sexta-feira, 4 de julho de 2025

Nesta brisa quase suave

 

Nesta brisa quase suave
de plantas já anoitecidas
quase te toco entre as regas,
e entristeço.

A tua ausência é tão real
como os vastos campos de girassóis
secos, envelhecidos, quase mortos.

Alugo a voz e a expressão
a par de todos os espaços
deste lugar que se inicia.

Tudo isto é simples:
tenho o coração desarrumado.
Vem.

Autor : Filipa Leal
Imagem : Anna Derzhanovskaya

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Quantas vezes me deixei ficar...

 


Quantas vezes me deixei ficar,
como hoje, de caneta em riste,
sentado a esta mesma mesa
esperando que tu ou o texto viessem...

Quantas vezes, em vão, lançava
o olhar sobre o porto, tentando
adivinhar-te no bojo
de um qualquer barco que divisava

ao longe, como quem investiga
de falhas a mais nítida presença.
E quantas, no meio do tilintar
das chávenas e do bulício do balcão,

as tuas palavras acabavam sempre
por me aquietar. No entanto, sei-me
de sina igual a hoje: o constante medo
de que um dia possas não vir

e que o futuro mais não seja
do que a inquirição dos dias,
onde os versos se firmam
como escolhos à deriva
em simples guardanapos de papel.


Autor : Victor Oliveira Mateus
In A Irresistível Voz de Ionatos.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Branco


 

 Interessa-me o inconcreto branquejar
da roupa no estendal (o branco, não)

mais do que o peso da água, ver
que o nada não se vê na água a evaporar

na luz do tecido em contraluz interessa-me
o vazio suspenso do vazio

quando a roupa enforma ao vento e sobe
no arame, interessa o risco que sustém a louca nave,
os voos desabitados e a pequena hora de ninguém.

Autor : Rosa Maria Martelo

terça-feira, 1 de julho de 2025

"Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora"

Bogna Altman

Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora,
a primavera agitar-se-á num desespero verde,
calar-se-á para sempre o grito azul de todas as manhãs.
,
Eu poderia dizer que sem os teus cabelos a chuva não cairá durante séculos,
o inverno recolherá as suas crinas de água
e semeará punhais por toda a terra.
,
Eu poderia dizer que sem os teus olhos nenhuma madrugada rodará o seu vestido de estrelas,
nenhum barco achará o porto,
nenhuma ave encontrará o ninho.
,
Eu poderia dizer que sem os teus seios a loucura apagará fogueiras,
a noite enforcará todas as rosas,
as abelhas terão a morte mais amarga,
as dunas recusarão as mãos do vento.
,
Eu poderia dizer que sem o teu corpo nenhum rio chegará ao mar,
os afogados cantarão o silêncio em todas as praias
e uma dor violenta impedirá o sexo dos amantes.
,
Eu poderia dizer que sem as tuas mãos não haverá uvas nem águias nem corolas,
nenhuma porta se abrirá de novo,
nenhum gesto será mais possível.
,
Oh, meu amor!,
eu poderia dizer tudo,
poderia inventar tudo. Mas não. De ti
direi apenas que não voltas. Ficarei
ainda e sempre e sempre e sempre
à tua espera.
.
Poema XX
.
Autor : Joaquim Pessoa
in " Os Olhos de Isa" (1979)