Nasceste
do outro lado,
onde o sol
nunca destruiu os negros signos
da
escuridão,
onde o
terror do pai,
o
distraído olhar da mãe,
o silêncio
dos irmãos, faz crescer em ti as
imperecíveis
flores da amargura.
Foste
sempre
a equívoca
imagem dos espelhos: um sorriso
era uma
lágrima.
À tua
volta estava escrito:
o amor é
uma espada de fogo, às vezes mata.
Navegaste
turvos oceanos cujas vagas alterosas,
nunca
antes vistas,
batiam no
teu assombro.
Atravessaste
os ares, muito perto do céu,
mas nunca
viste as altas mansões de Deus.
Eras
apenas o anjo,
aquela que
nunca pôde deixar as estâncias do
sono.
Entregaste,
sem saber, os segredos do teu corpo,
tão
predisposto à imolação.
Choraste
tantas vezes,
em quartos
de persianas descidas, que a morte
habitava,
sem fazer
ruído.
Hoje,
não dizes
nada.
Levas
sobre os ombros um xaile de magoada renda.
Vestes
quase sempre de negro.
Vais e
vens,
ao longo
dos labirintos onde em cada esquina
espreita o
tigre.
Não sabes
o que fazer com as mãos frias,
povoadas
de angustiantes anéis.
Não bordas
o livro das tuas horas,
e o dedal
das avós dementes caiu sempre no
chão.
A chuva
caiu sempre nos teus dias,
e
caminhaste pelas ruas, à deriva, cabisbaixa,
como se
pedisses perdão.
Ninguém te
ouviu,
pois não
havia palavras debruçadas da tua
boca.
Era sempre
Inverno.
E quando
ele chegou,
o filho
pródigo de uma ilha,
parecia
que enfim poderias cantar nos jardins da
paixão, na
elevação das chamas.
Mas não.
Assassinaste
sempre a ternura que ele ainda
guardava
no devassado cofre da sua idade.
Suicidaste-te.
José
Agostinho Baptista
'Esta voz
é quase o vento'
Assírio
& Alvim, 2004
Imagem : Angelo Bonini
Triste mas maravilhoso.
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