz é o nosso espírito, não poderão causar qualquer estranheza factos como, por exemplo, o de a presença do deserto ser notada por quem, como os marinheiros, tenha um íntimo contacto com o mar.
O que eu do mar conheço, devo-o contudo, mais do que a qualquer outra experiência, a corpos onde a nitidez das suas águas ultrapassa muitas vezes a dos próprios traços fisionómicos; não raro, basta uma leve carícia, ou outro contacto ainda mais discreto, para sentir como são avassaladoras essas águas, à superfície das quais parecem prestes a afundar-se os rostos náufragos.
Não obstante, também já eu me apercebi da clandestina presença do deserto, o que me leva a compará-lo àquela roupa que persiste em irromper na pele de quem por isso nunca por completo se consegue desnudar.

Autor  : Luís Miguel Nava
O Céu Sob as Entranhas

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Rota de Colisão


De quem é esta pele
que cobre a minha mão
como uma luva?

Que vento é este
que sopra sem soprar
encrespando a sensível superfície?

Por fora a alheia casca
dentro a polpa
e a distância entre as duas
que me atropela.

Pensei entrar na velhice
por inteiro
como um barco
ou um cavalo.

Mas me surpreendo
jovem velha e madura
ao mesmo tempo.

E ainda aprendo a viver
enquanto avanço
na rota em cujo fim
a vida
colide com a morte.

Autor : Marina Colasanti
Imagem : Tina Sosna

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Memória


Frio e solidão!
Lembro uma tarde em setembro.
Esperei-te, em vão.

Artur Eduardo Benevides
Imagem : Emre Baser

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Sonho

Pintei-te vento
guitarra
à janela alcandorada
de matizes loiros.

Castelo ou fragmento
de nuvem?

És o meu sonho
doçura de uma pétala
de lua
a desfazer-se em poalha
de versos.

Aonde te guardarei
Amor
longe de uivos
de matilhas
do som cavo
da morte ?

Claro
dentro de mim
nas profundezas
elevadas
de uma gota de seiva
a fluir na transparência
do afecto.

Autor : Maria Helena Ventura 
In Quando o silêncio falar
Imagem : Bara Vavrova

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Fica e é só o que fica


Fica e é só o que fica: o primeiro encontro
o primeiro beijo numa gare deserta
o mar por líquida ou aérea testemunha

depois a longa gestação do adeus
único e verdadeiro adeus
o subtil envenenamento da memória

Autor : Rui Caeiro
Imagem : Thércio Massari

domingo, 15 de setembro de 2024

Rotina


A manhã acordou-me do repouso nocturno
Hoje é mais um dia que arremesso os dados ao destino
E saio apressada para tentar a minha sorte.

Autor : BeatriceM 2024-09-15
Imagem : Tina Sosna

sábado, 14 de setembro de 2024

Jogo

SONJA HESSLOW

Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
 como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

Autor : Nuno Júdice
in "A Fonte da Vida"

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Ficarei

 


Ficarei deitada entre flores murchas e molhadas
como o pássaro que ignora estar caído e morto
sobre pedras íntimas escorregadias de sal
no chão de tábuas de um quarto crepuscular
ou sobre as lajes nuas de uma praça
onde se nasce e morre sem pausa e sem dor.

Será talvez assim numa praça
que não se atravesse nunca vagamente
por estar finalmente a cumprir-se o oráculo
ao dormir amante sobre o ventre de mãe
da única alva de amor partilhada
com cordas de chuva a rasgarem-me o dorso
e a mesma violência de ritmo bendito
com que me empurraste contra as tábuas da barcaça
há quatro séculos e um dia em Bruges.

Era Setembro tanto faz.

Autor : Ana Margarida Falcão
Cadernos de Santiago I, Lisboa, 2016, p. 120-121
Imagem :TJ-Drydale

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Poema da Mulher

Amo a beleza clara e justa da mulher.
Amo o que nela arde a sua pele serena
o corpo liso a cabeça pousada na mão.
Amo o sorriso por vezes triste o modo
como me olha entre a dúvida e o amor.
Sobretudo amo-a por a ouvir dizer-me
olá e depois é como se a voz abrisse um
caminho entre a minha e a vida dela.
Então tudo em mim lhe comunica um mundo
que estando do lado de cá passa para
o centro dela e fica dentro da sua alma.
Amo-a afinal toda e inteira e desperta
ou adormecida no íntimo do continente
ou na parte mais alta de qualquer ilha.
A mulher que eu amo é um ser de partida
que de vez em quando regressa à minha mão.
Ela não sabe mas há em mim uma maneira
de ir com ela e uma outra de a esperar.
Parto no navio alto e branco do seu ser
espero-a à chegada do vento que a anuncia
presente sentada na bainha da minha alma.

Autor : João de Melo
Imagem : Laura Zalenga

domingo, 8 de setembro de 2024

Medo de brincar com as palavras

 

Tenho medo de mim
quando brinco com as palavras.

Medo de libertar os segredos que guardei,
e como pássaros feridos,
ainda doem, dentro de mim.

Não quero ferir nem com palavras,
quando apenas quero paz,
e mansidão dentro e fora de mim.

Autor : BeatriceM 2024-09-08
Imagem : Rosie Hardy

sábado, 7 de setembro de 2024

Mulher

Metade mulher metade pássaro
Metade anémona metade névoa

Metade água metade mágoa
Metade silêncio metade búzio

Metade manhã metade fogo
Metade jade metade tarde

Metade mulher metade sonho

Autor : Jorge Sousa Braga
In : O Poeta Nu
Imagem : Anke Merzbach

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Poema

Não me firas com o teu silêncio.
Traz- me a leveza das tuas mãos que tão breves partiram sem aceno.
Clama pelo meu nome como se a primeira estrela fosse a noite com o teu rosto.
Não me castigues de catos.
Traz- me rosas sobre os lábios e pica-me de beijos que sangrem.
Afasta a solidão e traz o teu silêncio.
Pousa-o sobre a leveza do meu corpo e seremos um oásis manso de paixão.
Vem e faz- me acreditar que o sol ainda arde na labareda da fome.
Enche com os teus olhos de ausência os meus olhos de pássaro.


Autor : Maria Isabel Fidalgo
Imagem : Andrea Kiss

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Mudamos esta Noite


Mudamos esta noite
E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões
onde levar as plantas
e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam
e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu
Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias.

Autor : António Reis

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Varanda para o mar

 

Todas as casas deviam ter uma varanda para o mar

Para que as manhãs acordassem no velame inquieto da claridade
E as sombras fundeassem frescas pelas paredes opacas do meio-dia
E os entardeceres rebentassem em sotaventos de crepúsculo num quarto

Todas as casas deviam ter uma varanda para o mar

Ou uma janela...
Ou um parapeito...

Um olhar...

Autor : Sandra Costa
Imagem : Kelly Tan

terça-feira, 3 de setembro de 2024

De Setembro

Por ti escrevo o desenho do sol
sobre as macieiras,
o destino da minha sombra
na terra.

Estás longe,
no fulminante calendário
das emoções.

As folhas que pisaste
no último outono
ardem agora,
rutilantes e húmidas,
na tarde vazia.

Cantas na memória
como no primeiro dia,
os dedos cegos como frutos.

Sabes?

O odor dos eucaliptos
é setembro a beijar
a cor dos teus olhos.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto
Imagem : Andrea Hubner

domingo, 1 de setembro de 2024

Partidas Inadiáveis


Fazem sentir dores dobradas,
mágoas desordenadas,
lutas interiores desgovernadas.

Autor : BeatriceM 2024-09-01