terça-feira, 27 de agosto de 2019

O Sangue das Horas

Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a Noite me trouxe a lua…
Você tem sede, não é?
E a Noite me deu café.

São verdes como a esperança
as horas em que sou triste:
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.

Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura
bebo a esperança, remédio
para as feridas sem cura…

Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar?
É a Noite que, de tão velha,
tão velha,
criou cabelos de luar…

A insônia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras…
Meus olhos são duas feridas
por onde
escorre o sangue das horas.

Entre o passado e o porvir
aqueles peixes de prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos…
Criei cabelos de luar.

Autor : Cassiano Ricardo
 (São José de Campos, Brasil, 26/6/1895 – Rio de Janeiro, 14/1/1974)
Poeta, ensaísta, jornalista, licenciado em Direito
Imagem : Joel Robison

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