Aqui estão as minhas escolhas do que considero melhor em Poesia,Prosa Poética e Fotografia. Domingo é dia de trabalhos de minha autoria.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Labirinto
Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.
E o alcácer abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Não tem extremo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro teu destino
Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha
De interminável pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No negro crepúsculo uma fera.
Autor : Jorge Luis Borges
Trad.: Augusto de Campos
Imagem : Taylor Rayburn
quarta-feira, 30 de outubro de 2024
Deixa- me lembrar de ti.
Deixa-me lembrar de ti. Sei que nunca virás, por isso vai devagar onde houver sombras , a mão na minha e uma lua alta a escorrer de sedução para que possa morrer nos teus braços ou morrermos os dois na dança de todos os sonhos.
A noite é a sede do teu nome no meu pensamento, por isso danço, canto, deslizo no porto do destino onde nunca desembarcámos.
Estou a olhar o calor noturno e uma leve luz ilumina os meus pensamentos.
Vens então devagar para que nunca chegues e eu possa continuar a rodar na valsa quimérica da meia noite envolta nos teus braços de neblina.
Autor : Maria
Isabel Fidalgo
Imagem : Brooke Shaden
Imagem : Brooke Shaden
terça-feira, 29 de outubro de 2024
conselho
Se saudade vem
Mais cuidado com teu fado!
Chega a dor, também!
Autor :Artur Eduardo Benevides
Imagem : Andrea Kiss
domingo, 27 de outubro de 2024
Instantes
Quando o elevador ficou estático
Numa paragem imprevista
No seu interior dois olhares amedrontados
Entreolharam-se surpresos
Numa encruzilhada de predestinações
O silêncio compartilhado
Foi um gatilho para as palavras
Que brotaram espontâneas
Ávidos da liberdade dissipada
Por escassos momentos
Quando a porta se abriu
Foi o renascer para um novo destino
Autor : BeatriceM 2024-10-26
Imagem :Michael Vincent Manalo
sábado, 26 de outubro de 2024
Uma Voz na Pedra
Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
Autor : António Ramos Rosa
in 'Facilidade do Ar'
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Amor vs Paixão
Para mim
o amor
fica-me justo.
Eu só visto
a paixão
de corpo inteiro.
Autor : Maria Teresa Horta
Imagem : Karrah Kobus
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Gargalhada
Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias…
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo…
Autor : João Guimarães Rosa
In “Magma”
Imagem : Miçhael Muller
quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Existimos de forma concisa
Num gomo de laranja, no feixe
De luz oblíquo ao parapeito da janela,
Nas superfícies das paredes que sobem
Até ao tecto da casa, no vidro outrora
E na gota de chuva e quando cessa a chuva
No troar das andorinhas, existimos de forma
Concisa
Não tendo o mundo outra forma de existir
Autor : Sandra Costa
Imagem : Erica Hopper
poemas retirados de Poema Poema, antologia de poesia portuguesa actual (Aullido Revista 15 - punta umbría - huelva - 2006)
Sandra Costa nasceu em S. Mamede de Coronado, concelho da Trofa, em 1971. Licenciada em História, é professora do ensino básico e secundário. O seu primeiro livro, publicado em 2002, foi Sob a luz do mar, Campo das Letras. Seguiram-se Nada se sabe das profundezas, In-libris, 2003 e Nenhuma Flor. Oito imagens e o dizer dos lábios, Belgais e In-libris, 2004. Está representada em algumas antologias. (in Insónia
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Tentas, de longe
Tentas, de longe, dizer que estás aqui.
Com peso triste caminha na rua o Outono.
O meu coração debruça-se à janela
a ver pessoas e carros, e as folhas caindo.
Mastigo esta solidão
como quando era pequeno e jantava
diante dos pais zangados:
devagar, ausente.
Autor : Fernando Assis Pacheco
Imagem : Anthony Garcia
domingo, 20 de outubro de 2024
hoje repouso
amanhã sobrevivem as minhas palavras adormecidas
em todos os esconderijos dos silêncios
e nos ruídos calados em que as escrevi, pressentidas.
Autor : BeatriceM 2024-10-19
Imagem :Stephanie Pearl
sábado, 19 de outubro de 2024
Ainda não
Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar
ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer
ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração
Autor : António José Forte
Uma Faca nos Dentes
Livraria Editora, Lda.
sexta-feira, 18 de outubro de 2024
....
a casa é feita de gestos
e a solidão é um vazio
que quase se consegue tocar
o quarto, o corredor, a sala
tudo faz parte desta geografia
do vazio
e se de repente o telefone tocasse
e fosse a tua voz?
Autor : Maria Sousa
quinta-feira, 17 de outubro de 2024
Não me peçam razões,
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.
Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há de vir.
Autor : José Saramago
domingo, 13 de outubro de 2024
Olhar perdido na tarde ...
Defronte tenho o mar ilimitado e sem fim à vista
Selecciono um banco de pedra e sento-me
Acalmo a minha mente ao observar as ondas
A desnudar as areias ou a lavá-las tanto faz
Observo as gaivotas na sua marcha infindável
Á procura de algum mantimento
Aquela linha que separa o oceano do mar
Atrai-me
Por momentos fico a meditar e o pensamento ganha asas
O horizonte é uma parte de um filme que eu engenho
E fico-me com o olhar ligeiramente toldado
Não sei se é da neblina se é de algum cisco
Se calhar nem uma coisa nem outra
E permaneço, até a noite cair sobre o mar e sobre mim.
Autor : BeatriceM 2024-10-12
Imagem : Korinne Bisig
sábado, 12 de outubro de 2024
Morte silenciosa
sexta-feira, 11 de outubro de 2024
A rosa branca
Isto é a terra?
Então não sou daqui
Quem és tu na janela acesa,
agora à sombra
das folhas trêmulas do viburno?
Podes sobreviver onde não vou durar
Além do próximo verão?
A noite inteira os galhos esguios da árvore
movem-se e sussurram à janela iluminada.
Explica a minha vida,
tu que não fazes sinal algum,
embora eu chame por ti na noite:
não sou como tu, tenho apenas
meu corpo como voz; não posso
desaparecer no silêncio —
E na manhã fria
sobre a superfície escura da terra
vagueiam ecos da minha voz,
brancura que firme se consome em escuridão
como se finalmente fizesses um sinal
para me convencer de que também
não pudeste sobreviver aqui
ou para me mostrar que não és
a luz que chamei
mas o breu atrás dela.
Autor : Louise Glück — tradução de Maria Lúcia Milléo Martins
Imagem : Alexei Antonov
quinta-feira, 10 de outubro de 2024
Não há Vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há
vagas"
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Autor : Ferreira Gullar
in 'Antologia Poética'
quarta-feira, 9 de outubro de 2024
Principe
katia chausheva
Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
Autor : Ana Hatherly
terça-feira, 8 de outubro de 2024
Homem
tommy ingberg
Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.
Autor : António Gedeão
in 'Movimento Perpétuo'
domingo, 6 de outubro de 2024
Apontamento
Às vezes penso que já era estranha quando te conheci.
Sei lá!
Acho que depois fiquei pior, e nem sei se é pior ou melhor ficar ainda mais estranha, do que sempre fui. Tu dizias que eu era uma ostra, mas que também sabia ser uma gaivota. E eu sabia que ostra queria dizer, calada e gaivota queria dizer, capaz de voar sem dar explicação nenhuma a ninguém muito menos a ti. Tu também ias e vinhas, mas nunca ficavas.
Ás vezes penso que eu não sou assim estranha como tu me fazes crer que eu sou, acho que quem é estranho és tu, por isso, quando voltares, a passar na minha rua e quereres saber de mim, nem fazes ideia que eu já cruzei o oceano, e que na minha bagagem a lembrar-me de ti apenas levo aquele boneco horrível que me deste quando fomos comer um hambúrguer ao mcdonalds.
Talvez por isso eu não me importo nem um pouco que me aches estranha.
E sem querer ser normal, acho que vou guardar em mim tudo o que ainda sinto por ti e que tu nunca vais morrer nas minhas memórias.
Mas, isso, tu também não precisas de saber…
.
Autor: BeatriceM 02-10-2016
Imagem Brook Shaden
sábado, 5 de outubro de 2024
“We are flint and steel to each other"
Ontem choveu sem descanso
e fizemos tudo mal. São dias
de pedra e aço - alguém sabe
onde nos levam? Dão-nos
um amor volúvel que lisonjeia
os sentidos, mas não podem
consolar-nos da penúria
de existirmos, tu e eu, cada um
na sua pele, no seu áspero
lugar. E lembram-nos a todo
o instante do que já estava perdido
no escuro de uma gaveta
antes de ter começado,
como um verso interrompido
nas costas de um envelope
ou uma velha cassete
que mal chegámos a ouvir,
hora e meia de remerso
e distorção. Não te salvo,
não me salvas - nem é certo,
quando o medo se demora,
que haja ainda o que salvar.
Contra o frio que nos ronda,
resta o lume que ateamos
por ternura, desfastio
ou vontade de vingar
o dissabor de viver.
Autor : Rui Pires Cabral
Imagem : Emérico Toth
sexta-feira, 4 de outubro de 2024
Motivo
Bryan Larsen
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Autor : Cecília Meireles
quinta-feira, 3 de outubro de 2024
esta esquisita prova me tentou
esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo
culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha
em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas
um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.
Autor : António Franco Alexandre
Imagem : Taylor Rayburn
quarta-feira, 2 de outubro de 2024
Digo-te por isso
Digo-te por isso
que não me obrigues a luz.
Que escrever não é fácil,
que viver não é fácil
quando começamos a frase a meio.
Que lavo a cara ao chegar tão tarde
e mesmo assim o dia não se despega,
e mesmo assim
tu não estás, ninguém está.
Que não tenho espaço na minha secretária,
na minha vida, na minha cama
para tanto espaço.
Que já me disseram urbana,
e nem por isso me disseram decadente,
e que eu gostei.
Que já me disseram
muitas vezes
disfarçadamente triste,
e que por isso, por ser triste, por
sermos todos tristes, não mo deviam dizer.
Digo-te por isso
que não era minha intenção dizer-te mais uns versos
tristes e sem luz, e por isso, só por isso,
não era minha intenção dizer-te nada.
Autor : Filipa Leal
Imagem :Alex Benetel
terça-feira, 1 de outubro de 2024
Dança
Procuro no escuro as elevações e o delírio,
mas é a tua voz que me leva
ao fogo.
Atravesso a floresta e o mistério,
o sol mais bravo da noite.
Os teus cabelos ardem
sob a eternidade das minhas mãos.
Uma gaivota grita no silêncio das sombras.
O teu corpo ondula numa viagem
que me leva num barco de água branca
como se em cada setembro
dos teus murmúrios voltasses
com todas as rosas da madrugada
e uma gota de chuva
em cada unha.
Só no fim dos mais violentos relâmpagos
regresso dos teus olhos
nu e inocente como uma criança.
Autor : Eduardo Bettencourt Pinto
Imagem :Richard Calmes