A nossa maior crueldade é o
tempo. Como um fabricante de armadilhas desajeitado que acaba sempre
prisioneiro das engrenagens que produz, também nós inventamos o tempo e nunca
temos tempo. Os nossos relógios nunca dormem. Quantas vezes o tempo é a nossa
desculpa para desinvestir da vida, para perpetuar o desencontro que mantemos
com ela? Como não temos diante de nós os séculos, renunciamos à audácia de
viver plenamente o breve instante. A imagem de crono, devorando aquilo que
gera, obsidia-nos. O tempo consome-nos sem nos encaminhar verdadeiramente para
a consumação da promessa. Nesse sentido, o consumo desenfreado não é outra
coisa que uma bolsa de compensações. As coisas que se adquirem são naquele
momento, obviamente, mais do que coisas: são promessas que nos acenam, são
protestos impotentes por uma existência que não nos satisfaz, são ficções do
nosso teatro interno, são uma corrida contra o tempo. A verdade é que
precisamos reconciliar-nos com o tempo. Não nos basta um conceito de tempo
linear, ininterrupto, mecanizado, puramente histórico. O continuum homogéneo do
tempo que a teoria do progresso desenha não conhece a rutura trazida pela
novidade surpreendente. E a redenção é essa novidade. Precisamos identificar
uma dupla significação no instante presente. O presente pode ser uma passagem
horizontal, quantitativa, na perspetiva de uma realização entre este instante e
o que lhe sucede. Mas o presente tem também um sentido vertical que requalifica
o tempo, abrindo-o à eternidade. É o tempo qualitativo, epifânico.
Autor : José Tolentino Mendonça,
in 'A
Mística do Instante'
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